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Reconstrução da região do Faium feita para o jogo Assassin's Creed - Origins.
O Faium (também conhecido como oásis de Faium, Fayum e Faiyum) era uma região do antigo Egito conhecida por sua fertilidade e pela abundância de vida vegetal e animal. Localizado a 100 quilômetros ao sul de Mênfis, o Faium era uma bacia árida do deserto que se tornou um oásis exuberante quando um ramo do rio Nilo assoreou e desviou a água para ele. A bacia encheu, atraindo a vida selvagem e incentivando o crescimento das plantas, o que atraiu seres humanos para a área em algum momento por volta de 7200 a.C.
Atualmente o Faiyum refere-se à moderna cidade de Medinet el-Faiyum mas, na antiguidade, designou toda a área que sustentava uma série de grandes e prósperas vilas e cidades como Shedet (mais conhecida como Crocodilópolis), Karanis, Hawara. e Kahun, entre outros. O nome deriva da antiga palavra egípcia Pa-yuum ou Pa-yom que significa “o lago” ou “o mar” e refere-se ao Lago Moeris, criado por Amenemhat I (c.1991-1962 a.C) da 12ª dinastia durante o Reino Médio (2040-1782 a.C) quando os reis da 12ª Dinastia, em particular, prestaram atenção especial a ele.
O Reino Médio do antigo Egito é considerado uma “idade de ouro” na qual a cultura produziu alguns de seus melhores trabalhos e o Faium se beneficiou do domínio estável da 12ª Dinastia tanto quanto qualquer outra região e, em muitos aspectos, ainda mais. Embora alguns escritores e comentaristas modernos conectem Pa-yom com a cidade de Pitom, mencionada no livro de Êxodo 1:11, essa afirmação é insustentável; Pa-yom referência a uma área, não a uma cidade, e as duas palavras não são sinônimos.
A região foi mais próspera durante o Reino Médio, mas declinou após a queda do Reino Novo (c. 1570-1069 a.C). Experimentou um reavivamento durante a Dinastia Ptolomaica (323-30 a.C) e o Período Romano (30 a.C-646), após o qual foi negligenciado e declinou de forma constante. É mais conhecido hoje pelos chamados Retratos do Faium, uma coleção de máscaras de múmia ricamente pintadas, criadas durante esses períodos finais e desenterradas em 1888-1899 pelo egiptólogo Flinders Petrie.
Inicialmente uma bacia sem vida, o Faium foi transformado em um jardim fértil pelo assoreamento natural do Nilo, que desviava um significativo ramo de água doce em sua direção. O fluxo da água levava consigo o rico solo do leito do rio Nilo, que se assentava dentro e ao redor do lago recém-criado e fazia brotar vegetação ao longo de suas margens. A água e a vida vegetal atraíam os animais que fizeram dessa área sua casa, e estes então traziam outros em busca de presas ou simplesmente procurando água em uma região árida.
Este braço do Nilo acabaria por ser chamado Bahr Yusef ("Rio de José") em homenagem ao profeta Jacó no Alcorão (a versão bíblica do Jacó do Livro de Gênesis) e ainda existe nos dias atuais como um canal. O primeiro canal (conhecido como Mer-Wer, "Grande Canal") foi construído durante o Reino Médio. Esses desenvolvimentos vieram muito mais tarde, no entanto, depois que as pessoas chegaram e sentiram a necessidade de nomear objetos e itens ao seu redor; antes de se tornar um canal ou ter um nome, era apenas uma ramificação natural do Nilo. Essa hidrovia e o ambiente fértil para a vida selvagem que ela criou acabaram atraindo seres humanos para a área.
Evidências de habitação humana na região do Deserto do Saara remontam a cerca de 8000 a.C e essas pessoas migraram para o vale do rio Nilo. De acordo com o egiptólogo David P. Silverman:
“vestígios da primeira comunidade agrícola indiscutível no Egito foram descobertos em Merimde Beni Salama, um sítio na orla ocidental do Delta datado de cerca de 4750 a.C ”(p.58).
Esta data foi aceita pela comunidade acadêmica por décadas até que, em 2007, as ruínas de uma antiga comunidade agrícola foram descobertas no Faium datando de cerca de 5200 a.C, também foi encontrada cerâmica datando de 5500 a.C. Deve-se notar que estas datas referem-se apenas às comunidades agrárias estabelecidas, não à habitação humana da região de Faium, que são bem anteriores datando de cerca de 7200 a.C.
