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Navegando pelo Nilo, pintura da tumba do nobre Sennefer, 18° dinastia, Séc. 15 a.C. Novo Reino.
O comércio sempre foi uma parte vital de qualquer civilização, seja em nível local ou internacional. Não importa quantos bens se tem, seja como indivíduo, comunidade ou país, sempre haverá algo que falta e precisará ser adquirido através do comércio com outro. O Egito Antigo era um país rico em muitos recursos naturais, mas ainda não era auto-suficiente e, portanto, dependia do comércio para certos bens e itens de luxos.
O comércio começou no período pré-dinástico no Egito (cerca 6000-3150 a.C) e continuou pelo Egito romano. Durante a maior parte de sua história, a economia do antigo Egito operava com um sistema de troca sem dinheiro. Não foi até a invasão persa de 525 a.C que uma economia baseada em moeda foi instituída no país. Antes dessa época, o comércio floresceu através de uma troca de bens e serviços baseada em um padrão de valor que ambas as partes consideravam justo.
Bens e serviços eram contados em uma unidade conhecida como deben. De acordo com o historiador James C. Thompson, o deben "funcionava como o dólar na América do Norte hoje em dia, para que os clientes soubessem o preço das coisas, exceto que não havia a moeda deben" (Egyptian Economy, p.1). Um deben era equivalente a "aproximadamente 90 gramas de cobre; itens muito caros também poderiam ser precificados em debens de prata ou ouro com mudanças proporcionais de valor" (ibid).
Se um rolo de papiro custasse um deben, e um par de sandálias também valesse um deben, o par de sandálias poderia ser trocado de forma justa pelo rolo de papiro. Da mesma forma, se três jarros de cerveja custassem um deben e um dia de trabalho valesse um deben, então seria justo pagar três jarros de cerveja por um dia de trabalho.
O comércio começou entre o Alto e o Baixo Egito, e entre os diferentes distritos daquelas regiões, antes da unificação em cerca de 3150 a.C. Na época da Primeira Dinastia do Egito (cerca 3150-2890 a.C), o comércio já estava estabelecido há muito tempo com a Mesopotâmia.
Os reis da Primeira Dinastia estabeleceram um forte governo central em sua capital, Memphis, e logo se desenvolveu uma burocracia que lidava com os detalhes da administração do país, incluindo o comércio com as terras vizinhas. A Mesopotâmia foi um dos primeiros parceiros comerciais e sua influência no desenvolvimento da arte, religião e cultura egípcias foi notada, contestada e debatida por muitos estudiosos diferentes no último século.
Parece claro, no entanto, que a antiga cultura mesopotâmica - especialmente da Suméria - teve um impacto significativo na cultura em desenvolvimento do Egito.
A arte egípcia primitiva, para citar apenas um exemplo, é evidência dessa influência. A egiptóloga Margaret Bunson observa que a famosa Paleta de Narmer da Primeira Dinastia "com sua representação de monstros e serpentes de pescoço longo entrelaçadas é distintamente mesopotâmica em design" (p.267). Bunson também observa que punhos de faca e selos cilíndricos da Mesopotâmia foram encontrados no Egito datando aproximadamente do mesmo período, e seu estilo foi usado por artesãos egípcios posteriores.
Na época da Primeira Dinastia, o comércio internacional já havia sido iniciado com as regiões do Levante, da Líbia e da Núbia. O Egito tinha uma colônia comercial em Canaã, várias na Síria e ainda mais na Núbia. Os egípcios já haviam se passado da construção de barcos de junco para barcos de madeira, e estes eram enviados regularmente ao Líbano para buscar cedro. A rota comercial por terra através do Wadi Hammamat saía do Nilo para o Mar Vermelho, com as mercadorias empacotadas e amarradas às costas de burros.
Embora muitos desses acordos comerciais tenham sido alcançados por meio de negociações pacíficas, alguns foram estabelecidos por campanha militar. O terceiro rei da Primeira Dinastia, Djer (cerca 3050-3000 a.C) liderou um exército contra a Núbia, o que assegurou a posse de valiosos centros comerciais. A Núbia era rica em minas de ouro e, na verdade, recebeu o nome da palavra egípcia para ouro, nub.
