Notas

627 - No décimo-quarto livro da Ilíada. v. 86.
628 - Quer dizer, magistrados curiais. Havia ordinariamente em Roma dois magistrados escolhidos entre o povo. Nomearam dois outros, tirados da ordem do senado no ano de Roma 388. o mesmo ano que viu Lúcio Laterano. primeiro cônsul escolhido na classe do povo.
629 - Políbio chama-os Gwsaíes, da palavra Gaesa, que significa, disse ele. soldo. Outros querem que seja o nome de suas armas. Habitavam os Alpes perto do Rône.
630 - O ano de Roma 364.
631 - O ano de Roma 531.
632 - Esse cantão está ao nordeste de Roma sobre a costa do mar Adriático. Chamam-no em latim: Agerpicenus.
633 - Vila do mesmo cantão, no grego: Arimin.
634 - Vice.
635 - O grego traz: "que pudessem alegar como desculpa".
636 - Tibério Semprônio Graco foi cônsul no ano de Roma 591.
637 - No grego: — ‘"tendo caído sobre livros onde estavam escritas as regras, etc".
638 - Assim Amyot conta três. O grego não nomeia senão dois: Cornélio Cetego e Quinto Sulpício.
639 - Leia-se segundo o grego: — "e personagens mui notáveis que foram todos os dois privados de seu sacerdócio, a saber Cornélio Cetego por ter deixado de entregar as entranhas da hóstia imolada, na ordem onde a devia dar".
640 - O grego traz: — ‘-Eles os destituíram todos dois e nomearam outros em seu lugar".
 Valério Máximo põe esse fato na conta de Fábio Máximo.
641 - Eram os magistrados que governavam no interregno, sob os reis. Conservaram esse nome sob a república.
642 - No grego: ‘"deu-lhe*’.
643 - Aproximaram-se de Acerres, que estava assediada pelos romanos. O nome grego do rei é Britomarto. Suplemento de Tito Lívio, liv. 20, Viridomarus.
644 - O grego diz somente: "do outro lado do Pó". Políbio coloca-a entre o Pó e os Alpes.
 Cluvier conjectura que ela estava a sete milhas do Pó. Perto de Adda, diz Cellarius, segundo a tábua Teodosiana.
645 - Um pequeno carvalho. Os sábios estão divididos sobre a verdadeira lição deste texto.
646 - O ano de Roma 317. Não era senão tribuno dos soldados sob o ditador Emílio Mamerco, segundo os antigos historiadores que Tito Lívio seguiu nesta narração. Mas. ele mesmo observa que a inscrição anunciava Cosso como cônsul e que com efeito o nome de despojos opimos era consagrado unicamente àqueles que eram. retirados de um general morto pela mão de outro general.
647 - Leia: — "sobre um carro, no grego chamado feretron, porque nesses primeiros tempos, etc".
648 - Tito Lívio, liv. 23, cap. 16. não traz senão dois mil e oitocentos o número de cartagineses que foram mortos e ainda parece-lhe esse número exagerado.
649 - Tito Lívio conta mil duzentos e setenta e dois.
650 - No ano de Roma 540.
651 - Há aqui uma sensível lacuna no texto de Plutarco. Eis como a suprir, segundo a narração de Tito Lívio, L. 24, cap. 29. Havia em Siracusa dois partidos, um pelos romanos, outro pelos cartagineses. Hipócrates, chefe desta facção, rendeu-se com suas tropas sobre as terras dos leontinos, a seu pedido, e de acordo com eles atacou os quarteirões dos romanos, matando muita gente. Por causa disso, Marcelo foi fazer cerco à cidade dos leontinos.
652 - Com cinco carreiras de remos.
653 - Grego: «dez talentos».
654 - Este lugar está estragado no texto grego, e é n ecessário reconstituir do oitavo livro de Políbio, de onde Plutarco o tomou. Amyot.
655 - Antigamente chamada Hibla, sobre a costa oriental da Sicilia, a algumas léguas ao norte de Siracusa.
656 - Aciles, outros chamam-na Acriles, a algumas léguas da costa e de Siracusa, ao meio-dia, sobre o rio Élore.
657 - As quatro edições que tenho sob os olhos trazem Etna. Mas o manuscrito do rei, do qual já falei, apresenta distintamente Ena, cidade situada no centro da Sicília. Pode-se ver em Tito Lívio a traição dos habitantes de Ena e a vingança cruel que tirou Lúc io Pinario, comandante da guarnição romana, liv. 24, cap. 37 e seguintes. (Nota da trad. fr.).
658 - Êngio (Engyum) sobre o monte Hereen, junto à nascente do rio Hímere, onde, dizem que se veem ainda s uas ruínas. Havia um templo consagrado a Cibele, de que Cícero fala em sua quarta Verrina.
659 - Espécie de manto curto que os romanos traziam às costas, preso por um broche.
660 - Falando de Siracusa. É o começo da segunda Pítica.
661 - Mirto.
662 - O ano de Roma 544.
663 - Leia-se: onze tribunos militares.
664 - Tito Lívio, liv. 27, cap. 2.
665 - Há. sem dúvida, um erro no texto. Talvez se deva notar a correção feita por um anônimo, da qual resulta este sentido, bastante razoável: "parece-me. pois. que após uma vitória, a con fiança, após uma derrota, a vergonha, determinam igualmente novas tentativas."
666 - Tribuno militar.
667 - Na Campanie, província da qual Cápua era capital.
668 - No grego: "Sinuesse",
669 - Ano de Roma 546.
670 - O que está entre parênteses não se acha no original grego. A explicação de Amyot. alias, é inexata. O nome desses locrianos, vinha pela razão de habitarem os arredores do promontório Zefirio.
671 - Uma ou jarro.
672 - Um ginásio.
673 - Cidade da ilha de Rodes, onde Minerva tinha um templo famoso.
674 - A palavra filósofo não está no g rego. Cremos que aquele de quem Plutarco fala é o filósofo estoico, denominado o atleta, que teve uma escola em Rodes e veio a Roma no tempo de Marcelo.
675 - Foi para ele que foram escritos os belos versos de Virgílio, que se leem no fim do sexto livro da Eneida e que sua mãe Otávia pagou tão regiamente.

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Fontes primárias

Fontes primárias de diversos períodos históricos. Sempre que encontrarmos alguma fonte iremos disponibilizá-la aqui, para que todos os interessados por História possam ter o acesso facilitado a esses documentos (essa seção se focará mais nas fontes escritas).

Vidas Paralelas: Marco Cláudio Marcelo, de Plutarco

Fontes primárias > Roma Antiga  |  906 visualizações  |  18033 palavras  |  33,2 páginas  |  0 comentário(s)

Estátua de Marco Cláudio Marcelo, Museu Capitolino, Roma. Via Wikimedia Commons.

Marco Cláudio Marcelo (270-208 a.C.) foi um político da república Romana eleito cônsul por cinco vezes (222, 215, 214, 210, 208). Vencedor dos gauleses ínsubres, recebeu o mais prestigioso prêmio que podia ser dado a um general, a spolia opima, por vencer em combate singular o seu líder. Foi um dos grandes generais da Segunda Guerra Púnica e comandante da conquista de Siracusa, garantindo aos romanos o controle total da Sicília. A biografia de Marcelo faz parte de uma série de biografias escritas por Plutarco (c. 46-120), um historiador grego que viveu no Império Romano. Na série Vidas Paralelas, o autor compara vários nomes da história grega com seus equivalentes romanos. Marcelo foi comparado com Pelópidas, general tebano.

I. Maneiras agradáveis e pendores guerreiros de Marcelo

I. Marcos Cláudio, aquele que foi cinco vezes cônsul em Roma, era filho de um outro Marcos, pelo que dizem, mas foi o primeiro de sua casa denominado Marcelo, o que vale dizer marcial e guerreiro, conforme escreve Possidônio, porque era destro nas armas, experimentado da guerra, forte e disposto pessoalmente, a mão sempre pronta, e amando por natureza o combate, mas não mostrava essa aspereza e esse ardor em combater senão na guerra, somente contra o inimigo pois, pensando bem, seus modos eram muito agradáveis e bastante temperados. Amava a disciplina e letras gregas a ponto de honrar e admirar somente aqueles que as conheciam, pois de resto os seus deveres o impediam de poder vagar e de se exercitar como desejava, porque pertencia àquele grupo de homens aos quais os deuses, como diz Homero627, fizeram:

Usar na guerra e em sangrentos rodeios Sua juventude até a sua velhice; e que foram os nobres e os principais romanos daquele século, que na sua juventude, tiveram que combater contra os cartagineses na Sicília, na flor da idade, contra os gauleses para impedir que ocupassem toda a Itália e, na sua velhice, contra Aníbal e contra os cartagineses ainda uma vez, pois não aproveitaram nada do privilégio da idade, que os dispensava de ir à guerra como os outros cidadãos comuns, pela sua velhice, mas foram constrangidos tanto por sua nobreza como por sua experiência e valor, em aceitar os cargos e comandos dos exércitos que o senado e o povo lhes puseram aos ombros.

II. Sua bravura. Seus primeiros empregos. Virtude de seu filho

II. Ora, quanto a Marcelo, não havia forma de combate ao qual se recusasse, ou fosse pouco exercitado. Além de tudo, era mais senhor de si no combate de homem para homem em campo fechado, do que em outro qualquer, pelo que não recusou jamais inimigo que o desafiasse, mas matava sobre o campo todos os que o provocavam. Na Sicília salvou a vida ao seu irmão Otacílio, que num encontro havia caído por terra, pois cobriu-o com seu escudo e prostrou aqueles que corriam para acabar de matá-lo. Em razão dessas proezas, sendo ainda jovem, recebeu dos capitães, sob os quais servia, diversas coroas e outros prêmios de honra dos que são conferidos aos homens corajosos. E como continuasse a mostrar seu valor cada vez mais, o povo o elegeu magistrado, um dos cargos de maior dignidade e honra628 e os sacerdotes lhe criaram um augúrio, que é em Roma uma espécie de presbitério, pelo qual a lei dá autoridade de observar e considerar o voo dos pássaros para adivinhar e prognosticar o futuro. Mas, no ano desta sua magistratura, foi obrigado a chamar perante a justiça e acusar, embora pesarosamente, um colega seu chamado Capitolino, o qual sendo homem temerário, dissoluto e desordenado em sua vida, enamorou-se do filho de Marcelo, que tinha o mesmo nome de seu pai e convidou-o a ponto de desonrá-lo, não olhando sequer que estava em plena adolescência, prezado e estimado por todo o mundo por ser honesto e bom discípulo, como por ser um bom filho. Ora, da primeira vez, fora de si, o rapaz recusou os convites e perseguições desse Capitolino sem contar a ninguém, mas quando viu que persistia em seu intento, contou e declarou a seu pai, o qual ficou seriamente indignado, como o caso merecia, e acusou-o perante o senado. Capitolino, de início, para não comparecer, alegou diversas desculpas e subterfúgios e por fim apelou para os tribunos do povo, os quais declararam que não recebiam nenhum apelo seu e não queriam tomar conhecimento do fato. Assim, afinal, foi obrigado a responder perante o senado, negou em cheio o fato, porque não havia testemunhas que houvessem ouvido suas palavras. Nessa ocasião o senado foi de aviso que viesse o rapaz pessoalmente, o qual apresentando-se, pôs-se a enrubescer e a chorar. Os senadores, vendo-o cheio de pudor e com lágrimas nos olhos, não podendo se dominar mais, decidiram, sem mais prova, que o caso estava averiguado, condenando na hora Capitolino a multa de uma boa soma de dinheiro. Daquelas moedas Marcelo mandou fazer vasos de prata para servir nos sacrifícios, os quais dedicou e consagrou ao serviço dos deuses.

III. Guerra dos gauleses

III. Ora, estando terminada a primeira guerra que os romanos tiveram contra os cartagineses, no fim de vinte e dois anos que havia durado, logo depois recomeçaram outra guerra entre os gauleses, pois os subrianos, vindos da Gália e que habitavam ao pé dos Alpes do lado da Itália, conquanto fossem eles mesmos fortes e poderosos, chamaram ainda em seu auxílio outros gauleses que habitavam além desmontes e fizeram vir fortes exércitos desses mesmos que estão acostumados a se colocar a soldo de quem desse mais e que se chamam gessates629.

