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Notas

136 - No grego: pois deu mais força à aristocracia.
137 - No grego: com uma eítala.
138 - E, se cometessem algumas faltas, fossem os Lacedemônios bem chicoteados.
139 - Essa opinião é a verdadeira. Embora haja muitas dificuldades sobre a idade de Pitágoras, consta que ele vivia ainda na quinquagésima olimpíada, cerca de duzentos anos após a morte de Numa e 580 antes de Jesus Cristo.
140 - Como soberano não está no texto, Amyot traduziu segundo sua correção, que foi aprovada por Mézirac e por Dacier. C.
141 - Há em todas as edições Heródoto. Amyot pôs Ródoto à margem do seu exemplar, segundo um manuscrito. De resto, esse traço de mitologia é inteiramente desconhecido.
142 - Vide Pausânias, Ática, cap. XXI.
143 - Plutarco supõe sempre que Pitágoras foi contemporâneo de Numa, embora ele seja muito mais recente. Vide. cap. II.
144 - Acrescentar: esse Epicarmo é um autor antigo e, etc. Há um equívoco na maneira pela qual Amyot traduziu.
145 - No grego: dos deuses, que são todo-poderosos e senhores de tudo, pois.
146 - Vide as Observações, cap. XVI.
147 - Vê-se aqui um efeito bem marcado de catóptrica e dos espelhos ardentes. A tradução de Amyot não é nem bastante precisa nem bastante exata. Vide as Observações, cap. XVII.
148 - Vide as Observações, cap. XVIII.
149 - Inteiramente velada.
150 - Plutarco explica na vida de Camilo, cap. XXXVI, porque Numa estabeleceu o culto do fogo.
151 - Essa verdade tão antiga da mobilidade da terra, que Pitágoras sem dúvida conheceu no Egito, foi demonstrada em nosso século pelas observações astronômicas de Bradley.
152 - No grego: que se casasse de novo antes desse prazo.
153 - Dois desses escudos, chanfrados dos dois lados, são reproduzidos nos reversos de duas medalhas da família Licínia. O capacete, isto é, o casco ou boné de pontífice, está colocado no meio dos dois escudos.
154 - No grego, sobre o choenix, medida que era a quadragésima-oitava parte do medimno e continha aproximadamente o que é preciso para a nutrição diária de um homem. Pitágoras queria que se trabalhasse para ganhar a vida e se pensasse no dia seguinte.
155 - Isto é, não irritar um homem colérico.
156 - Executar o que se está fazendo sem parar, sem perder tempo.
157 - Na doutrina de Pitágoras, Deus era a unidade, e o número binário era o Diabo. Opiniões dos Filósofos, I, 7.
158 - Não creio em razão tão oculta. O vinho da videira que não é podada não vale nada, não deve ser oferecido aos deuses. Não se sacrifica sem farinha, porque o trigo é um dos dons mais preciosos da natureza e da nutrição do homem Dava-se uma volta ao adorar, menos talvez para se recordar ou para imitar o movimento dos céus do que para saudar o bom gênio.
 A doutrina dos gênios é muito antiga.
159 - Vide as Observações, cap. XXVII.
160 - Em grego, Maenides: pequeno peixe branco, que se torna preto no verão e se chama mêndola.
161 - Para impedir que Júpiter terminasse e dissesse vivas pessoas, ou pessoas vivas, Numa acrescentou imediatamente: sardinhas, ou mêndolas.
162 - Celebravam-se em sua honra as festas Terminais. Terminalia no dia 23 de fevereiro; e esse dia era antigamente o termo do ano. Vide Varrão, De Ling. Lat., liv. V, pág. 32.
163 - Eis uma das mais antigas formas do ano, tal como era entre os Egípcios antes do acréscimo dos cinco dias e que denominaram Epagômenos. O dia 23 de fevereiro era então o último do ano, como observei mais acima, cap. XXVIII.
164 - Falta. A tara e mais conhecida na linguagem das finanças, onde significa queda.
165 - Esse mês denominava-se também Mercetlonius. A origem desses nomes está em que, sendo esse mês o último do ano, pagavam-se então os alugueis. A palavra vem de merx, mercis.
166 - Vide as Observações, cap. XXXI.
167 - Alto Egito é um país muito antigo e um dos primeiros impérios do mundo. O baixo Egito, ou o Delta, era u m pais novo, porque foi preciso mandar escoar as águas, abrir canais: essa parte do Egito foi habitada mais tarde.
168 - Cf. Aprilis e Aphrodite. — N. do ed. bras.
169 - A primavera européia é a primeira estação do ano e vai de 21 de março a 21 de junho. — N. do ed. bras.
170 - É porventura necessário ler, no texto grego, agotes Heras, que significaria do nome de Juno. Amyot. No grego, agotes oras. A correção proposta por Amyot é feliz, Reiske introduziua no texto. E’ preciso traduzir: O mês de junho tira seu nome de Juno. Alguns relacionam esses nomes com a idade da velhice e da juventude. Chamam-se os velhos maiores e os jovens juniores.
171 - Em alguns velhos exemplares gregos, lê-se nesse lugar phthitois, que significaria para os defuntos. Amyot. Essa lição é excelente. E’ preciso traduzir: Nesse mês, sacrifica-se para os mortos. Tal sacrifício se fazia a 13′ de fevereiro. O calendário de Polemeu Sílvio marca nesse dia
 PARENTATIO TUMULO RUM, o serviço dos túmulos. Fazia-se ainda outra festa no dia 21, que se denominava FERALIA DIS INFERIS, festas fúnebres aos deuses infernais.
172 - Celebrava-se no dia 15 de fevereiro.
173 - O templo de Jano foi ainda fechado sob o império de Nero e sob o de Vespasiano. Falei sobre isso nos Suplementos de Tácito. Ele fora mesmo fechado três vezes, sob Augusto, nos anos de Roma 725, 729 e 744.
174 - No ano de Roma DXIX, após a primeira guerra púnica, 235 anos antes de Jesus Cristo.
 Desde Numa até esse ano, Roma não cessara de fazer a guerra. Atílio chamava-se Caio, e não Marco.
175 - No ano de Roma 573. Havia 470 anos que Numa estava morto- Plínio dá pormenores curiosos sobre a descoberta desse livros. Plínio, XIII, 13. Vide também Tito Lívio, liv. 40, çap.
 XXIX.
176 - Tendo querido conjurar o trovão, não observou cerimônias prescritas por Numa e foi atingido por um raio. A superstição se torna, por isso, mais orgulhosa e mais ousada. Vide Plínio, XXVIII, 2.
177 - No grego: era ali deixado aos escravos.
178 - Ver-se-á, nas observações sobre o capítulo VI, como Amyot corrigiu essa passagem, que estava muito corrompida.
179 - Em sua tragédia Andrômaca, v. 597. C.

Fontes   >    Roma Antiga

Vidas Paralelas: Numa Pompílio, de Plutarco

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Detalhe da pintura "Ninfa Egeria ditando a Numa Pompílio as leis de Roma" (La Nymphe Egerie dictant les lois de Rome à Numa Pompilius). Obra de Ulpiano Checa (1860–1916).

Sobre a fonte

Numa Pompílio (c. 753-673 a.C.) foi um sabino escolhido como segundo rei de Roma. Sábio, pacífico e religioso, dedicou-se a elaboração das primeiras leis de Roma, assim como dos primeiros ofícios religiosos da cidade e do primeiro calendário. A biografia de Numa faz parte de uma série de biografias escritas por Plutarco (c. 46-120), um historiador grego que viveu no Império Romano. Na série Vidas Paralelas, o autor compara vários nomes da história grega com seus equivalentes romanos. Numa foi comparado com o reformador espartano Licurgo.

I. Antiguidade dos registros de Roma

I. Há semelhantemente grande diversidade entre os historiadores, no tocante ao tempo no qual reinou o rei Numa Pompílio, embora queiram alguns derivar dele a nobreza de várias grandes casas de Roma. Certo Clódio, que escreveu o livro intitulado «A Tábua dos Tempos», afirma que os antigos registros da cidade de Roma se perderam no tempo em que ela foi tomada e saqueada pelos Gauleses e que os que se têm hoje não são verdadeiros, antes foram compostos por homens desejosos de agradar a alguns que se vão a toda a força ingerindo nas antigas casas e famílias dos primeiros Romanos, sem lhes estarem ligados absolutamente nada. De outro lado, ainda que a opinião comum seja que Numa foi discípulo e familiar amigo do filósofo Pitágoras, há contudo quem pretenda dizer que ele jamais teve conhecimento das letras e disciplinas Gregas, sustentando ser bem possível que nasceu tão bem e tão perfeitamente predisposto a toda virtude que não teve nenhuma necessidade de mestre; e, ainda que houvesse necessidade disso, preferem atribuir a honra da instituição desse rei a algum bárbaro mais excelente do que Pitágoras.

II. Origem de Numa. Suas palestras com Pitágoras. Distinção entre dois filósofos desse nome

II. Dizem outros que o filósofo Pitágoras existiu muito tempo depois do reinado de Numa139 e bem cinco idades de homens depois dele, mas que outro Pitágoras, natural de Esparta, tendo ganho o prêmio de corrida nos jogos olímpicos da décima-sexta olimpíada, no terceiro ano da qual Numa foi eleito rei, seguiu para a Itália e ali frequentou Numa e ajudou-o a governar e ordenar o reino, daí resultando que há ainda muitos costumes Lacônicos de mistura com os dos Romanos, ensinados pelo segundo Pitágoras; mesmo sem isso, Numa era natural do país dos Sabinos, os quais se dizem descendentes dos Lacedemônios. Assim, é bem difícil acordar certamente os tempos, mesmo para os que desejam o rol e a tábua daqueles que, de olimpíada em olimpíada, consecutivamente, ganharam o prêmio nos jogos olímpicos, visto como este rol que se tem agora foi bem tarde publicado por certo Hípias Elieno, o qual não alega nenhum argumento necessário para que se deva ajuntar fé indubitável ao que recolheu. Não obstante, não deixaremos tampouco de deitar por escrito as coisas dignas de memória que pudemos reunir do rei Numa, começando pelo lugar que nos parece mais conveniente.