Faraós posteriores continuariam a manter uma forte presença egípcia na fronteira para garantir a segurança desses recursos e das rotas comerciais. Khasekhemui, o último rei da Segunda Dinastia do Egito (cerca 2890-2670 a.C), liderou campanhas à Núbia para acabar com rebeliões, e assegurar o controle de centros comerciais, e seus métodos se tornaram o padrão para os faraós que vieram depois dele.
Um dos mais importantes centros de comércio na Núbia é referenciado em textos egípcios como Yam. Durante o Antigo Império (cerca 2613-2181 a.C), o Yam é citado como uma fonte para madeira, marfim e ouro. A localização precisa de Yam é desconhecida, mas acredita-se que tenha estado em algum lugar na área do Shendi Reach, no Nilo, no atual Sudão.
Yam continuou como um importante centro comercial através do Reino Médio do Egito (2040-1782 a.C), mas depois desapareceu dos registros e foi substituído por outro chamado Irem na época do Novo Império (cerca 1570-1069 a.C). O período do Império Novo foi a época na qual o comércio foi mais lucrativo e mais contribuiu para formar a riqueza necessária para construir monumentos como o Templo de Karnak, os Colossos de Memnon e o templo mortuário de Hatshepsut.
Hatshepsut organizou a expedição de comércio mais conhecida para o Ponto (atual Somália), que trouxe de volta cargas de itens valiosos, incluindo árvores de incenso, mas esse tipo de lucro do comércio não era novidade. O comércio iniciado durante o Antigo Império do Egito ajudou a financiar as pirâmides de Gizé e inúmeros outros monumentos. A diferença entre o comércio do Reino Antigo e do Novo Reino, era que o Novo Reino estava muito mais interessado em artigos de luxo e, quanto mais eles se familiarizavam, mais eles o desejavam.
Os tipos de bens comercializados variavam de região para região. O Egito tinha grãos em abundância e acabaria se tornando conhecido como o "celeiro de Roma" durante o período romano, mas carecia de madeira, metal e pedras preciosas necessárias para amuletos, jóias e outras ornamentações.
O ouro era extraído pelos escravos principalmente na Núbia e os reis vizinhos do Egito muitas vezes enviavam cartas solicitando grandes quantidades para serem enviadas. As viagens para a Núbia nem sempre foram fáceis. O Yam estava localizado bem ao sul, e uma caravana tinha de suportar ameaças de bandidos, governantes regionais e da própria natureza na forma de inundações ou tempestades de vento.
As expedições mais bem documentadas para o Yam vêm do túmulo de Harkhuf, governador de Elefantina, que realizou quatro viagens até lá sob o reinado de Pepi II (2278-2184 a.C). Ele relata que em uma viagem, ele chegou para descobrir que o rei tinha ido para a guerra contra outra região e teve que trazê-lo de volta, oferecendo-lhe muitos presentes luxuosos, a fim de garantir os itens para os quais ele havia sido enviado.