Parece-me que foi sorte para os romanos, esta guerra gaulesa não ser deflagrada enquanto durava ainda a dos cartagineses e como os gauleses, pela maneira de dizer, tinham jurado combater por sua vez contra aqueles que saíssem vencedores, esperaram lealmente que a mesma tivesse terminado. No entanto, a posição de seu país causava grande temor aos romanos por serem vizinhos próximos e estavam, assim, com a guerra às portas. Também a antiga reputação dos gauleses fazia com que os romanos os considerassem mais perigosos do que qualquer outra nação, porque foram eles que outrora haviam tomado a cidade de Roma630. Depois da queda da mesma, foi baixada uma ordem, segundo a qual os sacerdotes e religiosos seriam dispensados e ficariam isentos de irem para a guerra, a não ser quando os gauleses se revoltassem. Os preparativos que fizeram então para esta guerra, testemunharam bastante o temor que sentiam, pois nem antes nem depois, foram tantos milhares de romanos armados repentinamente, como daquela vez. Além do mais, a nova crueldade que usaram em seus sacrifícios fez fé também, pois outrora não estavam habituados a fazer nada que fosse estranho nem viesse dos costumes dos bárbaros, mas tinham opiniões bastante humanas quanto às cerimônias da religião e de acordo com as dos gregos, no tocante ao serviço dos deuses. Então foram constrangidos a obedecer a alguns oráculos e profecias antigas, que encontraram escritas nos livros da Sibila e enterraram todos vivos, num mercado de bois, dois gregos, um homem e uma mulher, e da mesma maneira também dois gauleses, aos quais até hoje, festejam ainda no mês de novembro por meio de algumas cerimônias secretas, que não é permitido a todo mundo ver.

IV. Os cônsules Flamínio e Fúrio são chamados

IV. Ora, nos primeiros encontros dessa guerra, houve grandes vitórias e grandes perdas também para os romanos, mas nem por isso diminuiu de intensidade nem foi reduzida para caminhar a um final seguro. No ano em que Flamínio e Fúrio foram cônsules631 e enviavam fortes e poderosos exércitos para guerrear os insubrianos, que são os milaneses, chegou a Roma notícia de que foi visto um rio da Romagne632 todo vermelho de sangue e que haviam também visto de repente, na cidade de Rímini633, três luas, ajuntando que os sacerdotes e adivinhos que haviam observado e considerado os presságios dos pássaros no dia em que aqueles dois haviam sido eleitos cônsules, afirmavam que houve um engano634 e que eles haviam sido eleitos indevidamente contra os sinais e prognósticos dos pássaros. Por isso o senado escreveu-lhes mesmo na hora, chamando-os a fim de que viessem eles mesmos demitir-se do consulado, antes que pensassem fazer alguma coisa, como cônsules, ao encontro dos inimigos. O cônsul Flamínio recebeu as cartas bem a tempo, mas como estava no momento de se travar uma batalha, não as quis abrir antes de haver primeiro derrotado os inimigos e persegui-los como fez, mas também quando voltou a Roma, ainda que fosse com grande quantidade de presas, o povo não quis recebê-lo, porque não havia obedecido prontamente às cartas que lhe haviam escrito nem havia voltado, assim como lhe haviam ordenado, mas audaciosamente havia agido por sua alta recreação, sem se preocupar, de maneira que bem pouco faltou para que não lhe recusassem, totalmente, as honras do triunfo.

Também, tão logo terminou seu triunfo, obrigaram-no a renunciar a seu consulado e tornando-o um cidadão comum com seu companheiro, tanto os romanos nisso eram escrupulosos, que queriam que todas as coisas tivessem a aprovação, a graça e bom prazer dos deuses, não permitindo nunca que menosprezassem as observações e previsões dos adivinhos, nem os usos e costumes antigos. Acreditavam assim que qualquer felicidade e prosperidade635 poderia advir, porque procuravam ser mais expeditos para o bem público os seus oficiais e magistrados devido ao respeito às cerimônias religiosas e assim vencerem seus inimigos.

V. Atenção dos romanos às cerimônias religiosas

V. Portanto, Tibério Semprônio, personagem que tanto foi honrado e estimado pelos romanos, tanto por sua bondade como por seus feitos, como nenhum outro de seu tempo, sendo durante um ano cônsul636, nomeou e declarou outros dois para o ano seguinte: Cipião Nasica e Caio Márcio, os quais, tendo tomado posse e já tendo ido às províncias que lhes caíram por sorte, Semprônio637, por acaso, tomou em suas mãos alguns livrinhos, onde sumariamente estavam escritas as regras pertencentes às cerimônias dos sacrifícios públicos e lendo-as achou uma observância, da qual nunca tinha ouvido falar, a qual era que, quando um magistrado, encontrando-se fora da cidade assentado em alguma tenda ou c asa alugada para aí contemplar e observar os presságios dos pássaros e que acontecesse em alguma ocasião ser obrigado a se retirar da cidade antes que os pássaros houvessem dado alguns sinais certos, precisaria, quando voltasse a segunda vez para terminar suas observações, deixar primeiro a tenda ou casa alugada e tomar uma outra para de novo começar suas contemplações. Tibério, não sabendo disto, havia por duas vezes se servido de uma mesma casa e havia sobre isto nomeado e declarado esses dois cônsules sucessores, mas depois, tendo conhecido sua falta, a fez ouvir no senado, o qual não quis negligenciar uma omissão tão leve, mas escreveu aos novos cônsules, os quais deixaram incontinente suas províncias e voltaram a Roma prontamente, onde se demitiram de seus cargos. Isto aconteceu algum tempo depois, mas foi mais ou menos na mesma ocasião dos acontecimentos que narramos. Houve dois sacerdotes das nobres casas e personagens638 mui notáveis, um, chamado Cornélio e o outro Cetego639, que foram privados de suas ordens sacras, por haverem deixado de entregar as entranhas da hóstia imolada, como deviam. E Quinto Sulpício, ao sacrificar, o chapéu sacerdotal, que chamam Flimines, caiu-lhe da cabeça, por isso foi deposto de sua prelatura.

Como ditador, Minúcio nomeou Caio Flamínio para chefe da cavalaria, mas este foi destituído e posto outro em seu lugar640 porque no instante em que o ditador o nomeou, ouviu-se o barulho de um rato. E como fossem tão estritamente cuidadosos em velar com um tão grande cuidado, mesmo nas coisas insignificantes, não era porque ali houvesse superstição, mas porque não transigiam em nenhum ponto quando se tratava das instituições e cerimonias antigas de seu país.

VI. Marcelo, substituindo o cônsul Flamínio, vai atacar os gauleses

VI. Mas, voltando à nossa história, quando Flamínio, por si mesmo se demitiu de seu consulado, Marcelo foi em seu lugar substituí-lo por esses que chamam "entre-reis"641, e tendo tomado posse, escolheu642 como seu companheiro. Cneu Cornélio. Quando disseram então que os gauleses estavam inclinados a um armistício e até o senado romano estava contente ao ouvir falar de paz, Marcelo instigou o povo, dispondo-o a querer a guerra mais cedo. Não obstante isso, a paz foi celebrada, mas depois os gauleses gessates incontinente recomeçaram a luta, pois atravessaram os Alpes em número de trinta mil combatentes e vieram unir-se aos insubrianos, que eram em muito maior número e foram fazer cerco à cidade de Acerres643, que estava situada sobre o rio Pó644. Seu rei, Briomato, durante aquele cerco, tomando dez mil gessates, foi perseguir e pilhar em cheio o país nos arredores do Pó.

VII. Vendo isso, Marcelo deixou seu companheiro com toda a infantaria e o terço da cavalaria no campo junto de Acerres e, com o resto da cavalaria e seiscentos homens a pé, aparentemente armados, pôs-se a caminho em busca do inimigo, sem descansar nem de dia nem de noite, até haver atingido os dez mil gessates junto de um arrabalde da Gália, aquém dos montes, que se chama Clastidion e que antes estava subordinado aos romanos. Não teve descanso para repousar nem refazer um pouco sua gente, porque os bárbaros, logo que souberam de sua vinda e considerando-o já vencido por causa do reduzido número de soldados que tinha, arremeteram-se contra ele. Quanto à cavalaria, os gauleses não a levaram em conta, pois além de se considerarem fortes guerreiros, julgando que isto vale mais que nenhuma outra sorte de combate, ainda passavam, então, em muito maior número os de Marcelo e por isso marcharam rapidamente e, com grande fúria e com ameaças terríveis, como se de chegada tivessem que arruinar tudo. O rei marchava na frente de todas as suas tropas.

VIII. Combate e mata o rei gaulês

VIII. Marcelo, temendo que eles o cobrissem e o cercassem por trás, porque estava em número tão pequeno, estendeu o mais que pôde as alas de sua soldadesca para abraçar maior espaço, de maneira que as duas extremidades vinham a ficar muito fracas, até chegar bem perto dos inimigos. E como já estava pronto para, em galope, ir de encontro, aconteceu que seu cavalo, assustado com o barulho e a bravura dos inimigos, virou-se e levou Marcelo para trás, mas ele temendo que os romanos tomassem isso supersticiosamente como mau presságio e se deixassem tomar de algum terror que perturbasse seu entendimento, com a mão esquerda puxou a rédea, fazendo o cavalo voltar repentinamente a cabeça para o lado inimigo e, no mesmo instante, adorou o sol como se fosse por acidente que tivesse rodopiado.

Mas na verdade, deu esse efeito por causa dos romanos que estavam acostumados a fazer assim uma volta quando saudavam e adoravam os deuses e, imediatamente, começou a confusão. Fez voto a Júpiter Feretriano de lhe oferecer as mais belas armas que os inimigos tivessem, se saísse vencedor. Na mesma hora, o rei dos gauleses tendo-o percebido, concluiu, ao ver os sinais e insígnias que trazia, que devia ser ele o chefe dos inimigos e, então, atirou seu animal diante de sua tropa direito a ele, lançando um grito de desafio e dizendo que era a ele mesmo que queria, brandindo um comprido dardo de armadura que trazia na mão. O chefe era o homem de mais belo porte entre os gauleses e seu arreio era todo de ouro e prata e tão enriquecido pelos lavores que ostentava, que ao correr, reluzia como um relâmpago, pelo que Marcelo, dando uma vista de olhos sobre toda a batalha dos inimigos e não tendo notado armas mais belas do que as desse rei, incontinente julgou que era esse aquele contra quem havia feito sua oração e seu voto a Júpiter. Lançou-se direito à ele, dando um golpe tal de dardo, ajudado pela força e tensão da corrida do cavalo, que forçou sua couraça pondo-o por terra, não ainda morto, mas redobrou dois ou três golpes com os quais acabou de matá-lo; depois, pulando imediatamente de seu cavalo e pegando as armas do morto, levantou os olhos ao céu dizendo: — "Ó Júpiter Feretriano, que olhas do céu e diriges os altos feitos de armas e as proezas dos capitães, chamo-te como testemunha de como sou o terceiro capitão romano que, sendo chefe de exército, haja derrotado e morto com minhas próprias mãos o rei e chefe do exército dos inimigos; prometo-te oferecer e dedicar os mais belos e mais ricos despojos se for do teu agrado dar-nos igual sorte durante esta guerra".

IX. Isso feito e dito, os guerreiros romanos começaram a se misturar por entre os gauleses da cavalaria e da infantaria, confundindo-se, pois não estavam ainda separados uns dos outros e o fizeram de tal jeito, que ganharam uma vitória singular, de maneira estranha e extraordinária, porque não foi nunca visto nem antes e nem depois, que tão pouca gente a pé derrotasse tão grande número de guerreiros. Depois de haver morto a maior parte, ganho seus despojos e conseguido sua inteira derrota, Marcelo voltou à frente de seu companheiro, que encontrou guerreando, com muito pouca sorte os gauleses, diante da maior e mais povoada cidade que tinham, chamada Milão e que os gauleses de aquém-montes têm por sua cidade metropolitana, ou capital, de onde todas as outras foram derivadas e fundadas. Na ocasião, por dever, eles faziam o possível para defendê-la e mantinham o cônsul Cornélio cercado como este a eles. Mas, logo que Marcelo voltou, os gessates, que viram como seu rei Briomato havia sido morto na batalha, voltaram para seu país, e a cidade de Milão foi tomada, depois da qual todas as outras se renderam sem combate e os gauleses se submeteram inteiramente, puseram seus bens à disposição dos romanos, que lhes cederam a paz sob condições justas e razoáveis.