III. Interregno após a morte de Rômulo

III. Havia já trinta e sete anos, tanto quanto durara o reino de Rômulo, que Roma fora fundada, quando Rômulo, no quinto dia do mês de julho, agora chamado Nonas Capratinas, fez um sacrifício solene fora da cidade, perto de um lugar vulgarmente denominado Brejo da Cabra; e, estando todo o Senado presente ao sacrifício, com a maior parte do povo, no ar se levantou subitamente fortíssima tempestade, e uma nuvem negra e espessa caiu sobre a terra com ventos impetuosos, raios, relâmpagos e trovões; de maneira que o poviléu, apavorado com tão violenta borrasca, afastou-se fugindo em todas as direções; e o rei Rômulo desapareceu, de maneira que nunca mais foi visto, nem morto nem vivo, Isso tornou os senadores e os nobres chamados Patrícios muito suspeitos, e correu na comuna o surdo rumor de que havia muito tempo eles suportavam impacientemente a condição de súditos de um rei, querendo usurpar e atribuir a si mesmos o poder soberano, e que para tais fins tinham assassinado o rei Rômulo; acresce também que este, pouco tempo antes, começara a tratá-los mais rigorosa e a comandá-los mais orgulhosamente do que de costume; todavia, acharam eles meio de solicitar os murmúrios e extinguir todas as suspeitas com as honras divinas que lhe prestaram, como àquele que não estava morto, antes passara desta vida para outra melhor; e assim houve um dos mais notáveis personagens dentre eles, chamado Próculo, que afirmou sob juramento, diante do povo, que vira Rômulo subindo ao céu, armado dos pés à cabeça, e ouvira uma voz mandando que daí por diante o chamassem de Quirino.

IV. Mas, apaziguado o tumulto, surgiu outra perturbação, a saber, quem se elegeria em seu lugar, porque os estrangeiros, tendo vindo de alhures habitar em Roma, não estavam ainda bem misturados nem inteiramente incorporados e confundidos com os naturais Romanos, de sorte que não somente o povo comum flutuava e oscilava nessa dúvida, mas também os senadores, por serem de várias facções, entravam na suspeita uns dos outros, Não obstante, todos se acordavam bem em que era necessário eleger um rei; mas, quanto ao resto, divergiam em saber não só quem elegeriam, mas também de que nação; porque os que tinham começado a construir e fundar Roma com Rômulo não podiam suportar que os Sabinos, com os quais haviam partilhado a cidade e as terras, tentassem e presumissem comandar aqueles que os tinham recebido e associado com eles. Os Sabinos, de outro lado, alegavam uma razão em que havia grande aparência: era que, depois da morte de seu príncipe Tácio, não perturbaram nem inquietaram Rômulo, antes permitiram que reinasse pacificamente, e por essa causa, de haver ele falecido, queria a razão que o novo rei fosse eleito de sua nação; e, se bem os Romanos os tivessem recebido em sua cidade, não se devia dizer que no tempo, dessa associação eles fossem menores do que eles em qualquer coisa, pois que, juntando-se a eles, tinham aumentado ao dobro o seu poder e feito um corpo de povo que merecia a honra e o título de cidade. Eis as causas de suas divergências; mas, para obviar a que desse debate surgisse alguma confusão na cidade, se ela ficasse sem magistrado com autoridade de comandar, os senadores, que eram em número de cento e cinquenta, avisaram que cada um deles, um após outro, teria por seu turno as marcas e insígnias reais, faria os sacrifícios ordinários e despacharia os negócios durante seis horas do dia e seis horas da noite, como140 soberano; e pareceu-lhes que seria melhor assim repartir o tempo, de sorte que tempo houvesse igualmente para uns e outros, tanto para o que respeitava a eles próprios como para o que respeitava ao povo, porque essa mutação e esse transporte da autoridade soberana, passando assim de um a outro, diminuiria a inveja, quando se visse que em um mesmo dia e em uma mesma noite um deles seria simultaneamente rei e homem privado. Os Romanos chamam a essa espécie de principado Interregnum, como quem dissesse entre reino; mas, conquanto os senadores governassem muito civil e moderadamente, não puderam contudo deixar de cair nas suspeitas e murmúrios do povo, o qual ia dizendo que eles haviam finamente inventado esse meio de mudar o reino em domínio de pequeno número da nobreza, a fim de que toda a autoridade e o governo dos negócios ficasse sempre em suas mãos, porque lhes aborrecia ser súditos de um rei; finalmente, as duas partes da cidade chegaram ao acordo de que uma elegeria um rei tirado do corpo da outra.

V. Numa é eleito rei

V. O expediente pareceu-lhe muito bom, tanto para pacificar a dissensão presente como também para que o assim eleito tivesse afeição igual para com as duas partes, amando uma, porque o teria eleito, e a outra, porque seria de sua nação. Os Sabinos foram os primeiros que deferiram aos Romanos a opção de eleger, e os Romanos estimaram que seria melhor elegerem um da nação Sabina do que terem um de sua nação eleito pelos Sabinos; e, após haverem a esse respeito deliberado e consultado entre si, elegeram do corpo dos Sabinos Numa Pompílio, o qual não era do número daqueles que tinham vindo morar em Roma, mas homem tão renomeado por sua virtude que os Sabinos, logo que o ouviram nomear, o receberam de melhor grado do que se eles próprios o tivessem eleito. Tendo pois feito ouvir ao povo sua eleição, foram deputadas as primeiras e principais personagens de uma e de outra parte para irem à presença dele, pedindo-lhe que viesse a Roma e aceitasse o reino que se lhe oferecia.

VI. Suas virtudes

VI. Ora, era Numa Pompílio natural de uma das melhores cidades que tinham os Sabinos, a qual se chamava Cures, razão por que os Romanos com os associados Sabinos se chamaram depois Quirites, e era filho de Pompônio, homem de honra, o mais jovem de quatro irmãos, tendo por divina coincidência nascido no mesmo dia em que a cidade de Roma foi primeiramente fundada por Rômulo, ou seja, vinte e um de abril. Ele, pois, sendo naturalmente inclinado e dedicado a toda virtude, poliu-se ainda mais pelo estudo das boas disciplinas e pelo exercício de paciência e da filosofia; de sorte que não somente limpou a alma dos vícios e paixões que toda a gente estima censuráveis, mas dela tirou também a violência e a cobiça de usurpar pela força a outrem, que então eram louvadas entre os bárbaros, estimando que a verdadeira força era dominar e conter em si mesmo, pelo julgamento da razão, toda cupidez. Seguindo tal opinião, baniu de golpe de sua casa toda superfluidade e toda delícia, servindo a quem desejasse usar dele, tanto ao estrangeiro como ao do país, na qualidade de juiz às direitas e sábio conselheiro e empregando seu lazer, não no prazer próprio ou na acumulação de bens, mas no servir aos deuses e no contemplar-lhes a natureza e a potência, tanto quanto o entendimento humano pela razão o pode compreender; por isso adquiriu tão bom nome e tão grande reputação que Tácio, que foi rei de Roma com Rômulo, tendo apenas uma filha única chamada Tácia, o fez seu genro; mas, por esse casamento não se elevou tanto que desejasse ir morar em Roma, junto ao sogro, mas se fixou na própria casa, no país dos Sabinos, para ali servir e tratar o velho pai, com sua mulher Tácia, a qual preferiu viver docemente em repouso junto ao marido, como homem privado, a seguir para Roma, onde teria podido viver em triunfo e honra à causa do pai. Ela morreu, segundo dizem, treze anos depois de casada; e, após sua morte, Numa, deixando a residência da cidade, desejou fixar-se nos campos e ir inteiramente só a passeio pelas florestas e prados consagrados aos deuses, levando vida solitária nos lugares afastados da companhia dos homens. Daí procedeu, em minha opinião, o que dizem dele e da deusa, que não era por nenhum desgosto nem melancolia que Numa se retirava da conversação dos homens, mas para experimentar outra mais venerável e mais santa companhia, tendo-lhe a ninfa e deusa Egéria feito tanta honra que o recebeu como marido, com a qual sua amiga ele vivia feliz, como aquele que, pela frequentação ordinária que tinha com ela, era inspirado do amor e do conhecimento das coisas celestes.

VII. Essas histórias são por certo muito semelhantes a algumas das mais antigas fábulas que os Frígios, que as aprenderam de pai a filho, gostam de contar de certo Átis; os Bitínios, de certo141 Ródoto; e os Árcades, de certo Endimião e de vários outros homens que tais, em suas vidas reputados santos e bem-vistos dos deuses. Todavia, é bem verossímil que a divindade não ama os pássaros nem os cavalos, mas os homens, experimentando prazer em frequentar às vezes familiarmente os perfeitamente bons e não desdenhando a conversação dos santos e religiosos; mas que uma divina essência tenha companhia carnal e encontre prazer na beleza de um corpo humano, isso é bem difícil de acreditar; e, contudo, os sábios Egípcios cuidam nisso fazer distinção bastante verossímil, dizendo não ser impossível que o espírito de um deus se aproxime de uma mulher e faça germinar em seu corpo um começo de genitura, mas que o homem não pode ter coabitação nem comistão corporal nenhuma com a natureza divina; no que não consideram que tudo o que se mistura dá tanta comunicação do seu ser quanto a recebe daquele com o qual se misturou. Não obstante, é muito razoável crer que os deuses tragam amizade aos homens e que dessa amizade nasça o amor, dize ndo-se por isso que eles são amantes daqueles cujos costumes purificam e os dirigem para a virtude. E não pecam os que imaginam que Forbante, Jacinto e Admeto tenham sido outrora os amores de Apoio, e semelhantemente Hipólito de Sícion, do qual se diz que, todas as vezes que atravessava o braço de mar existente entre a cidade de Sícion e a de Cirra, o deus que o sentia vir se regozijava e fazia pronunciar pela profetisa estes versos heroicos:

Eis que no mar remonta novamente
Hipólito, que eu amo ardentemente.