Na jornada mais famosa de Harkhuf, ele voltou com um anão dançante, que empolgou tanto o jovem faraó, que ele mandou Harkhuf que mantivesse o anão a salvo a qualquer custo e se apressase para o palácio. A carta oficial diz o seguinte:
Venha para o norte para a corte imediatamente; [...] tu trarás este anão contigo, o qual tu trouxeste vivo, próspero e saudável da terra dos espíritos, para as danças do deus, para alegrar o coração do rei do Alto e Baixo Egipto, Neferkare, que vive para sempre. Quando ele descer contigo ao delta, escolha boas pessoas, que estarão ao lado dele, de cada lado do delta. Tome cuidado para ele não cair na água. Quando ele dormir à noite nomeie pessoas excelentes, para que durmam ao lado dele em sua tenda, e inspecionem dez vezes por noite. Minha majestade deseja ver esse anão mais do que os presentes do Sinai e do Ponto. Se tu chegares na corte com este anão vivo, próspero e saudável, minha majestade fará por ti uma coisa maior do que a que foi feita para o tesoureiro do tempo de Isesi, de acordo com o desejo do coração da minha majestade de ver esse anão. (Lewis, 36)
O anão dançante de Pepi II é apenas um exemplo de itens de luxo do Reino Antigo. Ao contrário das alegações de alguns estudiosos, o comércio no Egito não progrediu da praticidade para o luxo, mas permaneceu bastante consistente em relação aos bens importados e exportados. A única razão pela qual o Novo Reino é sempre escolhido por seu luxo é que o Egito estava em contato direto com mais países durante esse período do que antes; não é porque o Novo Reino se tornou repentinamente consciente dos bens de luxo. Não há dúvida, porém, de que o comércio egípcio no Novo Reino foi mais eficiente e abrangente do que em épocas anteriores e que os bens de luxo tornaram-se mais disponíveis e desejáveis. Bunson descreve o comércio egípcio durante este período, escrevendo:
Caravanas atravessavam os oásis do deserto da Líbia e trens de carga eram enviados para os domínios do norte do Mediterrâneo. Acredita-se que o Egito realizou comércio nesta época com Chipre, Creta, Cilícia, Ionia, as ilhas do mar Egeu e talvez até com a Grécia continental. A Síria continuou sendo um destino popular para o comércio de frotas e caravanas, onde os produtos sírios se uniam aos provenientes das regiões do Golfo Pérsico. Os egípcios recebiam madeira, vinhos, óleos, resinas, prata, cobre e gado em troca de ouro, linho, papel de papiro, artigos de couro e grãos. (268)
O papiro enviado para Biblos no Levante era transformado em papel, que era então usado em toda a Mesopotâmia e regiões vizinhas. A associação de Biblos com a criação de livros, de fato, fornece a base para a palavra "Bíblia".
O comércio egípcio no Levante era tão amplo que, mais tarde, os arqueólogos chegaram a acreditar que havia várias colônias egípcias na região, quando, na verdade, esses achados só estabeleceram como os bens egípcios eram populares entre os povos daquele local.
Não havia incentivos patrocinados pelo governo para o comércio no Egito, porque o rei possuía todas as terras e o que quer que se produzisse; pelo menos, em teoria. O rei era ordenado e santificado pelos deuses que haviam criado tudo e atuado como mediador entre os deuses e o povo, ele, portanto, era reconhecido como legítimo gestor da terra.
Na realidade, porém, a partir do tempo do Antigo Império, os sacerdotes dos diferentes cultos - especialmente do Culto de Amon - possuíam grandes extensões de terra isentas de impostos. Como não havia lei proibindo os sacerdotes de se envolverem no comércio, e todo o lucro ia para o templo ao invés de ir para a coroa, esses sacerdotes muitas vezes viviam tão confortavelmente quanto a realeza.
Na maior parte, entretanto, tudo o que era produzido nas fazendas ao longo do Nilo era considerado propriedade do rei e, assim, era enviado para a capital. Parte deste produto era então devolvido ao povo através de centros de distribuição e uma parte era usada para o comércio. O egiptólogo Toby Wilkinson escreve:
Os produtos agrícolas coletados como receita do governo eram tratados de duas maneiras. Uma certa proporção era enviada diretamente para oficinas estaduais para a fabricação de produtos secundários - por exemplo, sebo e couro de gado, carne de porco, linho de linho, pão e cerveja. Alguns desses produtos de valor agregado eram então negociados e trocados com lucro, produzindo mais receita ao governo, outros eram redistribuídos como pagamento aos funcionários públicos, financiando assim a corte e seus projetos. A porção restante de produtos agrícolas (principalmente grãos) era colocada em depósito em celeiros governamentais, provavelmente localizados em todo o Egito em importantes centros regionais. Alguns dos grãos armazenados eram usados em seu estado bruto para financiar as atividades da corte, mas uma parte significativa era posta de lado como estoque de emergência, para ser usado no caso de uma colheita ruim, para ajudar a evitar a fome generalizada. (46)
Era responsabilidade do rei cuidar do povo, da terra e manter o princípio da ma'at (harmonia). Se a terra produzia abundantemente e havia alimento suficiente para todos, além de excedente, o rei era considerado bem-sucedido. Se não, os padres iriam intervir para determinar o que havia dado errado e quais passos precisavam ser dados para recuperar a boa vontade dos deuses.