X. O senado concede-lhe as honras do triunfo

X. Para aquelas vitórias, o senado concedeu as honras do triunfo só a Marcelo e isto foi feito em riqueza, em grande quantidade de despojos, também pelo número de belos e grandes homens prisioneiros e com toda a suntuosidade e magnificência, digna de se ver. Mas o que foi mais agradável, pela novidade, foi Marcelo, pessoalmente, levando sobre seus ombros a Júpiter, todo o despojo do rei bárbaro, que havia morto, pois havia mandado cortar um pequeno carvalho645 alto e reto, da montanha, que enfeitou em forma de troféu, colocando e suspendendo à volta, na ordem, todas as peças do arreio que havia conquistado. Depois, quando toda a exibição do seu triunfo terminou, ele mesmo, carregando nos ombros o pequeno carvalho, subiu em sua Carriola triunfal e foi assim por toda a cidade levando esse troféu em triunfo, sendo a mais bela "representação e o espetáculo mais honroso que apareceu em toda aquela exibição. Seu exército seguia depois da carriola cantando hinos e cantos de vitória em louvor dos deuses e de seu capitão, pois quando atravessaram a cidade até o templo de Júpiter, denominado Feretriano, aí colocou e a ele dedicou seu troféu.

XI. Marcelo, o terceiro que apresenta a Júpiter excelentes despojos por haver morto o chefe dos inimigos

XI. Foi ele o terceiro e o último dos capitães romanos, até esta data, que recebeu esta honra, pois o primeiro que assim fez oferta a Júpiter das armas do chefe dos inimigos, foi o rei Rómulo, que ganhou as de Acron, o rei dos cenianos, o segundo foi Cornélio Cosso646 que derrotou Tolúmnio, capitão geral dos toscanos, e o terceiro Marcelo que, com sua própria mão matou Briomato, rei dos ga uleses e depois dele não ocorreu esta honra a nenhum outro. O deus ao qual se consagra e se dedica essa espécie de despojos é Júpiter Feretriano, assim chamado como escrevem alguns, porque lhe levam esse troféu647, seguindo a derivação da palavra grega ferin, que significa levar, porque nesses primeiros tempos havia muitas palavras gregas entremeadas na linguagem latina. Os outros querem dizer que era uma das denominações de Júpiter, que significa tanto como fulminante, porque ferire na língua latina, significa bater, e há os que dizem que é ferir propriamente *na guerra com golpes de mão; ainda hoje os romanos, quando em batalha, descarregam sobre os inimigos ou quando perseguem fugitivos, gritam um ao outro para ajudar a coragem: fere, fere, que vale tanto como dizer: mata, mata. E os despojos que tiram aos inimigos chamam-se geralmente spolia, mas, aqueles que os capitães retiram aos capitães dos inimigos depois de os haver morto, chamam-se particularmente spolia opima. Todavia, há os que dizem que o rei Numa Pompílio, em seus comentários, faz menção de despojos opimos, primeiros, segundos e terceiros, ordenando que os primeiros ganhos sejam consagrados a Júpiter Feretriano, os segundos a Marte e os terceiros a Quirino e que aquele que ganhou os primeiros tivesse por sua recompensa trezentos asses, o segundo, duzentos e o terceiro, cem; entretanto a opinião comum e a mais recente é de que os despojos opimos são os primeiros ganhos, onde há batalha alinhada e que é o chefe do exército quem os tira ao chefe inimigo, depois de o haver morto com sua própria mão. Mas, já falamos suficientemente sobre esse assunto.

XII. Taça de ouro enviada a Delfos

XII. Em suma, os romanos ficaram tão contentes com a vitória e com o resultado da guerra, que mandaram forjar uma taça de ouro maciço, com o peso de cem marcos com o espólio que haviam ganho, que enviaram como oferenda ao templo de Apolo Pítio, na cidade de Delfos, para lhe render graças e, liberalmente, também deram parte dos despojos aos seus aliados, a ponto de enviar grande quantidade a Hieron, rei de Siracusa que era seu amigo e confederado.

XIII. Aníbal entra na Itália. Marcelo vai à Sicília. Depois da batalha de Canes, Fábio e Marcelo tornam-se o apoio de Roma

XIII. Algum tempo depois tendo Aníbal entrado na Itália, Marcelo foi enviado com uma armada à Sicília, tendo ocorrido depois a derrota em Canes, na qual morreram tantos milhares de romanos, salvando-se bem poucos com a fuga rápida para a cidade de Canúsio, na esperança de que Aníbal, tendo desfeito a flor da força dos romanos, não quisesse ir direito a Roma. Marcelo enviou primeiramente mil e quinhentos marinheiros para ajudar a guardar a cidade e depois, tendo recebido uma ordem do senado, veio a Canúsio, onde pegou os que estavam salvos e reunidos depois da batalha perdida, tirando-os dali e levando-os para o campo para o defender. Ora, dos melhores capitães que romanos tiveram, na maioria mortos em diversas batalhas e dos que ficavam, Fábio Máximo era aquele que tinham pelo melhor homem de bem e o mais sábio, mas ainda se queixavam por não ser ele homem de rápida execução, falto de coragem, porque pesava muito todas as coisas para não perder nada e nada fazer por acaso; por isso diziam que era bom capitão para defender mas não para assaltar.

Assim, recorreram a Marcelo, julgando que seria preciso juntar sua coragem e vivacidade com o temor prevenido e sabedoria de outro e por isso em alguns anos os elegiam ambos como cônsules ou os enviavam um como cônsul e o outro procônsul. Cada um de per si estava na parte dos negócios e, seguindo esse propósito, Possidônio escreve que os romanos denominaram então Fábio Máximo seu escudo e Marcelo sua espada. E Aníbal mesmo dizia que temia Fábio Máximo como seu governador e Marcelo como seu adversário, porque um o guardava de fazer o mal aos outros e o outro o fazia a ele mesmo.

XIV. Em primeiro lugar, portanto, depois desta grande vitória de Canes, os soldados de Aníbal tornaram-se tão audaciosos, tão debochados e tão dissolutos, que sem temer mais nada, ficavam nos campos, afastando-se para longe de seu acampamento. Marcelo, correndo ao encalço desses que se afastavam assim, os punha todos em pedaços, diminuindo cada vez mais as forças de seu inimigo. Depois socorreu as cidades de Nápoles e de Nole, onde garantiu os napolitanos que eram por si mesmos muito afeiçoados aos romanos, por quem nutriam grande estima. Entrando em Nole encontrou uma sedição entre o senado e o povo porque o senado não chegava a bom termo cem a comuna que por força queria tomar o partido de Aníbal, porque havia na cidade um nobre chamado Bândio, de grande evidência entre os seus e, pessoalmente, homem muito valente, o qual, tendo cumprido muito bem seu dever na batalha de Canes, depois de haver morto diversos cartagineses foi por fim ele mesmo abatido e encontrado entre os mortos todo retalhado de golpes. Por essa razão Aníbal, considerando grandemente essa proeza, não somente o deixou ir sem pagar resgate mas ainda lhe deu lindos presentes e fê-lo seu hóspede e seu amigo. Bândio, estando de volta a sua casa, para corresponder a esse procedimento, não podia deixar de ser um daqueles que afetuosamente haviam de favorecer os negócios de Aníbal e, assim, exortava o povo de Nole para passar ao seu lado. Todavia, Marcelo, estimando que seria pecado contra os deuses, fazer morrer um personagem que havia dado tão admirável prova de valentia, concluiu que a sorte dos romanos estava perigando em seus maiores negócios, também devido a sua natureza agradável e humana, possuindo o dom de saber atrair e ganhar os corações das pessoas, pela cortesia. Por esse meio, tendo esse Bândio um dia ido vê-lo e saudá-lo, Marcelo perguntou quem ele era e há quanto tempo o conhecia. Respondeu-lhe que era Lúcio Bândio.

Então Marcelo mostrou-se todo alegre e admirado: — "És tu então aquele Bândio do qual se fala tanto em Roma e que dizem que cumpriu tão bem seu dever na jornada de Canes e que não abandonou nunca o cônsul Paulo Emílio, mas recebeu sobre seu próprio corpo diversos golpes que estavam dirigidos a ele?" Bândio respondeu que era ele verdadeiramente e mostrou-lhe diversas cicatrizes dos golpes que havia recebido. Marcelo replicou: — "Déa, quer que tenhas tão evidentes e tão notáveis marcas da boa vontade e amizade que nos tens, como não vieste incontinente para nós? Pensas que somos tão covardes e tão ingratos que não queremos dignamente remunerar a virtude de nossos amigos, a qual é respeitada mesmo pelos inimigos?" Depois de haver pronunciado essas palavras graciosas e tê-lo abraçado e acariciado, fez-lhe presente de um bom cavalo de serviço para a guerra e deu-lhe quinhentas dracmas de prata e depois desse dia, Bândio nunca mais abandonou o lado de Marcelo, também foi sempre em tudo muito leal e fiel companheiro, mostrando-se sempre enérgico em procurar, descobrir e acusar aqueles que, em sua cidade, tomavam partido contrário, os quais eram em grande número e haviam conspirado entre eles que no primeiro dia que os romanos saíssem para ir aos campos a fim de fazer alguma corrida sobre os inimigos, às suas costas fechariam a porta e atirariam fora toda sua bagagem.

XV. Vantagens obtidas por Marcelo sobre Aníbal

XV. Tendo Marcelo ouvido isto, alinhou seus soldados em batalha dentro da cidade junto das portas e à sua retaguarda colocou também as bestas de carga que traziam sua bagagem e avisou ao som da trombeta que proibia sobre pena de vida aos da cidade, que nenhum fosse tão ousado nem tão valente em se aproximar das muralhas. Quando Aníbal chegou perto e viu que não aparecia pessoa alguma com armas sobre as muralhas, aproximou-se em muito má ordem porque cuidou que se houvesse levantado algum motim entre o povo e a nobreza.

Entretanto, Marcelo mandou abrir a porta junto à qual estava e saindo de súbito com os melhores guerreiros que tinha, atacou de frente e, em seguida, saíram também os da infantaria por outra porta, correndo direitos a ele com grandes gritos e grande barulho. Para os enfrentar, Aníbal foi obrigado a dividir sua tropa em duas, mas assim que as dividiu, foi subitamente aberta uma terceira porta de onde saíram os cidadãos romanos, os quais caíram de todos os lados sobre os cartagineses que já estavam espantados e amedrontados com este ataque súbito, do qual não imaginavam nada, de sorte que mal podendo sustentar os que tinham sobre os braços, quando viram esse novo esforço e esta última carga, foram constrangidos a se retirar.

XVI. Foi essa a primeira vez que os soldados de Aníbal começaram a ceder aos romanos, que os embaraçaram com grande número de mortos e de feridos até dentro de seu acampamento, pois segundo escrevem alguns, ficaram bem cinco mil mortos sobre o campo e que não morreram mais de quinhentos da parte dos romanos. Todavia, Tito Lívio não afirma que a derrota fosse tão grande648, mas diz que esse encontro trouxe grande glória a Marcelo e uma coragem maravilhosa aos romanos depois de tantas perdas que haviam tido umas sobre as outras, porque começaram então a crer que não tinham mais negócio com um inimigo totalmente invencível e impassível, mas que podia bem algumas vezes sofrer perda e ter prejuízo.

XVII. Por essa razão e mais ou menos nesse tempo, tendo falecido um dos cônsules, o povo mandou chamar Marcelo para, em seu lugar, substituir o morto, e, tendo os outros magistrados procurado prorrogação até que ele tivesse chegado do acampamento e nem bem havia chegado, foi eleito no lugar do defunto por todas as vozes e sufrágios do povo. Todavia, quando procediam assim à eleição, trovejou com fé, o que os sacerdotes e adivinhos julgaram ser um sinistro presságio, mas não ousaram impedir abertamente nem se opuseram a sua eleição, porque temiam o povo, mas ele mesmo demitiu-se voluntariamente e deixou o consulado. Não ficou, entretanto, isento da guerra, porque foi feito procônsul e enviado ao acampamento de Nole, onde se pôs a castigar e prejudicar aqueles que estavam do partido de Aníbal, o qual sendo avisado, acorreu prestamente para os socorrer, e, de chegada, apresentou a batalha que Marcelo não quis aceitar logo, mas espreitou uma ocasião, quando Aníbal enviou uma boa parte de seu exército para saquear, não esperando mais ter batalha.