Também dizem que Pã foi amante de Píndaro e de seus versos, e que a divindade honrou os poetas Hesiodo e Arquílogo após serem mortos pelas Musas; e dizem mais que Esculápio morou em casa de Sófocles quando vivo, do que se mostram ainda hoje vários indícios, e, após sua morte, outro deus, ao que dizem, fez que ele tivesse honrosa sepultura142.

VIII. Ora, concedendo que tais coisas sejam verdadeiras, como se pode recusar crédito ao fato de haverem alguns deuses querido frequentar familiarmente Zaleuco, Minos, Zoroastro, Licurgo, Numa e outros personagens tais, que governaram reinos e estabeleceram coisas públicas? Não é verossímil que os deuses os tenham frequentado cientemente, para inspirar-lhes e ensinar-lhes tão belas coisas, e não se tenham aproximado desses poetas e tocadores de lira lamurientes e plangentes, a menos que jamais se aproximassem senão por divertimento e recreio somente? Todavia, se alguém existe de outra opinião, o caminho é largo e aberto, como disse Baquílides. Mesmo porque não acho sem aparência o que outros discorrem no tocante a Licurgo, Numa e demais personagens semelhantes que, tendo de manejar povos rudes e ferozes, e querendo introduzir grandes novidades nos governos de seus respectivos países, sabiamente fingiram ter comunicação com os deuses, pois tal ficção era útil e salutar àqueles mesmos aos quais o faziam crer.

IX. Mas, para retornar à nossa história, tinha Numa a idade de quarenta anos, quando os embaixadores de Roma lhe foram enviados para oferecer-lhe e pedir-lhe que aceitasse o reino, tendo falado em seu nome Próculo e Veleso, um dos quais se esperava devesse ser eleito rei, porque os do lado de Rômulo favoreciam a Próculo e os da parte de Tácio favoreciam a Veleso; assim, não usaram para com ele de longa arenga, pois estimavam que devesse estar muito satisfeito com tal aventura; mas, ao contrário, era em verdade coisa bem difícil, e que reclamava grandes persuasões e muitas súplicas, abalar um homem que sempre vivera em repouso e tranquilidade, e persuadi-lo de aceitar a senhoria de uma cidade por assim dizer nascida, crescida e educada em armas e para a guerra; assim, na presença do pai e de outro parente chamado Márcio, respondeu-lhes que toda mutação da vida do homem era perigosa, mas quem não carece de nada que lhe seja necessário e, não podendo queixar-se da fortuna e condição é presente, despreza contudo seu estado e abandona a maneira de viver costumeira para adotar outra, não pode dizer que não faz grande loucura, visto como, quando não houvesse outra coisa, deixa o certo pelo duvidoso; «Mas, além disso, nesse caso, os inconvenientes e perigosos dessa realeza que se me oferece não são incertos, se queremos considerar o que sucedeu a Rômulo e que sobre ele próprio recaíra a suspeita de haver de tocaia feito morrer Tácio, seu par e companheiro no reino, deixando que depois de sua morte também os senadores fossem acusados de o terem assassinado à traição; e, todavia, vão dizendo e cantando por toda parte que ele era filho de um deus, que ao nascer foi salvo de maneira miraculosa e depois nutrido quase incrivelmente. Ora, quanto a mim, nasci de semente mortal e fui nutrido, educado e instruído por pessoas que vós conheceis; e as poucas qualidades que se apreciam e louvam em mim são todas condições bem distantes de pessoa idônea para reinar. Eu sempre amei a vida retirada, o repouso e o estudo, longe de manejos de negócios; durante toda a minha vida, amei, procurei e desejei a paz sobre todas as coisas, sem ter nada de comum com a guerra; minha conversação tem sido frequentar homens que não se acham juntos senão para servirem e honrarem os deuses, ou para se regozijarem uns com os outros, e que, em suma, na vida privada dedicam-se à lavoura ou ao gado e às pastagens; visto como, senhores Romanos, deixou-vos Rômulo muitas guerras começadas, que porventura estaríeis impedidos de não ter meios para sustentar, vossa cidade precisaria de um rei belicoso, ativo e vigoroso. Ademais, vosso povo, por longo costume e pelo crescimento que recebeu das armas, não pede outra coisa senão a guerra; e vê-se claramente que ele deseja ainda crescer e comandar os vizinhos. De sorte que, quando outra consideração não houvesse, seria uma derrisão querer ensinar agora a servir os deuses, amar a justiça, abominar a guerra e a violência, a uma cidade que necessita antes de um capitão conquistador do que de um rei pacífico».

X. Tais razões e advertências alegava Numa para descarregar-se da realeza que lhe apresentavam; mas os embaixadores Romanos puseram então a rogar-lhe e suplicar-lhe, com toda a instância possível, que não se tornasse causa de recaírem eles ainda uma vez em sedições e guerras civis de uns contra os outros, por isso que as duas partes da cidade só com ele concordavam. Ademais, quando os embaixadores se retiraram, seu pai e seu parente Márcio, à parte, começaram também a mostrar e advertir que ele não devia recusar tão belo e divino presente e que, se, por estar satisfeito com a fortuna, não desejava mais bens do que possuía, nem cobiçava a honra e a glória de ser rei, porque tinha outra mais verdadeira e mais certa, que era a da virtude, devia contudo estimar que bem reinar era prestar serviço a Deus, que desejava empregar sua justiça, sem deixá-la ociosa; «Não fujas, pois, e não recuses, disseram-lhe, essa dignidade real, que é para o homem prudente e sábio um belo campo para fazer grandes e louváveis obras, Lá poderás prestar magníficos serviços aos deuses, adocicando os corações desses homens marciais até torná-los devotos e religiosos, para se tornarem de pronto e se conformarem com facilidade à natureza de seu príncipe. Eles amaram caramente a Tácio, embora fosse estrangeiro, e consagraram a memória de Rômulo com as honras divinas que lhe prestam hoje; e talvez o povo, vendo-se vitorioso, estará facilmente saturado da guerra, e os Romanos, achando-se cheios de triunfos e despojos, encarecerão um príncipe doce e amante da justiça, para doravante viverem em paz debaixo de boas e santas leis; e, se acaso fervem ainda de ardor combativo, não será melhor convergir para alhures essa vontade de guerrear, quando se pode ter em mãos a brida para fazê-lo e ser então um meio de conjugar por amizade e aliança perpétua o teu país e toda a nação dos Sabinos com uma cidade tão poderosa e florescente?» Além de todas essas advertências e razões, havia ainda, dizia -se, vários sinais que lhe prometiam ali bom encontro, como o afeto e a solicitude dos seus concidadãos, os quais, logo que ouviram a notícia da chegada e da comissão dos embaixadores de Roma, com ele insistiram para que fosse e aceitasse a oferta do reino, a fim de uni-los mais e incorporá-los com eles.

XI. Eis porque Numa, tendo aceito o reino, após haver sacrificado aos deuses, pôs-se a caminho de Roma, onde o povo e o Senado saíram ao encontro dele, com um maravilhoso desejo de vê-lo. As mulheres iam depois, abençoando-o e cantando-lhe louvores, sacrificava-se em todos os templos dos deuses, e não havia quem não mostrasse igual satisfação e regozijo, como se à cidade tivesse advindo um novo reino e não um novo rei. Assim foi conduzido nessa alegria pública até à praça, onde aquele dos senadores que então se achava no posto de vice-rei, chamado Espúrio Vétio, fez proceder à eleição, e foi unanimemente eleito rei por todas as vozes e sufrágios do povo. Então, foram-lhe levadas as marcas e insígnias da dignidade real, mas ele próprio mandou que se esperasse ainda, dizendo que era preciso primeiramente ser confirmado rei pelos deuses. Chamou então os adivinhos e os presbíteros, e com eles subiu ao Capitólio, que então se chamava ainda monte Tarpéio, e lá o principal dos adivinhos voltou-o para o meio-dia, com a face velada, e plantou-se de pé atrás dele, tocando-lhe a cabeça com a mão direita e fazendo preces aos deuses para que lhes aprouvesse, pelo voo dos pássaros e outros indícios, declarar sua vontade no tocante a essa eleição, lançando-lhes a vista para todos os lados o mais longe que ela pudesse estender-se. Havia, entretanto, um silêncio maravilhoso na praça, embora todo o povo, em número infinito, ali estivesse reunido, esperando com grande devoção qual seria a saída daquela adivinhação, até que à mão direita lhes apareceram pássaros de bom presságio, confirmando a eleição. E então Numa, vestindo o saio real, desceu do monte Tarpésia até à praça, onde todo o povo o recebeu com grandes aclamações de alegria, com o mais santo e melhor amado dos deuses que se teria sabido eleger.

XII. Costumes populares. Instituições religiosas

XII. Tendo assim entrado na posse do reino, a primeira coisa que fez foi dissolver a companhia de trezentos satélites que Rômulo sempre tivera ao redor de sua pessoa e aos quais dava o nome de Céleres, isto é, ligeiros: dizendo que não queria desconfiar daqueles que se fiavam nele, nem ser rei de gente que desconfiasse dele. A segunda foi que ajuntou aos dois presbíteros de Júpiter e de Marte um terceiro, em honra de Rômulo, o qual foi chamado Flamen Quirinalis, porque os Romanos chamavam Flamines também aos outros presbíteros mais antigamente instituídos, por causa de certos chapéus estreitos que traziam à cabeça, como se lhes chamassem Pilamines, porque Pilos em língua grega significa chapéu. E então, segundo dizem, havia muito mais palavras gregas misturadas entre as latinas do que agora, pois aos mantos que os reis traziam davam o nome de Laenas, e diz Juba ser a isso mesmo que os Gregos chamavam Chlaenas, sendo chamado Camillus o jovem ministro do templo de Júpiter, assim como alguns povos gregos chamam ainda ao deus Mercúrio, por ser ele ministro dos deuses.