Os egípcios, porém, não confiavam apenas na proteção sobrenatural para administrar seu país ou se dedicar ao comércio exterior. Guardas armados eram enviados para proteger as caravanas patrocinadas pelo governo e, durante o Novo Reino do Egito, uma força policial manobrava passagens na fronteira, cobrava pedágios, protegia os cobradores e vigiava comerciantes que iam e vinham de cidades e aldeias. Homens armados que acompanhavam caravanas eram um poderoso impedimento contra roubo. Harkhuf relata como, voltando de uma de suas viagens para Yam, foi parado por um líder tribal que a princípio parecia disposto a pegar seus bens, mas, vendo o tamanho de sua escolta armada, deu-lhe muitos presentes finos, incluindo touros, e depois guiou ele em seu caminho.
O roubo de mercadorias era uma séria perda para o organizador da expedição, o "empresário", por assim dizer, não para o comerciante que de fato se dedicava ao comércio. Se um comerciante fosse roubado, ele apelaria às autoridades da região por onde passava por justiça, mas ele nem sempre conseguia tanto quanto achava que era devido. Um ladrão tinha que ser identificado como cidadão daquela região para que o governante fosse responsabilizado, e mesmo assim, se o ladrão conseguisse fugir, o rei não tinha obrigação de compensar o comerciante.
Esse tipo de situação é descrito em detalhes na obra literária História de Unamón (cerca 1090-1075 a.C), que relata a história das aventuras de Unamón na condução de uma expedição comercial para comprar madeira para o navio de Amon. Unamón é roubado por um de seus próprios homens no porto e, quando relata o roubo ao governante, ele é informado de que não há nada a ser feito porque o ladrão não é um cidadão. O príncipe aconselha Wenamun a ficar alguns dias enquanto eles procuram pelo ladrão, mas não há nada mais que eles podem fazer.
No caso de Unamón, ele faz o melhor da situação simplesmente roubando outra pessoa, mas normalmente, um comerciante retornaria ao agente patrocinador da expedição e explicaria o que aconteceu. Se a história fosse aceita, o comerciante roubado seria considerado irrepreensível, se a história parecesse falsa, seriam cobradas taxas.
De qualquer forma, o indivíduo ou agente cujos bens estavam envolvidos no comércio sofreria a perda, não a pessoa que os transportou para a transação. Não se desejaria, é claro, adquirir uma reputação de perda de bens e, portanto, para os mercadores que não trabalhavam no comércio patrocinado pelo governo, o que costumava incluir um grupo de soldados, contratar guardas armados era outro custo a ser considerado na busca do comércio.
Quaisquer que fossem os perigos e despesas, no entanto, nunca houve um tempo em que o comércio ficou para trás no Egito, nem mesmo durante esses períodos sem um governo central forte. Nos chamados períodos intermediários, os governadores individuais dos distritos desempenhavam o papel de agente governamental e mantinham as relações e rotas necessárias que permitiriam o comércio. A História de Unamón, apesar de ficção, ainda representa realisticamente como as parcerias comerciais funcionavam no mundo antigo.
Um pouco depois da época em que Unamón foi escrito, a cidade grega de Náucratis foi estabelecida no Egito. Ela seria o centro comercial mais importante do país e um dos mais vitais na região do Mediterrâneo até ser ofuscado por Alexandria.
Grécia, Egito e outras nações comercializavam bens, assim como crenças culturais, por meio de cidades como Náucratis e rotas marítimas e terrestres, e assim o comércio ampliava e elevava todas as nações que participavam, de maneiras muito mais significativas do que simples trocas econômicas.
Tradução de texto escrito por Joshua J. Mark
Junho de 2017
Moacir tem 37 anos e nasceu em Porto Alegre/RS. É graduado em História pela ULBRA (2008-12) e é o criador e mantenedor do site Apaixonados por História desde 2018.