Foi então à procura deles, tendo distribuído aos da infantaria longos dardos, dos que se usam nos combates no mar, ensinando-lhes a bater de longe sem largá-los da mão, enquanto os cartagineses não sabiam nem jogar nem atirar o dardo nos seus, mas combatiam com dardos curtos a golpe de mão somente. Isso foi a causa pela qual todos aqueles que descarregaram foram constrangidos a mostrar as costas aos romanos e fugiram a bom fugir, de maneira que ficaram cinco mil mortos sobre o campo, quatro elefantes mortos também e dois pegados vivos e mesmo três dias depois desta batalha ainda aproximadamente trezentos649 soldados da cavalaria, parte espanhóis e parte numídios, vieram entregar-se aos romanos. Isto não tinha ainda acontecido a Aníbal, que havia por longo tempo, continuamente, mantido em boa união e leal concórdia um exército bárbaro, composto de soldados de diversas e diferentes nações, mas esses trezentos ficaram depois sempre fiéis até o fim a Marcelo e aos outros capitães que depois dele se encarregaram dos exércitos romanos.

XVIII. Terceiro consulado de Marcelo. Firmeza do senado com relação aos soldados que fugiram da batalha de Canes

XVIII. Algum tempo depois, tendo Marcelo sido eleito cônsul pela terceira vez650 foi-se para a Sicília, porque as vitórias e prosperidades de Aníbal haviam dado coragem aos cartagineses em querer reconquistar com dureza esta ilha, mesmo porque depois da morte do tirano Jerônimo, houve tumulto em Siracusa; ocasião em que os romanos, que de há muito haviam também enviado um exército e um pretor chamado Ápio, das mãos do qual recebeu Marcelo o exército, houve grande número de burgueses romanos que vieram suplicar-lhe ajudá-los nessa calamidade. Dos que escaparam da batalha de Canes, uns salvaram-se às pressas, os outros, em grande número, foram feitos prisioneiros, de maneira que parecia não haver ficado senão o bastante para guardar as muralhas de Roma e no entanto, esses poucos que ficaram tiveram o coração tão bom e tão grande que não quiseram resgatar os prisioneiros que Aníbal lhes abandonava com uma indenização bem pequena. Assim promulgaram um decreto pelo qual eles não seriam resgatados e sofreriam que uns fossem mortos, os outros vendidos como escravos fora da Itália e mais ainda enviaram esses que se haviam salvo fugindo à Sicília, com proibição de que não deviam pôr o pé na Itália, enquanto esta estivesse em guerra com Aníbal. Vieram eles todos juntos atirar-se aos pés de Marcelo, logo que chegou, prostraram-se na sua frente, suplicando-lhe dar-lhes um lugar honesto e direito de combater pela coisa pública, prometendo-lhe com gritos, lamúrias e lá grimas, que fariam ver pelo efeito, que o mau pedaço que haviam passado em Canes havia chegado mais cedo por desgraça e não por falta de coragem. Marcelo, tendo compaixão deles, escreveu ao senado em seu favor, rogando que lhes permitissem completar as tropas de seu exército com esses pobres homens à medida que elas viessem a se desguarnecer. Houve diversas razões pró e contra, alegadas nessa requisição, mas finalmente, foi concluído e resolvido pelo senado, que a coisa pública nada tinha a fazer com o serviço de homens covardes como mulheres. Todavia, se por acaso Marcelo quisesse se servir deles, não lhe era permitido dar a algum deles que porventura praticasse algum ato de bravura, coroas ou outros prêmios de honra que os capitães costumam dar às pessoas de bem e que fazem bem seu dever.

XIX. Marcelo leva de assalto a cidade dos leontinos

XIX. Este decreto do senado desagradou bastante a Marcelo, o qual na sua volta da Sicília fez suas queixas e reclamações em pleno senado, demonstrando que haviam cometido um erro não lhe concedendo este favor, pelos serviços tão bons e tão grandes prestados à coisa pública, pelo qual podia restituir a honra a tantos de seus concidadãos. Mas, enquanto estava na Sicília, recebeu alguns agravos e injúrias de Hipócrates, capitão geral dos siracusanos, o qual para gratificar os cartagineses, e por seu meio fazer-se senhor absoluto de Siracusa, mandou matar diversos cidadãos romanos651 na ocasião em que Marcelo foi fazer cerco à cidade dos leontinos, levando-a de assalto, mas não causou nenhum desprazer aos habitantes nativos e burgueses da cidade. Quanto aos traidores, porém, que aí encontrou e que haviam fugido de seu acampamento para se entregarem aos inimigos, mandou espancar a todos e enforcar depois. Hipócrates, no entanto, fez correr primeiramente em Siracusa um rumor de que Marcelo havia mandado passar à espada os leontinos indiferentemente, até as crianças, e sobre isso aproveitando o pavor e tumulto provocados por este falso alarme, apoderou-se facilmente de toda a cidade.

XX. Cerco diante de Siracusa

XX. Ouvindo isso, Marcelo, com todo seu exército deixou os leontinos, indo acampar perto de Siracusa, à qual enviou seus embaixadores para contar a verdade aos habitantes, sobre o que havia acontecido na cidade dos leontinos, ao contrário do que lhes haviam dado a entender, mas tudo aquilo não serviu de nada, porque não acreditaram, por causa de Hipócrates que, sendo o mais forte, os havia ganho. Começou então a se aproximar e assaltar a cidade de todos os lados, tanto por terra como por mar. Ápio conduzia os que assaltavam por terra e ele, com sessenta galeras de cinco remos652 por banco, bem armadas e cheias de toda sorte de apetrechos e armas de arremesso assaltava do lado do mar e jogava contra a muralha, mandando levantar sobre uma ligação de oito galeras unidas juntas, uma poderosa máquina e engenho de bateria para romper a muralha, confiando na grande multidão de seus engenhos de bateria e de toda outra provisão necessária para a guerra e também em sua reputação.

XXI. Gênio de Arquimedes

XXI. Mas Arquimedes não se preocupava com tudo isto, que também nada era junto dos engenhos que havia inventado, não que fizesse de outra forma caso nem conta, como fazem também os mestres de obras para mostrar seu espírito, pois eram na maioria cálculos de geometria que havia feito distraindo-se como passatempo, às instâncias do rei Hierão, o qual lhe havia solicitado para deixar um pouco de lado a geometria de especulação e trato intelectivo à ação das corporais e sensíveis e fazer que a razão demonstrativa fosse um pouco mais evidente e de mais fácil compreensão à plebe, entrelaçando-a pela experiência material à utilidade do uso. Pois esta arte de inventar e levantar instrumento e engenhos, que se chama a mecânica, tão amada e acatada por toda sorte de gente, foi primeiramente levada à frente por Arquitas e por Eudóxio, em parte para alegrar e embelezar um pouco a ciência da geometria e em parte também para estabelecer e fortificar por exemplos de instrumentos materiais e sensíveis alguns teoremas geométricos, dos quais não se podem encontrar as demonstrações intelectivas por razões indubitáveis e necessárias como é o teorema que ensina a encontrar duas linhas médias proporcionais, a qual não se pode encontrar pela razão demonstrativa e no entanto é um princípio e fundamento necessário a muitas das coisas que se põe em equação. Um e outro a reduziram à manufatura de alguns instrumentos que se chamam mesográficos, que servem para encontrar as linhas médias proporcionais, tirando algumas linhas curvas e secções transversais e oblíquas. Mas, depois, estando Platão enfurecido com eles, porque agora corrompiam-se e desgastavam em sua dignidade e o que havia de excelente na geometria, fazendo descer do terreno especulativo às demonstrações sensíveis e materiais e usando-as materialmente, onde é preciso empregar muito vilmente e muita baixeza na obra manual; depois desse tempo, a mecânica ou arte dos engenheiros, separou-se da geometria, ficando desprezada pelos filósofos, e tornou-se uma das artes militares.

XXII. Mas Arquimedes, tendo um dia proposto ao rei Hierão, do qual era parente e amigo familiar, que era possível lidar com tanta e tão pouco de força que quisessem, tal peso e tal fardo que lhes apresentasse, tendo se vangloriado, pelo que dizem, sobre a confiança na força das razões, das quais provava o conceito segundo o qual se houvesse outra terra, poderia remover esta aqui, passando-a para a outra, o rei Hierão maravilhou-se, pedindo-lhe para demonstrar este teorema e fazê-lo ver alguma experiência mostrando-lhe algum corpo sólido ou fardo pesado removido por uma débil força. Escolheu então um barco de não pequenas dimensões, o qual para trazer à terra fora da água, precisava muitos homens e ainda era necessário fazerem bastante força, mandou pôr dentro muitas pessoas, além da carga habitual e sozinho de longe, estando sentado à vontade, sem esforço algum, puxando facilmente com a mão a ponta de uma máquina de rodas e polias, fê-lo aproximar-se de si, deslizando tão docemente e tão uniformemente como se flutuasse e corresse sobre o mar. O rei encantou-se e tomou conhecimento desta prova, da grande força de sua arte, pedindo-lhe para lhe fazer alguma quantidade de engenhos semelhantes, que serviss em tanto para assaltar como para defender, de todos os jeitos de cercos e de assaltos, o que Arquimedes atendeu. Entretanto, o rei Hierão não se serviu deles nunca, porque passou a maior parte de seu tempo em paz, sem guerra, mas aquela provisão e munição de máquinas de guerra encontrava-se bem a propósito para os siracusanos, não somente pela quantidade fabricada, todos prontos, mas também pelo engenheiro mesmo que os havia inventado.

XXIII. Efeito de suas máquinas

XXIII. Assim, quando os de Siracusa viram os romanos assaltar dos dois lados, assustaram-se bastante e não houve um que pronunciasse uma só palavra, tanto estavam tomados de terror, não atinando em nada que fosse possível para resistir a tão poderosa força; mas quando Arquimedes começou a soltar seus engenhos, de repente uma infinidade de setas e de grandes pedras de chamar a atenção voaram pelos ares com um barulho e uma rapidez incríveis, contra os soldados da infantaria que vinham do lado da terra para o assalto, derrubando e quebrando os que se achavam na frente. No lugar onde elas caíam não havia corpo de homem que pudesse resistir a tão grande impetuosidade, nem sustentar tão grande fardo de maneira que todas as suas fileiras ficaram perturbadas. E quanto aos navios que assaltavam do lado do mar, uns foram postos a pique por longas peças de madeira, como são as vergas onde se amarram as velas dos navios que eram subitamente projetadas para a frente sobre a muralha com as máquinas e depois forçando-as com o peso, submergiam as galeras no fundo do mar; as outras eram postas em pé, pela proa com mãos de ferro e com ganchos feitos em forma de bicos de grou, mergulhavam as popas no mar. As outras, impressionadas com engenhos feitos um ao contrário do outro, que as faziam dar piruetas no ar, vinham se quebrar e amassar junto aos rochedos ao pé da muralha, não sem grande perda e morte das pessoas que estavam em cima e, muitas vezes, tendo levantado em todos os pontos fora da água, o que causavam horror vê-las assim suspensas e volteando no ar, até que os homens que estavam dentro eram jogados aqui e ali pelas reviravoltas, por fim, vinham todas vazias quebrar-se contra as muralhas ou então cair no mar quando a garra dos engenhos as largavam.

XXIV. Ora, quanto à máquina que Marcelo fazia aproximar sobre uma ligação de galeras unidas, chamava-se "sambuca", pela semelhança na forma que tinha com o instrumento de música do mesmo nome que é uma harpa; e como ela estava ainda bastante longe, destacou-se sobre a muralha uma grossa pedra com o peso de dez quintais 653 que, um segundo após e depois de um terceiro golpe sobre golpe, os quais vinham até dentro da "sambuca" com um troar e uma tempestade medonhas, amassando toda a base, desmembrando e despedaçando a ligação das galeras que a sustinham, de tal jeito que Marcelo, não sabendo onde estava, foi constrangido a se retirar pessoalmente com rapidez para trás e mandar ordenar a retirada também daqueles que assaltavam do lado da terra.