XIII. Suas opiniões, seus estabelecimentos pacíficos

XIII. Tendo pois Numa feito essas coisas em sua entrada, para sempre ganhar cada vez mais o amor e a benevolência do povo, começou incontinente a tratar de amolecer e adocicar sua cidade nem mais nem menos do que a um ferro, tornando-a, em lugar de rude, áspera e belicosa que era, mais doce e mais justa, Pois sem ponta de dúvida ela era propriamente o que Platão chama de cidade fervente, tendo sido primeiramente fundada por homens os mais corajosos e os mais belicosos do mundo, que de todos os lados, com desesperada audácia, se haviam ali lançado e reunido; e depois crescera e se fortificara por armas e guerras contínuas, do mesmo modo que as estacas fincadas na terra, quanto mais se sacodem, tanto mais se afirmam, entrando mais para diante. Eis porque Numa, pensando bem que não era pequena nem ligeira empresa querer adocicar e ordenar para a vida pacífica um povo tão agressivo, tão orgulhoso e tão feroz, serviu-se da ajuda dos deuses amolecendo aos poucos e arrefecendo essa altivez de coragem e esse ardor de combater com sacrifícios, festas, danças e procissões ordinárias que ele próprio celebrava, nas quais de mistura com a devoção havia passatempo e deleite, e às vezes ante os olhos punha-lhes os receios e temores dos deuses, fazendo-os crer que tivera visões estranhas ou que ouvira vozes pelas quais os deuses os ameaçavam de grandes calamidades, para humilhar-lhes e abaixar-lhes sempre os corações sob o terror dos deuses: o que foi causa mais tarde de se estimar que aprendeu sua sabedoria do filósofo Pitágoras, porque a maior parte da filosofia de um e do governo do outro consistia em tais cerimônias e vocações às coisas divinas; e dizem que vestiu a máscara e a aparência exterior de santidade, com a mesma intenção e pelo mesmo exemplo.

XIV. A ninfa Egéria

XIV. Pois, assim como se diz que Pitágoras amansou uma águia, tendo-a feito descer e vir até ele por certas vozes, quando ela voava no ar acima de sua cabeça, e que, passando através da assembleia dos jogos olímpicos, deixou ver sua coxa de ouro, e várias outras habilidades tais e atos que se contam, os quais pareciam milagres e levaram Tímon de Fliunte a escrever estes versos a respeito dele:

Pitágoras, sutil encantador,
Da aparência e da glória apreciador,
Que, para os homens atrair, usava
Frases douradas, quando se expressava,

assim também o disfarce com que Numa se enfeitava foi o amor de uma deusa, ou de uma ninfa de montanha, e as secretas entrevistas e parlamentos que fingia ter com ela, como aqui já dissemos antes, e assim também a frequentação das Musas. Pois dizia ter das Musas a maior parte de suas revelações e ensinou os Romanos a dentre elas reverenciarem uma acima de todas as outras, à qual chamava Tácita, como quem dissesse calada ou muda: o que parece ter inventado segundo o exemplo e a imitação de Pitágoras143, que tanto encomendava e recomendava o silêncio a seus discípulos; além disso, o que ordenou no tocante às imagens e representações dos deuses se conforma em tudo com a doutrina de Pitágoras, o qual estimava que a causa primeira não era nem sensível nem passível, antes invisível e incorruptível, e somente inteligível. E Numa semelhantemente defendeu aos Romanos acreditarem que Deus tivesse formado animal ou homem; de sorte que, nesses primeiros tempos, não houve em Roma imagem de Deus, nem pintada nem moldada, e foi no espaço dos cento e setenta primeiros anos que edificaram tantos templos e capelas aos deuses; mas não haviam dentro estátua nem figura nenhuma de Deus, estimando que fosse um sacrilégio querer representar as coisas divinas pelas terrestres, visto como não é possível atingir de nenhum modo o conhecimento da divindade, senão por meio do entendimento. Os próprios sacrifícios que Numa instituiu se acordavam e relacionavam muito com a maneira de servir os deuses de que usavam os Pitagorianos, pois neles não se expandia sangue, antes se faziam pela maior parte com Um pouco de farinha e um pouco de efusão de vinho e leite, e com tais outras coisas ligeiras.

XV. Mas os que pretendem ter havido frequentação e comunicação entre esses dois personagens combatem ainda com outros argumentos e provas mais remotas. Uma é que os Romanos deram a Pitágoras em sua cidade o direito de burguesia, assim como diz Epicarmo, poeta cômico, em um pequeno tratado que escreveu e endereçou a Antenor144, autor antigo, como um dos próprios discípulos de Pitágoras; o outro argumento é que, tendo tido quatro filhos, deu Numa a um deles o nome de Mamerco, o mesmo do filho de Pitágoras, do qual dizem descender a família dos Emilianos, das mais nobres patrícias, porque o rei lhe deu o sobrenome de Emílio, por causa do seu doce e gracioso falar. Ademais, tenho eu próprio por várias vezes ouvido dizer e contar, em Roma, que os Romanos, havendo recebido um oráculo pelo qual lhes fora recomendado que erigissem na cidade imagens ao mais sábio e ao mais valente homem que jamais existiu entre os Gregos, fizeram colocar na praça duas estátuas de cobre, uma de Pitágoras e outra de Alcibíades; todavia, quanto a isso, pois que há tantas dúvidas, esforçar-se por mais amplamente refutá-lo ou prová-lo me pareceria obstinação ingênua e tola.

XVI. Criação do colégio dos pontífices

XVI. Além disso, atribui-se a Numa a ereção e instituição do colégio dos pontífices, e dizem ter sido ele próprio o primeiro; mas, quanto ao nome de pontífices, querem alguns dizer que foram assim chamados porque se destinam principalmente ao serviço145 do Todo-Poderoso, pois a palavra Potens significa em língua Romana o que dizemos poderoso. Cuidam outros que esse nome lhes tenha sido imposto por maneira de exceção, como se o fundador os tivesse injungido a fazer aos deuses os serviços e sacrifícios que lhes fossem possíveis, mas que, se acaso tivessem também algum legítimo impedimento, não os condenaria pela omissão; todavia, a maior parte aprova outra derivação desse nome, onde me parece haver menos razão, como se tivessem sido chamados pontífices por lhes haver sido cometido o encargo de entreter a ponte, ou em virtude de alguns dos mais antigos e mais santos sacrifícios, os quais se realizam em cima da ponte. Pois ao que os Gregos chamam de Gephyran dão os Latinos o nome de Pontem, isto é, ponte. E, na verdade, o encargo de mandar reparar a ponte pertence aos pontífices, nem mais nem menos do que a guarda das mais santas e imutáveis cerimônias, por isso que os Romanos -estimavam não ser admissível, antes reputavam danoso malefício, violar ou romper a ponte de madeira, a qual, como se diz, era toda conjunta e ligada somente com madeira, sem nenhuma ferragem, segundo a recomendação de antigo oráculo. Mas a ponte de pedra146 foi construída muito tempo depois do reinado de Numa, quando reinava seu sobrinho Márcio. Ora, o primeiro e principal desses pontífices, que eles chamam de grande pontífice, tem o lugar, a autoridade e a dignidade de soberano presbítero e senhor da lei, que deve ter os olhos não somente sobre as cerimônias e sacrifícios públicos, mas também sobre os particulares, para velar que nenhum em caráter privado ultrapasse as cerimônias antigas ou inove alguma coisa na religião, e para ensinar a cada um como e com que deve servir e honrar os deuses.

XVII. Consagração das Vestais. Fogo sagrado: maneira de acendê-lo

XVII. Tem ele também a guarda das virgens sagradas, que se chamam Vestais, pois se atribui semelhantemente a Numa a primeira fundação e consagração delas, e também a instituição de guardar com honra e reverência o fogo imortal que elas têm em guarda, ou porque ele estimasse conveniente confiar a substância do fogo, que é pura e nítida, à guarda de pessoas não corrompidas nem poluídas, ou porque pensasse que a natureza do fogo, que é estéril e nada produz assentava bem à virgindade; pois também na Grécia, nos lugares onde se guarda assim o fogo perpétuo, como no templo de Apoio Pítico na cidade de Delfos e em Atenas, não são virgens que têm dele o cuidado, antes são mulheres que passaram a idade de ser casadas.

E, se acaso esse fogo vem a falhar — como se diz que em Atenas, a santa lâmpada se extinguiu, ao tempo da tirania de Arístion; e na cidade de Delfos, quando o templo de Apoio foi ardido e queimado pelos Medos; e também em Roma, ao tempo da guerra que os Romanos tiveram contra o rei Mitridates; e ao tempo das guerras civis, quando o fogo e o altar foram todos consumidos juntos — dizem eles ser preciso não tornar a acendê-lo com outro fogo material, mas fazê-lo inteiramente de novo, tirando-o da flama pura e nítida dos raios do sol, o que fazem desta maneira: têm eles um vaso oco, composto da costa de um triângulo147 com um ângulo reto e duas pernas iguais; de sorte que todos os lugares de sua volta e circunferência vão acabar num ponto;-depois, levantam esse vaso reto contra o sol radiante, de sorte que os raios luminosos vão de todos os lados unir-se e acumular-se no centro do vaso, onde sutilizam o ar tão fortemente que o inflamam; e, quando se aproxima dele alguma matéria árida e seca, o fogo aí pega incontinente, por isso que o raio, por meio da reverberação, toma corpo de fogo e forca para inflamar-se. Alguns estimam que essas religiosas vestais não guardem outra coisa senão esse fogo que jamais se extingue; dizem outros que há ainda outras coisas santas que a ninguém é permitido ver senão a elas somente, e a respeito das quais escrevemos mais amplamente na vida de Camilo, ao menos o que sobre elas se pode saber e dizer. As primeiras jovens entregues e votadas por Numa a essa religião foram, como se disse, Gegânia e Verênia, e depois delas Canuléia e Tarpéia; mais tarde, o rei Sérvio ajuntou-lhes duas outras, e ficou esse nome até ao tempo presente.