XXV. Foi feito conselho para saber o que devia fazer e combinado que, no dia seguinte, antes do clarear do dia, se fosse possível, se aproximariam da muralha porque os engenhos de Arquimedes, que eram duros e fortemente estendidos, enviavam por esse meio os golpes de suas pedras e de suas setas sobre suas cabeças e de perto tornando-se de todo inúteis por não ter o espaço e a distância do alcance que precisavam; mas Arquimedes estava de longa data preparado para isto, tendo feito provisões de engenhos, cujo alcance era proporcionado a todas as distâncias, as setas curtas, os ganchos não muito longos, furadores e arqueiras perto uma da outra na muralha onde havia trabucos de caça rápida para descarregar de perto, colocados em lugares que os inimigos não podiam ver de fora. Pelo que, quando pensaram em se aproximar julg ando estarem cobertos, sem que ninguém os visse, todos ficaram espantados quando sentiram a acolhida súbita por infinitos golpes de seta e a tormentados pelas pedras que lhes caíam a prumo sobre as cabeças, pois não havia lugar na muralha de onde não atirassem, razão porque foi forçado a se retirar desabridamente atrás da muralha.

Quando estavam, porém, ainda distanciados, as flechas, pedras e setas que voavam de todos os lados, iam procurá-los e alcançar até onde estavam já distanciados ao longe, de maneira que houve muitos que enlouqueceram e muitos dos seus navios partidos e amassados sem que pudessem de jeito algum, em represália, prejudicar seus inimigos por causa de Arquimedes que havia colocado a maioria de seus engenhos a coberto e por trás e não sobre a muralha, de tal jeito que parecia que os romanos eram combatidos por alguns deuses, tanto eles recebiam prejuízo e males e não sabiam de onde vinham e de quem.

XXVI. Todavia Marcelo escapou salvo, e criticando de seus operários e dos mestres engenheiros que tinha em seu campo, disse-lhes: — "Não queremos cessar de guerrear654 a esse geométrico briaréu daqui que está brincando em mergulhar e afundar nossos navios no mar, repelindo vergonhosamente nossas "sambucas", superando todos os gigantes de cem mãos, de que os poetas nas fábulas fazem menção, tanto nos atira setas, pedras e flechas, tudo de um golpe". Pois em verdade também todos os outros siracusanos estavam como o corpo e os membros de toda a equipagem de Arquimedes e ele, sozinho, era a alma que movia e removia tudo, estando todas as outras armas em repouso, somente as suas usadas, tanto para assaltar como para defender. Finalmente, Marcelo, vendo seus soldados tão amedrontados, que se percebessem somente o final de uma corda ou de alguma peça de madeira aparecendo sobre a muralha, fugiam correndo e gritando que era Arquimedes que queria soltar alguma máquina contra eles, desistiu de se aproximar mais nem de mandar dar assaltos à muralha, deliberando obtê-la pela demora do cerco.

XXVII. No entanto, Arquimedes teve o coração tão elevado e o entendimento tão profundo que, tendo um verdadeiro tesouro escondido, com tantas invenções geométricas, não se dignou jamais deixar por escrito nenhuma obra que ensinasse a maneira de construir essas máquinas de guerra, pelas quais adquiriu então glória e fama não da ciência humana, mas antes da divina sapiência; assim reputando toda aquela ciência de inventar e compor máquinas e geralmente toda arte que traz qualquer utilidade para colocá-la em uso vil, baixo e mercenário, empregou seu espírito em escrever somente coisas, das quais a beleza e a sutileza eram entrelaçadas com a necessidade. Pois o que escreveu foram teoremas geométricos, que não recebem nenhuma comparação de quaisquer outras que sejam, porque as matérias de que elas tratam, se provam pela demonstração, dando-lhes a beleza e o valor.

E a demonstração, a prova extraordinária que dispensa o que dizer, com uma força e facilidade maravilhosas, não poderia encontrar em toda a geometria as mais difíceis nem mais profundas matérias escritas em termos mais simples e mais claros, e por princípios mais fáceis do que são aqueles que descobriu. O que uns atribuem à vivacidade e destreza de seu entendimento, que por natureza era assim à. vontade, os outros se referem a um trabalho extremo, com o qual facilitava tanto essas coisas que pareciam não lhe haver custado nada em fazer, pois não há homem algum que por si mesmo possa inventar a demonstração desses teoremas ou que empregasse algum trabalho em os procurar, e no entanto, logo que o veem e compreendem, cada um tem a opinião, por si mesmo de que foi bem achada, porque conduz facilmente e por uma via plana o que toma para demonstrar. Portanto, parece-me muito verossímil o que dizem dele de que correspondia tão afetuosamente à ternura e atrativos desta sereia, a qual, pela maneira de dizer, alojava-se em sua casa, que esquecia-se de beber e comer e mesmo do trato de sua pessoa, de sorte que muitas vezes seus servidores o levavam à força ao banho para lavá-lo, untá-lo e esquentar, e mesmo assim, nas cinzas da lareira ainda desenhava algumas figuras geométricas. E enquanto o untavam com óleos perfumados, com o dedo traçava linhas sobre seu corpo nu, tanto estava fora de si, transportado em êxtase pelo prazer que tinha no estudo da geometria e verdadeiramente encantado com o amor das Musas. Mas, entre o muito que inventou, parece-me que apreciava mais era a demonstração da proporção que há entre o cilindro, isto é, a coluna redonda e a esfera ou bola nela contida, pelo que pediu a seus pais e amigos que, quando morresse, mandassem colocar sobre sua sepultura um cilindro contendo uma esfera maciça com uma inscrição da proporção, pela qual o contido excede o conteúdo. Eis o que era Arquimedes, que guardou tão bem o que havia em sua inteligência e em sua cidade invencível.

XXVIII. Diversas vantagens de Marcelo na Sicília. Escala uma das torres de Siracusa e apodera-se da cidade

XXVIII. Mas, voltando a Marcelo, durante o cerco de Siracusa, tomou a cidade de Megares655 na Sicília, uma das mais antigas que há em toda a ilha, e mais o campo de Hipócrates, junto de Aciles656 onde matou mais de oito mil homens, surpreendendo-os como estavam, após haverem alojado e fortificado seu acampamento. Depois percorreu uma boa parte da região plana da Sicília, fazendo rebelar as cidades que estavam do partido dos cartagineses e, em todos os encontros que teve, derrotou sempre aqueles que ousavam se apresentar em batalha à sua frente. Depois aconteceu que surpreendeu um capitão lacedemônio chamado Damipo, quando saía de Siracusa, por mar. Os siracusanos, desejando resgatá-lo, solicitaram-no como espólio, sendo que sobre isto houve conferências por diversas vezes, estendendo-se as mesmas por meio de abaixo-assinados. Nesse ínterim, deu de considerar uma certa torre que não estava cuidadosamente guardada e na qual poderia secretamente se reunir bom número de pessoas, sendo que a muralha da cidade, nesse lugar não era nada difícil de escalar. Depois de haver calculado bem a altura da dita torre, por ter muitas vezes se aproximado e haver por diversas vezes conferenciado a respeito, fez provisão de escadas e aproveitou a ocasião de uma festa que os siracusanos celebravam em honra de Diana, pelo que não pensavam nesse dia senão em beber, jogar e comer bem, de sorte que não somente apoderou-se da torre, mas encheu todo o recinto das muralhas com seus soldados armados, antes que clareasse o dia e mandou pôr abaixo o portal da cidade que chamam Hexápilo. E assim que os siracusanos tiveram a surpresa e começaram a desmaiar, mandou tocar as trombetas de todos os lados, o que os amedrontou tão fortemente, que se puseram todos a fugir, pensando que a cidade toda já estivesse tomada. Onde se achava o mais belo, o maior e o mais forte quarteirão da cidade, chamado Acradino, esta parte não estava ainda tomada porque era toda murada e fechava-se contra o resto da cidade, que está dividida em duas outras partes, das quais uma se chama a Cidade Nova e a outra se chama A Fortuna. Aquelas duas partes, estando ganhas, Marcelo ao raiar do dia entrou pelo portal de Hexápilo e como seus capitães disseram que se sentiam bem felizes em tomar assim com tanta facilidade tão bela cidade, dizem, que considerando sua grandeza e sua beleza, pôs-se a chorar de compaixão pelo que previa que iria acontecer, pensando consigo mesmo como ela mudaria de forma bem cedo, quando fosse toda pilhada e saqueada pelo seu exército, pois não havia capitão que ousasse dizer não aos soldados que pediam o saque, havendo ainda muitos que queriam a toda força que a queimassem e arrasassem inteiramente. Marcelo, porém, não quis nem ouvir falar, mas ainda lhes concedeu, embora contra a vontade, que pudessem tirar proveito dos bens e dos escravos, defendendo os moradores e impedindo-os de tocar de maneira alguma nas pessoas livres, e de não matar, ultrajar, violentar nem tomar escravo algum dos siracusanos. Enquanto eles se portavam tão moderadamente e tão delicadamente, o que lhe fazia maior mal era ver tão bela cidade reduzida a um final tão infeliz. Não podia se conter em mostrar entre a alegria que sentia pela vitória, a piedade e a compaixão do que esperava ver dentro de um instante, tantos bens e uma opulência tão abundante, dissipadas e reduzidas a nada. Pois, segundo se diz, a riqueza que foi então retirada de Siracusa, não era menor do que a de Cartago, que depois, não muito tempo depois, foi saqueada do que ainda restava na cidade e foi tomada por traição e logo depois pilhada pelos soldados embora a contragosto, com exceção dos bens e das finanças dos reis, que foram postos à parte para serem levados para o tesouro público de Roma.

XXIX. Morte de Arquimedes. Dor que Marcelo demonstra

XXIX. Mas não houve nada nesta tomada de Siracusa que tanto desgostasse a Marcelo, como a inconveniente atitude de Arquimedes, o qual estando por acaso em seu estúdio, onde procurava a demonstração de algum teorema geométrico, do qual havia feito um esboço e no qual estavam fixos não só seu pensamento como também seus ouvidos e seus olhos, ‘não ouvira o barulho dos inimigos que corriam pela cidade. E muito admirado ficou, quando viu perto de si um soldado que lhe disse para vir falar com Marcelo. Arquimedes respondeu-lhe que esperasse até ter terminado seu teorema e reduzido sua demonstração, pelo que o soldado, enfurecendo-se, desembainhou a espada e matou-o; outros dizem que o soldado romano, ao chegar, apresentou-lhe a ponta da espada para o matar e que Arquimedes tendo percebido de repente, pediu-lhe que esperasse um pouco a fim de que o que estava procurando não ficasse incompleto e sem demonstração: o soldado não se preocupou com o seu pedido e matou-o. Ainda há os que contam de uma terceira forma, dizendo que alguns soldados que o encontraram pelas ruas, quando ia levar a Marcelo alguns instrumentos de matemática dentro de uma caixa, como relógios do sol, esferas, ângulos, com os quais se media a olho a grandeza do sol, pensando que fosse ouro ou prata, ou algum objeto precioso que levava nesta caixa, mataram-no. Mas é bem certo que Marcelo ficou seriamente descontente e mesmo horrorizado e não quis jamais ver o homicida que o matou como um homem maldito e excomungado e tendo encontrado parentes de Arquimedes, agradou-os e honrou-os com sua amizade.

XXX. Sua clemência, sua humanidade

XXX. Ora, na ocasião, os romanos eram estimados por todas as outras nações como homens que compreendiam como era necessário conduzir uma guerra, tidos por bons combatentes e perigosos no combate, mas com equidade» clemência e humanidade e para não falar de todas as outras virtudes civis e pacíficas, não haviam ainda mostrado às nações estrangeiras exemplos nesse sentido, até o tempo de Marcelo, que então mostrava, com efeito, aos gregos, que os romanos eram mais justos do que eles, pois tratavam tão humanamente aos que tinham o que fazer com ele, fazia tantos favores aos particulares e a cidades inteiras que se por acaso houvesse qualquer coisa feita menos humanamente na cidade de Ena657 ou a Megares ou contra os siracusanos, isto foi antes por culpa dos seus próprios habitantes, que sofreram o prejuízo causado por si mesmos e, para confirmar, citarei um exemplo entre muitos.

XXXI. Perdoa à cidade de Êngio

XXXI. Há uma cidade na Sicília chamada Êngio que não é grande, mas muito antiga e famosa pela praça que ali existe, por causa da aparição de certas deusas quando são reclamadas e que se chamam as Mães658. Dizem que foram os candiotos que primeiramente fundaram e construíram o seu templo, onde se acham lanças e armamentos de cobre, sobre os quais há o nome Meriones e, sobre outras, está escrito Ulisses, armas estas que são consagradas às deusas. Esta cidade favorecia com bastante teimosia os cartagineses, e Nícias, o seu mais influente cidadão, fazia tudo o que podia, ao contrário, para diverti-los e fazê-los virar para o lado dos romanos, falando francamente e a descoberto em todas as assembleias do conselho, demonstrando por vivas razões que seus adversários, que ‘aconselhavam o contrário, falhavam pesadamente em prejuízo da coisa pública. Por isso estes adversários, temendo sua autoridade e seu poder, conspiraram entre eles em prendê-lo e o entregar às mãos dos cartagineses, quando Nícias, tendo desconfiado e percebendo que o espreitavam para o prender, praticou uma esperteza para se salvar. Espalhou em público alguns comentários desagradáveis e fez diversas coisas contra a honra e contra a aparição na qual acreditavam como coisa muito certa, dessas deusas, dizendo que tudo era um abuso e que não precisavam mais ter fé. Seus inimigos ficaram contentes com essas expressões, achando que a comuna o julgaria incontinente e assim ele mesmo encontraria o castigo que pretendiam fazê-lo sofrer.

Um dia, portanto, que haviam entre eles marcado para prendê-lo, aconteceu que havia assembleia na cidade, na qual Nícias discursou diante do povo, aconselhando alguma coisa, mas assim que se achava no meio de sua proposição, deixou-se cair a todo o comprimento sobre a terra, pelo que a assistência se espantou bastante. Todavia, ninguém se mexeu e algum tempo depois, levantou um pouco a cabeça e, virando-a daqui e dali, falou com uma voz fraca e tremula, que foi pouco a pouco aumentando e se elevando até que se viu toda a multidão tomada de pavor, sem que ninguém ousasse dizer palavra. Então, jogando suas vestes e rasgando seu saye659, levantou-se sobre os pés, semi-nu e correu para a porta do teatro gritando que as deusas Mães o atormentavam. Ninguém ousou tocar-lhe, nem se pôr à sua frente pelo terror supersticioso que sentiam, pensando que fosse um castigo divino e por esse meio lhe foi fácil ganhar a porta da cidade e fugir e nunca mais fez gesto nem disse palavra de homem que não parecesse fora de si cu possuído do espírito maligno. Sua mulher, que se entendia com ele e o ajudava, foi primeiramente prostrar-se aos pés das deuses Mães em seu templo, suplicando e depois fingindo ir procurar seu marido, que como homem fora de seu bom senso percorria os campos, saiu da cidade com seus filhinhos sem que ninguém impedisse e assim se retiraram todos juntos, sem perigo, da presença de Marcelo em Siracusa.

XXXII. Depois os engianos praticaram insolências e tantas loucuras, que Marcelo os foi mandando prender a todos e amarrá-los como para castigá-los, mas Nícias veio a sua presença e, abraçando seus joelhos e beijando-lhe as mãos com lágrimas nos olhos, suplicou-lhe que tivesse piedade de seus pobres concidadãos, começando por aqueles que eram seus maiores inimigos. Esta bondade de Nícias enterneceu o coração de Marcelo, de tal sorte que perdoou a todos sem causar nenhum prejuízo à cidade e deu a Nícias várias terras, além de diversos outros presentes, belos e ricos que lhe fez Possidônio, o filósofo, assim escreve em sua história.

XXXIII. Transporta à Roma os quadros, as pinturas, as estátuas de Siracusa

XXXIII. Marcelo, sendo chamado pelos romanos para a guerra que sustentavam dentro de se país e de suas portas, voltou levando consigo a maio parte dos mais belos quadros, pinturas, estátuas outros ornamentos encontrados em Siracusa, com intenção de embelezar seu triunfo e depois ornar enfeitar com eles a cidade de Roma, que ainda não tinha conhecimento de nada tão maravilhoso nem de singular em tais trabalhos, pelo seu acabamento, e graça e delicadeza. Obras de pintura e de escultura também não haviam ainda entrado e Roma estava cheia somente de armas bárbaras, de arreios e despojos manchados de sangue e coroas de troféus, e monumentos de vitórias e triunfos ganhos sobre diversos inimigos, que não eram em nada espetáculos agradáveis nem próprios para espectadores educados, mas parecia, como Epaminondas chamava a planície da Beócia, "o cadafalso onde Marte jogava seus jogos". Também Xenofonte chamava a cidade de Éfeso, "a loja da guerra". Assim, parece-me, que podiam chamar a cidade de Roma, "o templo de Marte guerreando", como diz Píndaro660.

XXXIV. Efeitos desses monumentos de arte sobre o espírito dos romanos

XXXIV. Dessa maneira conseguiu Marcelo ainda muito mais da boa graça e do favor da plebe, por haver embelezado e alegrado a cidade de Roma com as engenhosas delícias e elegantes volúpias dos gregos. Mas, em oposto, Fábio Máximo foi mais agradável aos velhos por não haver trazido nada de semelhante para fora da cidade de Tarento, quando a tomou; pois é bem verdade que levou ouro e prata sonante e toda a riqueza útil, mas quanto às imagens e quadros, deixou-os em seus lugares dizendo uma palavra que depois foi bem recolhida e bem anotada: — "Deixemos aos tarentinos seus deuses, que os estão encolerizando". E, ao contrário, as pessoas honradas repreendiam Marcelo, primeiramente porque fazendo isso havia suscitado um grande ódio e inveja contra a cidade de Roma, na qual não somente os homens mas também os deuses eram detidos como prisioneiros e levados em triunfo. Depois, porque havia enchido a plebe de curiosidade ociosa e de conversa, levando em conta que ele não fazia outra coisa a maior parte do dia, senão distrair-se em palestrar e discorrer sobre a excelência dos operários, de suas artes e seu trabalho, os quais, antes, não estavam acostumados senão a trabalhar e a guerrear, sem saber o que havia de agradável na ociosidade supérflua, como diz Eurípides falando de Hércules:

Simples, grosseiramente adornado
Mas das virtudes principais ornado.

XXXV. Marcelo recebe as honras da aclamação

XXXV. Todavia, Marcelo glorificou-se entre os gregos, dizendo que havia ensinado aos romanos a prezar e estimar os belos e admiráveis trabalhos da Grécia, o que eles não conheciam antes, mas na sua volta da Sicília, os invejosos e mal intencionados opuseram-se a que a honra do triunfo lhe fosse concedida e ele, sabendo que ainda havia deixado alguma coisa por fazer na Sicília e que a guerra não estava por completo terminada, com o que temia que um terceiro triunfo lhe trouxesse mais inveja, contentou-se com sua boa vontade em ter a honra do grande triunfo somente na montanha Alba e a do pequeno na cidade de Roma. Esta história de menor triunfo chama-se no grego evan e os romanos o denominam ovatio, com a diferença de que na ovatio, aquele a quem ela é tributada não entra na cidade sobre o carro triunfal, puxado por quatro cavalos, nem traz sobre sua cabeça louro no chapéu de triunfo, nem tem as trombetas e os clarins tocando à sua volta, porém marcha a pé, com sandálias, ao som de flautas e oboés, trazendo sobre a cabeça um chapéu de murta661, de forma que esta maneira de entrar não demonstra propriamente uma vitória guerreira, sendo aos olhos antes agradável do que terrível. É para mim um grande argumento acreditar que essas duas espécies de entradas que concedem aos capitães que voltam vitoriosos, foram antigamente distinguidas, antes, pela maneira do que pela grandeza de seus feitos, pois aqueles que tinham praticado grande mortandade e efusão de sangue humano, vindo sobre seus inimigos, entravam na magnificência de seu triunfo, que era todo marcial e terrível, seguidos de seus soldados todos armados e coroados com chapéus de louro, nem mais nem menos do que quando faziam a revista e a purificação de seu acampamento de guerra. Mas esses que, sem explorar as armas, pela amável via de reclamações ou pela eloquência vinham ao fim de suas empreitadas, a lei lhes concedia a honra com outra forma de entrada pacífica, cheia de festa e de alegria, porque a flauta é um passatempo que pertence à paz e a murta é uma árvore consagrada a Vénus, a qual mais que outro deus ou deusa, odeia a força, a violência e a guerra. E esta segunda espécie de entrada chamada ovatio, não é como pensaram diversos gregos, derivada do termo evan, que é uma voz e canto de alegria usado pelos que estavam habituados a comboiar e acompanhar o capitão, gritando e cantando evan, mas, sim, que alguns gregos quiseram tirar sua derivação de um costume que lhes era comum, estimando que uma parte desta honra pertencia ao deus Baco, o qual denominamos Evio e algumas vezes Triambo, mas não é essa a verdadeira derivação do nome, porque quando da entrada triunfal do capitão vitorioso, segundo os antigos costumes de Roma, imolava-se um ou diversos bois, e na ovatio, imolava-se somente uma ovelha que os romanos chamam ovem, daí a entrada ser denominada ovatio.

XXXVI. Diferentes sentimentos de Esparta e de Roma sobre o mérito das vitórias

XXXVI. Nisto se encontra a diferença que há entre aquele que estabeleceu as leis e costumes dos romanos e o que legislou para os lacedemonios, pois eles organizaram os sacrifícios para a vitória em oposição um do outro, porque em Esparta o capitão, que por astúcia ou por via amável, faz o que quer, sacrifica aos deuses um boi e aquele que vence uma batalha, lutando com as armas, sacrifica um galo, pois embora fossem muito belicosos, ainda assim consideravam maior proeza e maior conveniência para o homem, resolver seus conflitos por admoestações, pelo bom senso e pela razão do que a execução pela coragem e pela luta das armas. Assim se pode considerar qual dos dois melhor organizou.

XXXVII. Quarto consulado de Marcelo. Acusação intentada contra ele pelos habitantes de Siracusa. Sua generosidade a respeito

XXXVII. Em suma, sendo Marcelo eleito cônsul pela quarta vez662, seus inimigos, mal intencionados, levantaram os siracusanos e os persuadiram a virem se queixar ao senado e gritar contra ele, acusando-o de que os havia cruelmente e desumanamente tratado, em desacordo com as alianças e confederações que tinham há muito tempo com os romanos. Estando um dia Marcelo no Capitólio, onde oferecia sacrifício, assim que se abriu o senado, os deputados de Siracusa entraram, jogaram-se de joelhos e requereram que lhes dessem audiência e que lhes fizessem justiça. O outro cônsul, que estava presente, tratou-os com aspereza, ofendido por haverem tão maliciosamente espreitado a ocasião que Marcelo foi avisado e, indo imediatamente, sentou-se na cadeira consular, onde deu audiência e despachou alguns negócios como cônsul. Depois, quando terminou, desceu da cadeira e foi, como pessoa comum, ao lugar onde têm o hábito de responder aqueles a quem acusam de algum crime, dando licença aos siracusanos para dizer e alegar o que quisessem contra ele.

Ficaram os siracusanos muito admirados quando viram a gravidade desse personagem e seu modo seguro em todas as coisas e se antes haviam provado não poder competir com ele nas armas, agora então acharam-no mais temível, com sua veste consular, de maneira que não ousavam nem olhá-lo de frente. No entanto, à instigação dos adversários de Marcelo, asseguraram-se por fim e começaram sua acusação entremeada de queixa e lamentações, de onde, em suma, a substância era que, sendo amigos e aliados dos romanos, haviam sofrido dele muita coisa que os outros capitães muitas vezes não faziam aos seus inimigos. Marcelo prontamente respondeu o contrário, que pelos diversos males e diversas faltas que os romanos haviam recebido deles, não haviam sofrido nada, senão aquilo que era inevitável sofressem aqueles que resistem até serem tomados pelas armas, do que eles mesmos haviam sido a causa, porque não quiseram obedecer nem consentir nas condições razoáveis de paz que haviam por diversas vezes proposto. E não podiam dizer também, em sua defesa, que foram os tiranos que os forçaram a sustentar essa guerra, pois ao contrário para poderem nela entrar, ficaram até contentes em se submeter a uma tirania.