XVIII. Privilégios e punição das Vestais

XVIII. Sua regra foi assim ordenada pelo rei: deviam votar e guardar castidade pelo espaço de trinta anos, nos dez primeiros dos quais aprendem o que devem fazer, nos dez seguintes fazem o que aprenderam e nos dez últimos ensinam às noviças; passado esse tempo, é-lhes permitido casarem-se, se bem lhes parece, e adotarem outra maneira de viver, saindo dessa religião; mas, pelo que se diz, jamais houve as que usassem de tal licença, e ainda menos prêmio existe para as que usaram, antes todas se arrependeram e viveram em langor e tristeza todo o resto da vida, o que atemorizou as outras, de maneira que preferiram conter-se e permaneceram virgens até à velhice e à morte. Também lhes deu ele grandes privilégios e prerrogativas, como a de poderem fazer testamento em vida mesmo de seu pai; de poderem fazer todas as coisas sem intermédio de curador, como as mulheres que têm três filhos 148; quando saem em público, levam-se massas diante delas para honrá-las; e, se acaso encontram em seu caminho algum pobre criminoso que se conduz à morte, salvam-lhe a vida, mas é preciso que a religiosa afirme por juramento que o encontro foi casual e não propositado; se alguém se lança sob a cadeira em que são transportadas pela cidade, é punido com a morte; também, quando cometem alguma falta, são batidas pelo grande pontífice, que às vezes as flagela inteiramente nuas, segundo a qualidade do delito, em lugar obscuro e sob uma cortina; mas aquela que profanou sua honra e violou sua virgindade é enterrada viva junto a uma das portas da cidade, que se chama Porta Colina, por isso que há dentro da cidade certa mota de terra que se estende bastante longe e a chamam os Latinos por uma palavra que significa tanto como elevação. Sob essa elevação, abre-se uma pequena cava e deixa-se uma passagem pela qual se pode resvalar, e dentro há um pequeno leito instalado, uma lâmpada ardente e uns poucos víveres necessários para sustentar a vida do homem, como um pouco de pão, água e leite num pote, e um pouco de óleo, à maneira de desencargo e quitação de consciência, a fim de não parece r que se faça morrer de fome um corpo que foi sagrado pelas mais devotas e mais santas cerimônias do mundo. Isso feito, pega-se a criminosa e mete-se dentro de uma liteira, que se cobre bem por fora e cerra-se com correias, de sorte que não se poderia daí ouvir-lhe ao menos a voz, e assim é levada através da praça. De muito longe, quando se vê essa liteira, todos se afastam para abrir-lhe caminho e a seguem de cara baixa e morna, sem dizer palavra. Não se faz coisa em toda a cidade que seja tão horrível de ver-se como isso, nem há dia no qual as pessoas estejam tão tristes como nesse. Depois, quando chega ao local dessa cava, os acólitos incontinente desligam as amarras da liteira e, então, o grande pontífice, após levando as mãos para o céu, tira fora da liteira a paciente149 toda enleada e coloca-a em cima da escada pela qual se desce dentro da cava. Feito isso, retira-se, e todos os presbíteros também; depois, quando a criminosa já desceu, retira-se para cima a escada e deita-se bastante terra dentro da abertura, de sorte que esta fique tapada até ao nível do resto da elevação. Eis como são punidas as religiosas vestais que mancharam sua virgindade.

XIX. Templo de Vesta

XIX. Sustenta-se também que foi Numa quem mandou construir o templo redondo da deusa Vesta, no qual está guardado o fogo eterno150, representando não a forma da terra, que se diz ser Vesta, mas a figura do mundo universal, no meio do qual os Pitagorianos pretendem se encontre a sede e morada própria do fogo, ao qual chamam Vesta e dizem ser a unidade, pois não acham que a terra seja imóvel151 nem esteja situada no centro do universo, nem que o céu gire ao redor, antes pelo contrário dizem que ela está suspensa em torno do fogo, como centro do mundo, pretendendo assim que não se trate de uma das primeiras e principais partes do universo, a qual opinião dizem que o próprio Platão teve na velhice, que a terra estava em outro lugar que não o meio, e que o centro do mundo, como sítio mais honroso, pertencia a alguma outra mais digna substância.

XX. Culto da deusa Libitina: leis do luto

XX. Mas, além disso, o ofício dos pontífices consiste ainda em mostrar ao que os procuram todos os direitos, usos e costumes das sepulturas, tendo-lhes Numa ensinado a não crerem que haja nisso poluição nem contaminação nenhuma, mas sim reverenciarem e honrarem de serviço usitados e legítimos os ditos subterrâneos, como aqueles que recebem após nossa morte uma das principais partes de nós; mas, sobre todas as outras, eles têm em singular reverência a deusa que chamam de Libitina, superintendente e conservadora dos direitos dos mortos, ou seja Prosérpina, ou Vênus, assim como os mais sábios Romanos estimam, pois não sem causa atribuem a superioridade do que concerne ao começo e ao fim da vida dos homens ao mesmo poder da divindade. Estabeleceu também quanto tempo se deveria usar luto, segundo as diversas idades dos defuntos, como não quis que de nenhum modo se usasse luto pela morte de uma criança falecida abaixo da idade de três anos; e acima, até à idade de dez anos, ordenou se usasse durante tantos meses quanto tivesse vivido em anos, sem acrescentar a mim um só dia, pois queria que o luto mais longo fosse de dez meses apenas, assim como ordenou também que as mulheres viúvas continuassem em viuvez, pelo menos, logo após o falecimento dos maridos, sendo que de outro modo aquela152 que desejasse casar-se de novo, antes desse prazo, era obrigada a sacrificar por sua ordem uma vaca prenhe.

XXI. Sacerdotes Sálios, Feciais

XXI. Numa instituiu ainda várias outras espécie de presbíteros, mas não mencionarei mais do que duas: uma será a dos Sálios, e outra a dos Feciais, por me parecer- que ambas mostram de maneira evidente a grande santidade e devoção que existiam nele. Os Feciais são propriamente aqueles que os Gregos chamam de Irenophylaces, como quem diria conservadores da paz, e me parece que tiveram o nome do efeito que deviam provocar segundo o dever do ofício, porque apaziguavam as divergências com a razão por via de acordo, não permitindo, quando possível, que se chegasse às vias de fato e das armas antes de toda esperança de paz ter sido frustrada; pois os Gregos chamam propriamente Irenen, quando as duas partes acordam e decidem suas divergências com a razão, e não pelas armas.

Também aqueles que os Romanos chamam de Feciais se dirigiam muitas vezes pessoalmente aos que ofendiam os Romanos e tratavam de persuadi-los com vivas razões, que eles reconheciam de boa-fé; mas, se não quisessem submeter-se à razão, então era invocado o testemunho dos deuses, aos quais pediam que, se aqueles outros não prosseguissem justamente o que por direito lhes pertencia, então todos os males e desgraças da guerra caíssem sobre eles mesmos e o seu país. Isso feito, declaravam a guerra aos inimigos; e, se por acaso esses Feciais se opusessem, ou não quisessem consentir na declaração, de uma guerra, nesse caso não era permitido nem a homem privado nem ao próprio rei mover as armas: antes preciso que, como justo príncipe, pedisse licença para iniciar uma guerra por sua permissão; e então consultava por que meio lhe seria mais expediente conduzi-la.

XXII. A esse propósito, sustenta-se que o infortúnio causado aos Romanos, quando a cidade foi tomada e saqueada pelos Gauleses, resultou da transgressão daquele santo costume, pois os Bárbaros tinham então sitiado a cidade de Clúsio, e foi-lhes enviado como embaixador Fábio Ambusto, para ver se poderia negociar um acordo. Não foi favorável a resposta dos Bárbaros, de modo que ele, estimando finda sua missão, foi tão temerário que tomou das armas pelos Clusinos, desafiando para combater de homem para homem o mais valente dos Gauleses.

Favoreceu-o a fortuna nesse combate, de maneira que derrotou o Gaulés e o despojou em seguida. Os Gauleses, vendo derrotado seu chefe, enviaram incontinente um arauto a Roma para acusar esse Fábio como tendo contra o direito e a razão começando a guerra sem prévia declaração. Os Feciais, então advertiram que era preciso entregá-lo nas mãos dos Gauleses, mas ele recorreu ao povo, que lhe foi favorável, tendo assim escapado à pena que merecera; mas, pouco tempo depois, com todo o seu poderio, os Gauleses marcharam contra Roma, tomando-a, saqueando-a e queimando-a toda, exceto o Capitólio, assim como escrevemos mais amplamente na vida de Camilo.