XXXVIII, Após uns e outros terem deduzido suas razões, os siracusanos, como é costume, saíram fora da sala do senado e Marcelo também, deixando a presidir seu companheiro de consulado e esperou na porta o julgamento do senado sem nada mudar em sua fisionomia, nem na sua costumeira compostura, nem por receio da sentença, nem pela cólera contra os siracusanos, mas esperando pacientemente o resultado do julgamento. Depois que os votos dos senadores foram recolhidos e que pela pluralidade deles Marcelo foi absolvido, os siracusanos, chorando, atiraram-se aos seus pés e suplicaram-lhe não guardasse no coração, nem exercesse sua ira contra eles, que estavam ali presentes e também que tivesse piedade do resto da cidade, a qual tinha boa lembrança das graças que havia recebido dele e se considerava sua devedora. Marcelo, enternecido e tendo piedade devido as suas súplicas, perdoou-os e depois fez todo o gosto aos outros siracusanos, pois a suas instâncias e requisição, o senado autorizou e confirmou o que ele havia concedido, que pudessem viver em plena liberdade sob suas leis e aproveitar sossegadamente dos bens que lhes tinham ficado, em recompensa do que os siracusanos fizeram-lhe diversas grandes honras, entre outras, um decreto segundo o qual, dali em diante, quantas vezes Marcelo ou algum de seus descendentes pusessem os pés na Sicília, os Siracusanos celebrariam festa pública, trazendo sobre suas cabeças chapéus com flores e fazendo sacrifícios aos deuses.

XXXIX. Vai atacar Aníbal

XXXIX. Isto feito, Marcelo começou a virar-se contra Aníbal e no lugar onde quase todos os outros cônsules e todos os outros capitães, depois da derrota de Canes haviam usado desta farsa contra ele, em fugir da liça e nunca se apegar em combate sério, tomou um caminho todo oposto, estimando que, com a demora, com a qual pensava poder minar e consumir as forças de Aníbal, teria este mais cedo terminado a obra de arruinar e destruir toda a Itália. E Fábio Máximo, que confiava mais na segurança, não se achava em condições de remediar a atual doença da coisa pública romana, esperando que esta guerra terminasse pela fraqueza das forças de Roma e cometendo a falta que cometem os médicos medrosos, quando não ousam conscientemente remediar a enfermidade enquanto é tempo, estimando que a consumação das forças faça dirimir a enfermidade. Foi primeiramente contra as cidades dos samnitas, grandes e poderosas que estavam, sob tratado, em obediência aos romanos, tomou-as com boa provisão de trigo e dinheiro que encontrou, além de três mil guerreiros que Aníbal aí havia deixado para guardá-la e que aprisionou.

XL. Vantagens

XL. Tendo Aníbal depois, em Apúlia, morto o vice-cônsul Cneu Fúlvio com663 onze comandantes de mil homens da infantaria cada, e tendo também feito em pedaços a maior parte de seu exército, Marcelo escreveu cartas a Roma, pelas quais procurava reconfortar o senado e o povo, dizendo que iria para aquele lugar e que ficassem seguros de que expulsaria Aníbal. Lidas essas cartas, que não reconfortaram em nada os romanos, assim escreve Lívio664, mas aumentaram seu temor e seus cuidados, porque aquilatavam o perigo a vir, muito maior que a perda passada, ainda mais possuindo Marcelo maior e melhor capitão do que Fúlvio. Todavia, Marcelo, seguindo o que havia escrito a Roma, expulsou Aníbal fora de Apúlia, fazendo-o retirar-se para a Lucânia, região que, ficando junto de uma cidade chamada Numistron, aí se alojou sobre as encostas em lugares fortes e vantajosos. Marcelo acampou perto, na planície, e no dia seguinte, foi o primeiro que iniciou a batalha, a qual não foi decidida, ainda que fosse bastante dura e tomasse muito tempo, pois tendo começado o combate às nove horas da manhã, lutaram até a noite escura e ao raiar do dia seguinte, enfileirou seus homens novamente, em combate, entre a decomposição dos mortos, e desafiou Aníbal outra vez a ver quem ficaria com a vitória, o que ele não quis aceitar e partiu dali. Por esse meio, Marcelo teve sossego para despojar à vontade os corpos mortos de seus inimigos e dar sepultura aos seus. Isso feito, incontinente se pôs a perseguir pelo rasto seu inimigo, o qual lhe preparou diversas emboscadas e ciladas, mas ele não caiu sequer numa só e, em todos os encontros e escaramuças onde se atracavam, levou sempre vantagem, adquirindo grande estima e reputação.

XLI. Por essa ocasião, estando próximo o tempo em que seria preciso eleger novos cônsules, o senado foi de aviso que se mandasse chamar mais cedo o outro cônsul que se achava na Sicília, do que remover Marcelo, que estava no encalço de Aníbal. Pelo que, chegado que foi o outro, o senado ordenou-lhe nomear ditador a Quinto Fúlvio — o ditador não é eleito, nem pelo povo, nem pelo senado, mas um dos cônsules ou um dos pretores o nomeia, tal como lhe apraz, em plena assembleia do povo — daí parece que o nome deriva de dicere, que em língua latina significa nomear. Todavia, há outros que dizem ser a origem devida ao fato de que o ditador não submete seus atos à apreciação de ninguém, nem à deliberação do senado, ou à pluralidade dos votos do povo e seus sufrágios, mas ordena, com sua própria autoridade, o que bem lhe parece, sem falar nem perguntar nada a quem quer que seja. De fato, parece ser isto, pois as ordens deles emanadas têm o nome de edictas, que nós gregos chamamos diatagmata. Tendo, portanto, vindo da Sicília o companheiro de Marcelo no consulado, quis nomear como ditador um outro que não era aquele que o senado havia apresentado, e para não ser constrangido a fazer o que não tinha vontade, partiu de novo e voltou para a Sicília. O povo então designou e nomeou ditador a Quinto Fúlvio e os do senado escreveram a Marcelo para que este confirmasse, no que atendeu a vontade do povo, sendo de repelão eleito procônsul para o ano seguinte, em cuja posição, tendo conferido com Fábio Máximo os negócios da guerra, resolveram ambos que Fábio iria experimentar retomar a cidade de Tarento, enquanto Marcelo iria guerrear Aníbal, para evitar que pudesse ir em socorro daquela.

XLII. Enfrenta um revés perto de Canúsio

XLII. Decidido isto, entre eles, Marcelo saiu à procura do cartaginês, perto da cidade de Canúsio, pois Aníbal estava sempre mudando de pouso para não ser constrangido a lutar contra a sua vontade, visto que sempre encontrava Marcelo à sua frente. Mas, de uma feita, enquanto estava parado num certo local, Marcelo molestou-o tanto por meio de contínuas escaramuças e alarmas, que o atraiu à batalha, a qual foi ferida durante um dia inteiro e se prolongou até alta noite, quando ambas as facções foram obrigadas a se retirar. Mas, no dia seguinte, cedo, logo ao clarear, Marcelo ainda compareceu no campo com seu exército, pronto para o combate. Com isso Aníbal ficou aborrecido, reuniu suas tropas e lhes fez um discurso no qual pedia-lhes para combater ainda uma vez e, se jamais haviam combatido, no passado, por amor dele, que agora o fizessem: — "Pois vedes, disse ele, como depois de havermos vencido e ganho tantas batalhas, não temos mais descanso para tomar fôlego à vontade e não podemos ter repouso, por mais vitoriosos que sejamos, se não expulsarmos este homem daqui". Depois de ter assim falado, conduziu seus soldados à batalha, na qual Marcelo, um tanto fera de propósito, resolveu usar de um ardil que trouxe aos romanos desastrosas consequências. Vendo a ponta direita de suas tropas muito apertada, mandou marchar para a frente uma das legiões que estavam atrás, para sustentar aqueles que precisavam de auxílio, mas essa mudança desorientou os que combatiam, dando a vitória aos inimigos, que assim mataram uns dois mil e setecentos romanos.

XLIII. Anima suas tropas

XLIII. Mas, voltando Marcelo ao seu acampamento, mandou, com presteza, reunir seus homens, aos quais começou a dizer que estava vendo muito bem homens e corpos de armas, mas não via um romano sequer. Ouvindo tal, os soldados pediram perdão pela falta que haviam cometido, ao que ele lhes respondeu que não os perdoaria enquanto fossem soldados vencidos e sim quando estivessem vitoriosos. Assim, no dia seguinte, ia levá-los de novo à luta, para que Roma soubesse mais depressa de sua vitória do que da sua fuga. Tendo assim falado, ordenou que distribuíssem alimentação àquelas tropas que haviam sido as primeiras a fugir no dia anterior, de maneira que entre elas se achavam muitos soldados em perigo pelos golpes recebidos durante a refrega, mas não houve um só em quem as palavras de Marcelo não doessem mais do que os seus próprios ferimentos.

XLIV. Derrota Aníbal

XLIV. No dia seguinte, muito cedo, foi colocada fora da tenda do capitão, a cota de armas, pintada de escarlate, que era o sinal usado para designar que ia haver luta. As companhias, que na véspera haviam sido desonradas, foram colocadas, a seu próprio pedido, na frente, enquanto os capitães fizeram retirar do campo as tropas que não tinham sido rompidas na batalha passada, colocando-as na retaguarda. Vendo isto, Aníbal exclamou: — "Ó deuses! Que homem é este, que não sabe se conter, nem na boa, nem na má sorte? Pois é o único que não dá descanso ao inimigo quando o vence e nem faz caso de repouso quando é vencido e abatido! Não teremos nunca um belo feito a assinalar, contra ele, pois ganhando ou perdendo, sempre acha ocasião de espetar um ferrão no inimigo, com a maior ousadia e o maior empreendimento. Isto é que é a vergonha!665" Depois destas admoestações, de uma e outra parte começaram os dois exércitos a marchar e a entrechocar-se, onde os homens eram tão fortes tanto de um como de outro lado. Aníbal ordenou que fizessem marchar na frente os seus elefantes, que deviam entrar até dentro das linhas dos inimigos. Isto não deixou de perturbar um pouco e fazer estremecer as primeiras filas, até que Flávio666, que comandava um esquadrão de mil infantes, tomou uma bandeira na mão e marchou ao encontro dos animais, dando no primeiro um golpe tão rude e violento com o mastro da bandeira, que o fez virar para trás. O primeiro, tendo assim volteado, foi de encontro ao segundo, que também se virou e foi contra os demais, causando uma tremenda confusão. Vendo isto, Marcelo ordenou à cavalaria que empregasse todo o seu esforço naquele local, onde os inimigos se achavam assim atrapalhados e confundidos com os elefantes, os quais se voltavam contra eles, fazendo-os se embaraçarem ainda mais, e descarregaram tão asperamente contra os cartagineses que eles viraram as costas e voltaram, abatidos, até dentro de seu acampamento, onde houve maior carnificina, mesmo devido aos elefantes, que foram mortos ali dentro do campo. Diz-se que foram dizimados nessa batalha mais de oito mil homens e do lado dos romanos uns três mil, ficando quase todos os outros feridos. Isto obrigou Aníbal a partir de onde estava a seu gosto, à noite, e afastar-se para bem longe para que Marcelo não pudesse segui-lo prontamente por causa do grande número de feridos que tinha em seu acampamento e de onde retirou-se com vagar para Campânia667, local em que passou o verão, em descanso, na cidade de Sesse668 para fazer tratar e curar seus doentes. Assim, Aníbal, tendo por fim se desprendido de Marcelo e tendo seu exército livre para se servir dele quando bem entendesse, foi queimando, destruindo e danificando a Itália, por todos os lados, sem temer mais nada.