XXIII. Doença pestilencial em Roma. Escudo que se diz caído do céu. Escudos sagrados

XXIII. E, quanto aos presbíteros Sálios, dizem que os instituiu nessa ocasião: por volta do oitavo ano de reinado, surgiu uma doença pestilencial que, após haver corrido toda a Itália, finalmente invadiu também a cidade de Roma, de forma que, estando toda a gente grandemente abalada e desencorajada, dizem ter caído do céu um escudo de cobre que foi parar nas mãos de Numa; e, a esse respeito, conta-se uma história maravilhosa, que o próprio rei afirmou ter ouvido da ninfa Egéria e das Musas, a saber, que o tal escudo fora enviado do céu para salvar e conservar a cidade e que, assim, era preciso preservá-lo diligentemente e com ele fundir e forjar outros onze de feitio e tamanho inteiramente iguais, a fim de que, se acaso houvesse quem empreendesse roubá-lo, ficassem sem saber qual tomar por verdadeiro, Ademais, dizem ainda que era preciso dedicar e consagrar às Musas o lugar no qual se encontrava frequentemente com elas, bem como os prados circunvizinhos; e que era preciso também destinar a fonte surgida naquele mesmo lugar às religiosas vestais, a fim de que todos os dias elas ali fossem tirar água para lavar a regar o santuário do templo. Os acontecimentos testemunharam que era verdade o que diziam, pois a doença cessou incontinente; e ele mostrou o escudo a todos os fundidores então existentes em Roma, para tentarem fazer outros, semelhantes; todos desesperaram de poder consegui-lo, ma s um, chamado Vetúrio Mamúrio, o mais excelente operário da época, os fez todos tão parecidos que o próprio Numa não pôde mais reconhecê-los quando se misturaram. Ordenou assim àqueles presbíteros Sálios que os guardassem e os tivessem a seu cargo, e foram chamados Sálios, não por causa do nome de certo Sálio, natural de Samotrácia ou de Mantinéia, como falsamente alguns têm querido dizer, porque foi ele o primeiro que inventou a maneira de bailar armado, mas antes foram assim chamados por sua maneira de dançar saltando; pois no mês de março vão saltando por toda a cidade, levando nos braços aqueles escudos, vestidos com jalecos vermelhos e cingidos por cima com talabartes chatos e largos de cobre, tendo à cabeça capacetes também de cobre e batendo nos escudos com as curtas adagas que levam na mão. Em suma, todo o baile consiste no movimento dos pés, que se mexem grotescamente, fazendo súbitas voltas e reviravoltas, com grande forca e agilidade, Dão a esse escudo o nome de Ancília, por causa de sua forma153, que não é inteiramente circular, porque a curva não é toda redonda como nos escudos comuns, mas há um corte e incisura de linha sinuosa, cujas duas extremidades se recurvam em várias voltas muito perto uma da outra, de maneira que todo o conjunto vem a formar uma curva a que os Gregos chamam «Ancylon»; ou são assim chamados porque Ancon significa cotovelo, à volta do qual os levam. Todas essas derivações são descritas na história de Juba, que pretende a toda a forca que essa palavra Ancília tenha sido tirada da língua grega, e poderia ser também que tivessem sido assim chamados por haverem descido do alto, o que os Gregos dizem «Anecathen»; ou pela cura dos doentes, que se chama Acesis; ou pela cessação da seca, que se diz em grego «Auchmon lysis», e pelo término dos males e desgraças, para os quais os Atenienses invocam Castor e Polux Anacas, ao menos se se quer dar àquela palavra a derivação tomada à língua grega. Ora, a recompensa que recebeu o fundidor Mamúrio por ter forjado os tais escudos foi que, até hoje, os Sálios fazem ainda menção dele, em certo cântico que vão entoando pela cidade, bailando sua dança armada; todavia, há quem estime que não dizem Vetúri o Mamúrio, mas sim «Veterem memoriam», isto é, antiga memória.

XXIV. Palácio de Numa. Cerimônias religiosas

XXIV. Mas Numa, após haver estabelecido e instituído essas ordens de presbíteros, construiu junto ao templo de Vesta sua casa, que se chama ainda hoje Regia, isto é, o palácio do rei, no qual ficava a maior parte do tempo, vagando ou sacrificando aos deuses, ou para ensinar aos presbíteros o que deviam fazer, ou para dedicar-se com eles à contemplação das coisas divinas; é verdade que havia outra casa em cima do monte, que se chama agora Quirinal, cuja praça ainda hoje se mostra. Mas, em todos os sacrifícios, cerimônias e procissões dos presbíteros, havia sempre acólitos que marchavam à frente e iam gritando ao povo que se calasse, deixando qualquer outra preocupação para ficar atento ao serviço divino. Pois, como dizem que os Pitagorianos não achavam bom que se adorassem os deuses, nem que se lhes fizessem preces, passeando ou fazendo outra coisa, antes queriam que se saísse de casa expressamente com a intenção de servi-los e rogar-lhes, também pensou o rei Numa ser preciso que os súditos não vissem nem ouvissem nada do serviço divino negligentemente, fazendo outra coisa; antes queria que interrompessem qualquer outra tarefa e que nisso empregassem todo o pensamento e todo o entendimento, como no principal ato da religião e devoção para com os deuses; de sorte que desejava que, durante o serviço divino, não se ouvisse nas ruas nem murmurar, nem bater nem chorar, nem suspirar de aflição, como se ouve ordinariamente nos lugares onde se exercem misteres necessários e mecânicos, do que se vê até hoje, nos sacrifícios de Roma, algum vestígio que ficou: enquanto o magistrado contempla o voo dos pássaros ou faz algum sacrifício, gritam alto «Hoc age», que vale tanto como dizer «Faze isto», e é uma advertência aos assistentes para se recolherem pensando no que estão fazendo.

XXV. Também há várias de suas ordenanças semelhantes aos preceitos dos Pitagorianos; pois, assim como estes admoestavam a «não sentar sobre a. canada154, não fender o fogo com a espada155, não olhar para trás fora de casa156, sacrificar aos deuses celestes em número não par157 e aos deuses terrestres em número par», dos quais preceitos não queriam que o poviléu tivesse inteligência, assim também há muitas instituições de Numa cuja razão é oculta158, como «não oferecer aos deuses vinho de videira não podada e não sacrificar-lhes sem farinha, fazer uma volta ao adorar e saudar os deuses, e sentar depois de adorá-los». Ora, quanto às duas primeiras ordenanças, parece que por elas quis ele recomendar a clemência e a doçura, como sendo parte da devoção para com os deuses; mas, quanto àquela volta que pretende façam os que adoram os deuses, dizem ser uma representação do giro que faz o céu por seu movimento; mas pareceria antes ser porque, estando os templos voltados para o sol levante, o adorador, ao entrar dá as costas para o oriente, e por isso se volta para aquele lado e depois torna a voltar-se para o deus fazendo a volta completa e perfazendo a consumação de sua prece por essa dupla adoração à frente e atrás; não é assim por acaso que ele teria secretamente querido significar e dar a entender por esse giro e mudança de observação o que os Egípcios figuram com suas rodas, querendo mostrar que as coisas humanas nunca permanecem firmes no mesmo estado; e porque nos é preciso aceitar e suportar
 pacientemente, de certa maneira, que a Deus agrade remover e transformar nossa vida e, quanto ao que recomendava, sentar depois de adorar, dizem que era um presságio de boa esperança aos suplicantes, para que suas preces fossem escutadas e os seus bens continuassem firmes; dizem outros que o repouso é uma separação das ações e, portanto, que ele queria que todos se sentassem nos templos dos deuses para mostrarem que tinham posto fim à tarefa que antes tinham em mãos, devendo receber dos deuses o começo de outra. E pode ser também que isso se relacione com o que dissemos há pouco, que Numa queria acostumar sua gente, a não servir nem falar aos deuses passeando ou fazendo outra coisa e às pressas, mas queria que tal se fizesse com tempo e lazer, suspensas então todas as outras coisas.

XXVI. Seus efeitos sobre os costumes dos Romanos

XXVI. Por esse aprendizado e encaminhamento para a religião, a cidade de Roma tornou-se aos poucos tão manejável, e teve em tal admiração o poder do rei Numa, que recebeu por verdadeiros contos onde não havia mais aparência do que nas fábulas muito simplesmente inventadas; e pensou que não havia mais nada incrível nem impossível para ele, desde que o quisesse. A esse propósito, conta-se que um dia, tendo convidado para jantar numerosos cidadãos da cidade, mandou que lhes servissem viandas muito simples e comuns, com baixela bastante pobre; e, como tivessem já começado a jantar, dirigiu-lhes uma palavra em virtude da qual a deusa que frequentava imediatamente lhes apareceu, e em seguida a sala ficou cheia de preciosos móveis e as mesas cobertas de viandas esquisitas e deliciosas.

XXVII. Mas ainda excede mais toda a vaidade de mentira o que se acha por escrito no tocante ao seu parlamento com Júpiter. Pois o monte Aventin o não era ainda então habitado nem encerrado dentro da cidade, mas havia muitas fontes e bosques sombrios, aonde iam ordinariamente divertir-se dois deuses, Pico e Fauno, os quais se poderia em suma estimar fosse dois sátiros ou da raça dos Titãs159 exceto quanto ao dizer-se que iam por toda a Itália fazendo os mesmos milagres e provas maravilhosas em virtude de medicinas, encantamentos e arte mágica, atribuídos àqueles que os Gregos chamam de Idaees Dactyles; assim, dizem que Numa os surpreendeu a ambos quando tomavam vinho e mel dentro da monte onde costumavam beber costumeiramente. Ao sentirem-se pilhados, transfiguraram-se das mais diversas formas, disfarçando e transmudando sua essência em vários fantasmas terríveis e medonhos; todavia, quando afinal se viram tão bem pilhados que não podiam de modo algum escapar, revelaram-lhe diversas coisas sobre o futuro e ensinaram-lhe a purificação contra o raio e o trovão, que se faz ainda hoje com cebolas, cabelos e sardinhas160. Dizem outros que não foram eles que lha ensinaram; mas que, por conjuração de arte mágica, fizeram Júpiter descer do céu; furioso com isso, Júpiter respondeu em cólera que precisava fazê-la com cabeças, e Numa incontinente acrescentou que de cebolas; Júpiter replicou que de homens.

Numa de novo lhe perguntou, para divertir um pouco a crueldade daquela ordem, que cabelos; Júpiter respondeu que de vivas161, e Numa acrescentou que de sardinhas; e dizem que foi a deusa Egéria quem ensinou tal sutileza a Numa. Isso feito, Júpiter voltou apaziguado, sendo por isso aquele lugar chamado Ilicium, porque Ileos em língua grega significa apaziguado e propício, e a purificação foi mais tarde assim feita. Esses contos, não só fabulosos, mas também dignos de escárnio, nos mostram claramente a afeição e a devoção dos homens desse tempo para com os deuses, às quais Numa os acostumara.

XXVIII. E, quanto ao próprio Numa, diziam que fixava tanto sua esperança e confiança na ajuda dos deuses, que um dia, quando lhe foram dizer que os inimigos armados iam atirar-se sobre ele, limitou-se a rir e a responder: «Eu sacrifico.» Foi ele, segundo dizem, o primeiro que edificou um templo à Fé e ao Termo, e que deu a entender aos Romanos que o mais santo e maior juramento que poderiam fazer era jurarem sua fé, como a guardam ainda hoje. Mas Têrmo que equivale a dizer limite, é o deus dos confins162, ao qual sacrificavam em público e em particular nos confins das herdades, e agora lhe sacrificam animais vivos, mas antigamente os sacrifícios se faziam sem efusão de sangue, pela sábia instituição de Numa, que ‘lhes advertia e pregava que esse deus dos confins devia ser puro e limpo de sangue e de crime, como testemunho da justiça e guarda da paz. Foi também ele, em minha opinião, quem primeiro demarcou o território de Roma, o que Rômulo não quisera fazer de medo que, demarcando o seu, confessasse o que ocupava de outrem, porque o limite, para quem o quer justamente guardar, é um lugar que freia o poder e, para quem não o quer guardar, é prova e testemunho que arguiu a injustiça; também em verdade, o território de Roma não era de grande extensão no começo, tendo Rômulo conquistado a maior parte dele, e Numa o distribuiu inteiramente aos habitantes pobres, para tirá-los da pobreza que constrange os homens a serem maus e também para encaminhar o povo ao trabalho, a fim de que, cultivando a terra, cultivasse e abrandasse também a si mesmo; pois não há mister nem vocação nenhuma no mundo que engendre no homem tão subitâneo nem tão veemente desejo da paz como a vida rústica, na qual a ousadia de combater para defender o próprio é sempre pronta, enquanto a cobiça de arrebatar com violência e ocupar injustamente o alheio é inexistente. Portanto, Numa, querendo dar aos súditos a lavoura da terra como uma bebida que os fizesse amar a paz, e desejando que se dedicassem a esse mister, antes para adocicar-lhes os costumes do que para aumentar-lhes os bens, repartiu todo o território em certas porções a que chamou Pagos, que vale tanto como dizer aldeias: em cada uma das quais estabeleceu controladores e visitadores que iam por toda parte; e ele próprio às vezes ali ia em pessoa, conjecturando pelo labor os costumes e a natureza de cada um; e àqueles que sabia diligentes fazia avançar em honra, dando-lhes autoridade e crédito; e àqueles que achava frouxos e preguiçosos emendava, orientando-os e repreendendo-os.

XXIX. Polícia de Roma. Criação dos corpos e ofícios

XXIX. Mas, entre suas constituições aprecia-se e louva-se sobre todas as outras a que ele fez no tocante à distribuição do povo por ofício; pois a cidade de Roma parecia ainda composta de duas nações como dissemos alhures, e para melhor dizer estava dividida em duas ligas de tal maneira que não podia ou não queria de modo algum reduzir-se a uma só, não sendo possível tirar-lhe inteiramente todas as parcialidades e fazer que não houvesse continuamente querelas, disputas e debates entre as duas partes. Eis porque ele pensou que, quando se quer misturar dois corpos conjuntamente, que por dureza ou contrariedade de natureza não podem receber mistura um do outro, é preciso quebrá-los e fragmentá-los tão miudamente quanto possível; pois então, pela pequenez das partes, eles se confundem melhor um com o outro; também pensou que era melhor dividir ainda todo o povo em várias pequenas parcelas, por meio das quais o lançaria em outras pardalidades que viriam a desfazer mais facilmente a principal e primeira, quando fosse dividida e separada em diversas pequenas. Assim, fez essa divisão por ofícios, como menestréis, ourives, carpinteiros, tintureiros, sapateiros, alutadores, curtidores, fundidores, oleiros e outros ofícios, dos quais enfileirou todos os supostos artesãos em um mesmo corpo, estabelecendo as respectivas confrarias, festas, assembleias e serviços aos deuses, segundo a dignidade de cada mister; assim fazendo, foi o primeiro a eliminar essa diversidade de tal forma que não mais se disse nem estimou que aqueles são Sabinos, estes Romanos, aqueloutros burgueses de Tácio e estoutros de Rômulo: de sorte que essa divisão foi uma incorporação, mistura e reunião de todos com todos.

XXX. Lei em favor das crianças

XXX. Louvam-se também, entre as suas ordenanças, a reforma e a limitação que deu à lei que permitia aos pais poderem vender os filhos, pois excetuou dentre estes os já casados, desde que o fossem por vontade e consentimento dos pais, estimando ser coisa demasiado iníqua e muito dura que a mulher que pensara ter esposado um homem livre se achasse casada com um servo.

XXXI. Reforma do calendário

XXXI. Começou também a reacomodar um pouco o calendário, não tão precisamente como o deveria ser, nem também tão ignorantemente; pois, durante o reino de Rômulo usavam eles os meses confusamente, sem ordem nem razão nenhuma, fazendo-os uns de vinte dias e menos, e outros de trinta e cinco e mais, sem terem conhecimento algum da desigualdade existente entre o curso do sol e o da lua e observando somente a regra de que haveria no ano trezentos e sessenta dias163. Mas Numa, considerando que a tara164 da desigualdade é de onze dias, porque as doze revoluções da lua se fazem em trezentos e cinquenta e quatro dias e a do sol em trezentos e sessenta e cinco, duplicou os onze dias e assim fez um mês que colocou de dois em dois anos após o mês de fevereiro, e a esse mês interposto os Romanos chamavam Mercedinum165, o qual tinha vinte e dois dias. Eis a correção que aí fez Numa, a qual depois teve necessidade ainda de maior emenda. Modificou também a ordem dos meses, pois o mês de março, que antes era o primeiro, foi posto em terceiro lugar, e tornou janeiro o primeiro, que sob Rômulo era o undécimo, e166 fevereiro o duodécimo e último; todavia, opinam vários que Numa ajuntou esses dois, janeiro e fevereiro, porque os Romanos no começo tinham somente dez meses no ano, como alguns bárbaros apenas três, e os Árcades, entre os Gregos, apenas quatro, e os Acarnânios seis; e os Egípcios tinham somente um mês no ano, que mais tarde aumentaram para quatro. Eis porque, embora habitando um país muito novo167, parecem contudo ser os mais antigos do mundo, e porque em seus anais contam um número infinito de anos, contando os meses por anos. E que seja verdadeiro que os Romanos não tinham no começo senão dez meses no ano, e não doze, pode-se julgar pelo nome do último, que chamam ainda hoje de dezembro; e que o mês de março fosse também o primeiro, pode-se conjecturar porque ainda o quinto se chama semelhantemente quintilis, o sexto sextilis, e os outros consecutivamente, segundo a ordem dos números; pois se janeiro e fevereiro fossem os primeiros, seria preciso que o mês de julho, que eles chamam de quintilis se denominasse setembro; além disso, é bem verossímil que o mês que Rômulo dedicara a Marte fosse por ele posto em primeiro lugar. O segundo era abril, assim chamado por causa de Afrodite168, isto é, Vênus, à qual se sacrificava publicamente nesse mês; e no dia primeiro dele as mulheres se banham trazendo à cabeça um chapéu de murta; todavia, diziam outros que não teve seu nome tirado de Afrodite, mas que somente se denominou aprilis porque então é que se manifestam a força e o vigor da primavera169, na qual a terra se abre e os germes das plantas e das ervas começam a brotar e desabrochar: o que em si mesma essa palavra significa. O mês seguinte chama-se maio, do nome de Maia, mãe de Mercúrio, ao qual o mês é consagrado. O mês de junho é também chamado assim pela qualidade dessa estação170, que é como a juventude do ano, conquanto alguns queiram dizer que o mês de maio tirou seu nome de Majores, que significa velhos, e o mês de junho de Juniores, que significa jovens.

Todos os outros seguintes eram antigamente chamados pelos nomes, segundo a sua ordem, de quintilis, sextilis, september october, november e december; mas depois quintilis se denominou julius, do nome de Júlio César, que derrotou Pompeu; e sextilis foi sobrenomeado augustus, do nome de seu sucessor no império, Otávio, que foi também sobrenomeado Augusto. Verdade é que Domiciano quis também que se chamassem os dois seguintes, que são setembro e outubro, um Germanicus e outro Domitianus; mas isso não durou, pois logo que ele foi morto os meses retomaram os antigos nomes. Só os dois últimos ficaram sem nunca mudarem a denominação. Mas dos dois que Numa acrescentou, ou que ao menos transpôs, o de fevereiro equivale a dizer purificativo, ou a derivação do termo muito se aproxima disso; e nesse mês são feitos sacrifícios pelas plantas171 e soleniza-se a festa das Lupercais172, na qual há muitas coisas conformes e semelhantes nos sacrifícios feitos para purificação; e o primeiro que é janeiro, foi chamado pelo nome de Jano.