XLV. Nova acusação contra Marcelo. Justifica-se

XLV. Isto causou má impressão contra Marcelo em Roma e seus inimigos não deixaram passar a ocasião, pois logo provocaram um dos tribunos do povo, Públio Bíbulo, homem violento e temerário, mas eloquente e que dizia bem o que queria, para o acusar. Este fez reunir o povo por diversas vezes onde, de início, disse que precisava chamar Marcelo e dar o comando do exército a qualquer outro: — "... porque ele havia guerreado Aníbal somente por um pouco, e como se diz, havia se esquentado na luta, retirando-se aos banhos quentes para se tratar a seu gosto". Ciente disso, Marcelo deixou seus tenentes no acampamento e se dirigiu pessoalmente a Roma para responder às calúnias que lhe atiravam e em razão das quais já estavam começando a preparar um processo contra ele. Marcado o dia para serem ouvidas as partes, o povo reuniu-se dentro do grande parque de lutas a que chamam Circo Flamínio, para dar sua sentença. E ali o tribuno Públio, subindo na cadeira, formulou uma longa acusação contra Marcelo. Este respondeu sobriamente, em poucas palavras, somente o bastante para se justificar, mas os principais cidadãos tomaram a palavra em seu lugar para demonstrarem franca e lealmente ao povo que não devia julgar tão mal o procedimento de Marcelo, condenando-o por covardia e que deviam lembrar-se que o próprio inimigo dava testemunho favorável a ele, pois era o único capitão, entre os demais, de quem Aníbal fugia e fazia tudo o que podia para não ter que enfrentá-lo, ao passo que procurava sempre combater os outros.

XLVI. Seu quinto consulado

XLVI. Com estas advertências, o final da questão foi contrário ao que o acusador esperava, pois Marcelo não somente foi absolvido por unanimidade, como ainda foi eleito cônsul pela quinta vez669. E, tendo tomado posse, foi primeiramente à Toscana onde, visitando todas as boas cidades, uma após outra, teve oportunidade de apaziguá-las e abafar um grande movimento de rebelião que se estava processando naquela região. Após seu regresso quis dedicar o templo que havia mandado levantar à Honra e à Virtude, em cuja edificação tinha usado as presas de guerra ganhas na Sicília. Os sacerdotes, entretanto, fizeram oposição, dizendo que dois deuses não deviam estar contidos em um só templo e por isso começou-se a edificar outro, unido ao primeiro. Ficou ele, todavia, muito descontente com o procedimento dos religiosos, tomando isto como um mau presságio, bem como outros sinais celestes que o mantinham impressionado, pois aconteceu de repente que diversos templos foram atingidos por raios e os ratos haviam roído o ouro que se achava na capela de Júpiter Capitolino. Diziam também que um boi havia falado e que havia saído uma criança da cabeça de um elefante.

Mais ainda, os sacerdotes e adivinhos, sacrificando aos deuses para desviar a desgraça desses presságios sinistros, jamais puderam ter sinais favoráveis nos sacrifícios. Por isso tratavam de reter Marcelo em Roma, quando ele ardia e queimava no desejo de ir depressa para a guerra, porque jamais homem algum almejou tão ardentemente uma coisa, como ele desejava se encontrar com Aníbal, pois não tinha outros sonhos quando dormia, e não falava de outro assunto com seus amigos. Nos seus pedidos e orações aos deuses também pedia o mesmo, isto é, que pudesse encontrar Aníbal num campo de batalha, e creio que teria ainda mais voluntariamente combatido dentro de um recinto fechado por uma muralha do que na rasura de um campo. E, não só porque estivesse coberto de glória, mas também porque muitas outras provas e assinalavam como o mais prudente e mais sábio capitão de seu tempo, dizia-se que era impulsionado por uma ardente afeição e paixão de sua juventude, que fazia nascer em seu espírito tal ambição de guerrear. Não importava o tempo em que isto se havia dado, o fato é que o influenciava, mesmo nessa idade de mais de sessenta anos. quando foi eleito cônsul pela quinta vez.

XLVII. Põe-se de novo em marcha contra Aníbal

XLVII. No entanto, após haver feito os sacrifícios propiciatórios e as purificações como os adivinhes ordenavam, partiu de Rema cera seu companheiro para ir à guerra. Em caminho encontrou Aníbal descansando entre as cidades de Bauciá e Vencuse e tratou, por todos os meios, de atraí-lo à batalha, o que ele não queria aceitar. mas sendo avisado per seus espiões de que os cônsules romanos enviavam um exercito para cercar a cidade dos locria-nos, que denominavam também epizofrianos670 (isto é, Ocidentais, com a diferença dos da Grécia, que em comparação com os da Itália são chamades Orientais), preparou uma emboscada sobre o outeiro de Petelia, que se achava em seu caminho, onde foram mortes cerca de dois mil e quinhentos romanos. Isto inflamou ainda mais o zelo de Marcelo, de norte que se desalojou do local onde se achava, para aproximar-se ainda mais do inimigo. Ora, havia entre os deis campos uma pequena colina, em boa posição, coberta por arvoredos em toda a sua volta e onde havia elevações, das quais se podia descortinar ao longe, para um e outro campo e, embaixo, borbulhavam fontes e corriam riachos. Os romanos ficaram admirados de como Aníbal, que primeiro havia chegado àquele sítio, não se apossara do mesmo e o deixara assim abandonado aos inimigos, pois o local era apropriado para se instalar um acampamento ali e formar emboscadas. Assim, julgou Marcelo que se abrigasse nos bosques, fossas e vales em redor, um bom número de soldados de dardo e outras armas compridas, que o lugar agradaria bastante aos soldados romanos, no que não foi decepcionado, pois logo que correu a notícia no acampamento de que era preciso ocupar o local, não houve um só que não se prontificasse a tomar parte no feito, pondo-se cada um a discorrer como melhor entendia, das coisas da guerra e sobre a vantagem que teriam sobre os inimigos, principalmente se ali se alojassem e levantassem um forte.

XLVIII. Por isso Marcelo achou interessante ir pessoalmente com alguns soldados de cavalaria fazer um reconhecimento e visitar o local, mas antes de partir chamou seu adivinho para sacrificar aos deuses. À primeira hóstia imolada, o augure mostrou-lhe o fígado que não tinha cabeça, mas na segunda, foi encontrada uma bela e grande cabeça de fígado e todas as outras partes inteiras e frescas, de sorte que parecia apagarem elas os maus sinais e presságios da primeira hóstia. Mas os adivinhos diziam, ao contrário, que era sinal pior o que acontecia, e estavam mais assustados e perturbados porque esses tão belos sacrifícios, surgindo assim logo após o primeiro, que fora tão feio e tão triste, pareciam-lhes suspeitos por causa da estranha e súbita mudança, mas como diz o poeta Píndaro:

Não há fogo queimando sempre
Muro de aço nem coisa nata,
Que possa estacionar o curso
Do destino fatal.

XLIX. Entra em uma emboscada onde é morto

XLIX. Marcelo montou a cavalo com seu companheiro de consulado, Quinto Crispim e seu filho, que era também capitão de infantaria e com apenas duzentos e vinte homens a cavalo, dos quais não havia um só romano mas eram todos toscanos com exceção de quarenta fregelâneos, que estavam desde o começo dessa guerra muito afeiçoados a Marcelo. Estando, conforme dissemos, o outeiro todo coberto de mato e tendo os inimigos colocado um homem de sentinela num local elevado nas imediações, os romanos, que não podiam percebê-lo, seguiram confiadamente. A sentinela, entretanto, que do lugar onde se achava podia ver até o que se passava dentro do próprio acampamento dos romanos, avisou da chegada de Marcelo.

Deixaram-no os cartagineses aproximar-se bastante, chegando quase até junto deles. Quando isto se deu, eles se levantaram de uma vez e, cercando Marcelo, começaram a atirar-lhe golpes de dardo e golpes de mão. Alguns fugiam perseguidos e outros, os quarenta fregelâneos, embora os outros toscanos tivessem debandado ao primeiro grito, ajuntaram-se ao redor dos dois cônsules para defendê-los. Crispim, tendo recebido dois golpes de dardo, virou seu cavalo para fugir e Marcelo recebeu um golpe de lança, tendo o ferro liso lhe atravessado os flancos, lado a lado. Vendo isto, os fregelâneos que ainda estavam vivos deixaram-no cair por terra e pegaram seu filho, que estava também ferido, com o qual se salvaram em corrida a cavalo, para o seu acampamento. Não houve neste encontro mais do que quarenta mortos, além de cinco prisioneiros, que foram os sargentos que conduziam os machados adiante dos cônsules, bem como vinte outros homens a cavalo . Mas as duas autoridades consulares aí perderam a vida, sendo que Crispim morreu alguns dias depois, em consequência dos ferimentos recebidos. Foi uma grande desgraça para os romanos, nunca antes ocorrida, que dois cônsules morressem numa batalha ao mesmo tempo.

L. Honras que lhe são rendidas

L. Ora, quanto a Aníbal, não fez nenhuma conta dos outros que haviam ficado prisioneiros, feridos ou mortos neste encontro, mas quando soube que Marcelo havia ficado morto no campo, ali acorreu pessoalmente e ficou a contemplar o corpo, considerando o quanto era forte. Depois de ter examinado bem os traços de sua fisionomia, não deixou escapar uma só palavra de insulto mas transpareceu no seu semblante um ar de satisfação e alívio, aliás o que aconteceria a qualquer outro, ao ter conhecimento de que tinha chegado ao fim um inimigo tão perigoso quanto aquele. Espantou-se, entretanto, de como viera ele morrer ali tão estranhamente. Tirou-lhe do dedo um anel que trazia suas iniciais, mandou amortalhar o corpo com tudo o que lhe pertencia, o qual fez incinerar honradamente, depositando em seguida as cinzas num cântaro de prata671 sobre o qual colocou, ele mesmo, uma coroa de curo e mandou entregá-lo ao seu filho, mas aconteceu que os soldados numídios, da cavalaria ligeira que no caminho encontraram os que conduziam o cântaro, quiseram tomá-lo, enquanto que os outros, sentindo-se na obrigação de retê-lo, foram obrigados a se defender, o que resultou num combate durante o qual as cinzas e os ossos foram espalhados e dispersos aqui e acolá. Tomando conhecimento do que acontecera, Aníbal exclamou, dirigindo-se aos que o cercavam: — "Vede como não é possível fazer-se alguma coisa, quando não agrada aos deuses". Mandou castigar os numídios, mas não se preocupou mais em mandar procurar os restos de Marcelo, sendo de opinião que era vontade de algum deus que ele morresse daquela maneira e que seu corpo ficasse sem sepultura. Assim escrevem Cornélio Nepos e Valério Máximo, mas Lívio e Augusto César dizem que o cântaro foi levado a seu filho e magnificamente sepultado.

LI. Monumentos públicos construídos e dedicados por Marcelo. Sua posteridade até Marcelo, filho de Otávia, irmã de Augusto. A memória do jovem Marcelo honrada por Otávia

LI. Há, em diversos lugares, trabalhos e edifícios públicos que foram edificados por Marcelo, além dos que se acham em Roma, como em Catana, na Sicília, um parque para exercitar a juventude672 e, na ilha de Samotrácia, no templo dos deuses, que chamam Cabires, diversas imagens e diversos quadro s que havia levado de Siracusa e, na ilha de Lindos673 no templo de Minerva, encontra-se, entre outras, uma estátua sua, onde se acha gravado este epigrama, de autoria do filósofo674 Possidônio:

Amigo passante, vê aqui a imagem
De Cláudio Marcelo, a linhagem
Do qual sendo em Roma muito ilustre,
Está aclarada ainda pelo brilho,
Porque foi como estrela clara
Em seu país, onde o lugar consular
Manteve sete vezes, e a cada um fez
Dos inimigos grande violência, que desfez.

Aquele que compôs este epigrama conta as duas vezes que foi vice-cônsul, por dois consulados inteiros mas sua posteridade continuou sempre com grande honra até Marcelo675 filho da irmã de Augusto César, Otávia, e de Caio Marcelo. Morreu jovem, como magistrado em Roma e tendo desposado Júlia, filha de Augusto, com a qual não viveu muito tempo, mas para honrar sua memória, Otávia, sua mãe, dedicou a biblioteca e Augusto César dedicou o teatro, que são ainda chamados, até o dia de hoje, o teatro e a biblioteca de Marcelo.

Mais fontes de Roma Antiga

Comentários, de Júlio César - Livro 3

Os Feitos do Divino Augusto (Res Gestae Divi Augusti)

Calígula, de Suetônio

Vidas Paralelas: Coriolano, de Plutarco

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