XXXII. Templo de Jano, fechado durante a paz

XXXII. Assim me parece que Numa tirou o mês de março do primeiro lugar e o deu a janeiro, entre outras casas, por querer que a paz em tudo e por tudo estivesse antes da guerra e as coisas civis antes das militares. Pois esse Jano, rei ou semideus que fosse, nos primeiros tempos era civil e político, tendo mudado o viver dos homens, que antes dele era rude, áspero e selvagem, em maneira de viver maia, honesta, mais doce e mais civil. É a razão pela qual é pintado ainda hoje com dois rostos, um na frente e outro atrás, por causa dessa mudança da vida dos homens; e há em Roma um templo que lhe é dedicado com duas portas que se chamam portas da guerra, porque o costume é abri-lo quando os Romanos têm guerra em alguma parte e fechá-lo quando há paz universal: o que é bem difícil de ver-se e acontece muito pouco frequentemente, para grandeza do seu império, que de todos os lados está cercado de nações bárbaras, as quais é preciso conter e parar pelas armas. Não obstante, foi uma vez fechado, ao tempo de Augusto173, com a derrota de Antônio, e antes ainda, no ano em que Marco Atílio e Tito Mânlio foram cônsules174; mas isso não durou, pois foi incontinente reaberto, por uma guerra que sobreveio; mas, durante o reinado de Numa, jamais foi aberto um só dia, tendo ficado continuamente fechado pelo espaço de quarenta e três anos inteiros, de tal maneira haviam sido extintas e amortecidas por toda parte as causas de guerra, porque não só em Roma o povo se achou amolecido e adocicado pelo exemplo de justiça, clemência e bondade do rei, mas também nas cidades dos arredores começou maravilhosa mutação de costumes, nem mais nem menos do que se tivesse havido algum doce hálito de vento salubre e gracioso, que lhes tivesse assoprado do lado de Roma para refrescá-los; e percorreu docemente os corações dos homens o desejo de viver em paz, de laborar a terra, de educar as crianças em repouso e tranquilidade, e de servir e honrar os deuses; de maneira que por toda a Itália não havia senão festas, jogos, sacrifícios e banquetes. Os povos se frequentavam e traficavam uns com os outros sem medo nem perigo, e se entre-visitavam na mais cordial hospitalidade, como se a sapiência de Numa fosse uma viva fonte de todas as boas e honestas coisas, da qual vários arroios derivassem para irrigar toda a Itália, e como se a tranquilidade de sua prudência fosse de mão em mão comunicada a toda a gente; de tal maneira que as excessivas figuras de falar, de que os poetas se acostumaram a usar, não seriam ainda bastante amplas para suficientemente exprimir o repouso daquele reino:

Neste país os bélicos arreios
De mil teias de aranha ficam cheios;
Enferrujam-se os gumes das espadas
E das lanças as pontas aguçadas;
Não mais perturba as noites silenciosas
O soar das trombetas rumorosas,
Que outrora aos pobres olhos impedia
Fecharem-se no sono cada dia.

XXXIII. Pois não se descobre que, enquanto Numa reinou, tenha jamais havido guerra ou sedição civil, nem atentado de novidade no governo da coisa pública, e ainda menos inimizade ou inveja particularmente contra ele, nem conjuração co ntra sua pessoa por cobiça de reinar; antes seria, ou por medo de ofender os deuses, que pareciam visivelmente havê-lo tomado em proteção e salvaguarda, ou pela reverência de sua virtude, ou boa fortuna, que durante todo o seu reinado manteve a vida dos homens pura e limpa de toda maldade; como quer que seja, pôs em evidência ante os olhos de toda a gente um claro exemplo do que Platão muito tempo depois ousou dizer e afirmar, que o único meio de verdadeiro repouso e libertação de todos os males que habitualmente afligem os homens, é quando por alguma divina fortuna se encontram na mesma pessoa a soberana autoridade de poder real e a vontade do filósofo prudente, para tornar a virtude senhora e colocá-la acima do vício. Pois bem-aventurado em verdade é o homem prudente, e bem-aventurados também, consequentemente, aqueles que podem ouvir os belos discursos e bons ensinamentos que lhe saem da boca; e me parece que aí não há nenhuma necessidade de força, constrangimento, nem qualquer ameaça, para conter a multidão do povo; pois os homens, vendo a virtude ingênua impressa em tão visível patrono como a vida exemplar de seu príncipe, tornam-se voluntariamente prudentes e se conformam por si mesmos, em amizade, caridade e concórdia, com temperança e justiça uns para com os outros, a uma vida irrepreensível e verdadeiramente feliz: o que é o ponto último do maior bem e do mais nobre socorro que se poderia prestar aos homens; e aquele, por natureza, mais digno de ser rei é quem, por virtude, pode imprimir nos costumes dos homens tal disposição: o que Numa parece ter sabido e entendido melhor do que nenhum outro.

XXXIV. Morte de Numa

XXXIV. Em suma, quanto a suas mulheres e seus filhos, há contradições entre os historiadores: porque uns dizem que ele não esposou jamais outra mulher além de Tácia, e que nunca teve filhos, senão uma única filha chamada Pompília; outros escrevem, ao contrário, que teve quatro filhos, Pompônio, Pino, Calpo e Mamerco, de cada um dos quais, por sucessão de pai a filho, ficaram as mais nobres raças e mais antigas casas de Roma, a saber, a dos Pomponianos, de Pompônio; a dos Pinarianos, de Pino; a dos Calpurnianos, de Calpo; e a dos Marnercianos, de Mamerco: todas essas famílias, em razão dessa primeira origem, mantiveram o sobrenome de Reges, isto é, reis. Outros ainda, em terceiro lugar, repreendem os dois primeiros, como que para agradar a essas famílias, fazendo-as, com falsas insígnias, descender da raça do rei Numa; e assim dizem mais que sua filha Pompília nascera não de sua mulher Tácia, mas de outra chamada Lucrécia, que ele desposou após tornar-se rei. Mas todos estão bem de acordo em que sua filha Pompília foi casada com um chamado Márcio, filho daquele Márcio que o persuadiu a aceitar o reino de Roma; pois ali foi então morar com ele, tendo-lhe cabido a honra de ser recebido no número dos Senadores; e, após a morte de Numa, tendo empreendido a disputa da sucessão do reino contra Hostílio e sendo vencido, fez-se ele próprio morrer de arrependimento. Mas seu filho Márcio, que desposara Pompília, ficou sempre em Roma, onde gerou Anco Márcio, o qual foi rei de Roma após Tulo Hostílio e tinha apenas cinco anos quando Numa faleceu: a morte deste não foi súbita, pois morreu desfalecendo aos poucos, tanto pela velhice como por uma doença lenta que lhe sobreveio, segundo escreveu Piso, e faleceu após ter vivido mais de oitenta anos.

XXXV. Suas obséquias. Seus livros

XXXV. Mas a honra que se lhe prestou em seus funerais tornou-lhe a vida ainda mais feliz e mais gloriosa, pois todos os povos vizinhos, amigos, aliados e confederados dos Romanos, compareceram levando coroas e outras contribuições públicas para honrar-lhe as exéquias. Os nobres da cidade, chamados Patrícios, carregaram às costas o leito dentro do qual foi colocado seu corpo ao ser levado para a sepultura; e os presbíteros assistiram ao enterro, o que também fez todo o restante do povo, até as mulheres e crianças, que o acompanharam ao túmulo com prantos, suspiros e gemidos, não como a um rei de idade já avançada, mas como a um parente próximo ou amigo excepcional, morto prematuramente, por todos lamentado.

Não lhe queimaram o corpo, porque, segundo dizem, o proibira no testamento: antes fizeram duas grandes urnas de pedra, que enterraram ao pé do monte chamado Janículo, e puseram o corpo dentro de uma, e dentro da outra os livros sagrados que ele próprio escrevera, nem mais nem menos do que os que fizeram as leis dos Gregos as escreveram em tábuas; mas, porque em vida ensinara aos presbíteros a substância de tudo inteiramente o que estava contido dentro, quis ele que as tábuas sagradas que havia escrito fossem sepultadas com seu corpo, como se não fosse razoável que coisas tão santas fossem guardadas por letras e escrituras mortas. Segundo a qual razão, dizem que os Pitagorianos não queriam pôr por escrito suas obras nem invenções, antes lhes imprimiam a ciência na memória dos que disso soubessem dignos, sem nenhuma escritura. E, como às vezes teriam sido comunicados alguns dos mais reclusos segredos e das mais ocultas sutilezas da geometria a algum personagem que não fosse digno disso, disseram que os deuses por evidentes mensagens ameaçavam vingar esse sacrilégio e essa impiedade com alguma grande calamidade pública. De tal maneira que, vendo tantas coisas conformes e em tudo semelhantes entre eles, eu perdoo facilmente aos que se obstinam em sustentar que Numa e Pitágoras se frequentaram e comunicaram mutuamente. Mas Valério de Âncio, historiador, escreve que havia doze livros referentes ao que pertencia ao ofício dos presbíteros, e doze outros contendo a filosofia dos Gregos; e que, quatrocentos anos depois, no ano em que Público Cornélio e Marco Bébio foram cônsules175, houve grande devastação de águas e de chuvas, que fendeu a terra e descobriu aquelas urnas, cujas cobertas foram arrancadas, tendo sido uma encontrada totalmente vazia, sem aparência nem relíquia nenhuma do corpo, e na outra foram achados os livros, os quais um chamado Petílio, então pretor, teve o encargo de ler; e, tendo-os lido, fez seu relatório ao Senado, dizendo não lhe parecer expediente que o que estava escrito nos livros fosse publicado nem divulgado para o povo simples; e por essa razão foram eles levados para a praça e queimados.

XXXVI. Sua glória aumenta sob o reino dos sucessores

XXXVI. Ora, é coisa que acontece comumente a todos os homens bons e justos, serem mais louvados e estimados após a morte do que antes, porque a inveja não permanece ordinariamente após o trespasse, morrendo frequentemente antes deles; mas, não obstante, os acidentes ocorridos aos cinco reis que reinaram em Roma depois de Numa tornaram-lhe a glória ainda mais clara e mais ilustre. Pois o último deles foi expulso de seu estado e morreu no exílio após ali envelhecer; e dos outros quatro nenhum faleceu de morte natural, mas foram três assassinados à traição, e Tulo Hostílio, que reinou depois de Numa, zombando com desprezo da maior parte de suas boas e santas instituições, e mesmo da devoção para com os deuses, como coisa que torna os homens covardes e efeminados, logo que se tornou rei conduziu os súditos à guerra, mas não durou nessa louca temeridade, porque caiu numa grave, estranha e perversa doença que o fez mudar de aviso; e, ao contrário, transformou o desprezo da religião em demasiada medrosa superstição, a qual não tinha nada de comum com a verdadeira devoção e religião de Numa: e ainda infectou mais os outros com esse erro contagioso, pelo inconveniente que lhe adveio com a sua morte, pois foi atingido e queimado por um raio176

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