O Faium por volta de 5000 a.C era um paraíso exuberante em que as pessoas devem ter vivido vidas bastante confortáveis. Havia abundância de comida e água, sombra do sol através das folhas altas de muitas árvores, e peixes e animais selvagens para complementar sua dieta. Em algum momento por volta de 4000 a.C, no entanto, uma seca parece ter mudado essas condições de vida ideais e muitas pessoas migraram para o Vale do Rio Nilo e deixaram a bacia de Faium relativamente deserta. Essas pessoas formariam as comunidades que se tornaram as grandes cidades egípcias da antiguidade.
No início do período dinástico (c. 3150-2613 a.C), a região parece ter sido largamente negligenciada por esses assentamentos, embora ainda fosse habitada no período do Antigo Reino (c. 2613-2181 a.C). O Faium era novamente um paraíso exuberante e selvagem e se tornou o local preferido para a caça de animais selvagens pela nobreza egípcia. Neste momento, o Faium era conhecido como Ta-She ("Terra dos Lagos" ou "Terra dos Lagos do Sul") pelos reis de Mênfis que registraram suas expedições lá.
Era uma região habitada principalmente pela vida selvagem (embora ainda houvesse aldeias esporádicas) e numerosas plantas, incluindo papiros, cresciam em abundância. Isso foi observado pelos caçadores que logo desenvolveram um sistema para coletar essas plantas para vários propósitos diferentes. O papiro é conhecido como o “papel” do antigo Egito, mas também era usado para fazer pequenos barcos de pesca, cordas, roupas, brinquedos infantis, amuletos, cestos, esteiras, persianas, como fonte de alimento e para muitos outros itens.
No início do Reino Médio, Amenemés I ordenou a construção do canal ao longo do Bahr Yusef, o que inundou o Faium e criou o grande Lago Moeris. Esse lago pode ser aquele referenciado na obra literária do Novo Reino conhecida como Setna II, na qual um grande sábio egípcio derrota um feiticeiro núbio, transportando sua criação diabólica para o centro de um grande lago. O sucessor de Amenemés I, Sesóstris I (c.1971-1926 a.C), parece ter sentido que o lago era um luxo muito grande e desperdiçava terras agrícolas importantes e, por isso, ordenou a construção de uma série de canais para drená-lo.
Os canais de Sesóstris I operavam com uma série de sistemas hidráulicos que moviam a água para fora da bacia do Faium para outros locais, enquanto ainda preservava um corpo de água. O resultado foi uma recuperação das terras férteis, o transporte de água para as áreas que necessitam de irrigação e a continuação do ecossistema sustentado pelo lago. Sesóstris I foi sucedido por Amenemés II (c.1929-1895 a.C) sobre cujo reinado pouco é conhecido, mas o sucessor deste rei, Sesóstris II (c.1897-1878 a.C) continuou as políticas de Sesóstris I no Faium e manteve o sistema de canais.
Sesóstris II foi sucedido por seu filho Sesóstris III (c.1878-1860 a.C), considerado o maior rei da já impressionante 12ª dinastia. Sesóstris III é mais conhecido por suas sucessivas vitórias sobre os núbios e pelo redistritamento do Egito para cortar o poder dos governadores (nomarcas). Mas essas conquistas eram apenas dois aspectos de um reinado que sintetizava o valor cultural egípcio do ma'at (harmonia e equilíbrio) e elevou o Reino Médio a suas maiores alturas. O reinado de Sesóstris III marcou o pico de prosperidade do Reino Médio, não só no Egito como um todo mas também no Faium.
As cidades do Faium, como Lahun (fundada por Sesóstris II) expandiram-se e tornaram-se mais prósperas durante o reinado de Sesóstris III. A cidade de Shedet, que era a capital da região do Faium do Antigo Reino em diante, também prosperou como as outros. Os ricos produtos da região, que supostamente tinham melhor sabor do que os de qualquer outra, resultaram em uma alta demanda e um comércio lucrativo com outras regiões do Egito e também do exterior.
O sucessor de Sesóstris III foi Amenemés III (c.1860-1815 a.C) que dedicou atenção significativa à região. Ele retornou às políticas de Sesóstris I e instalou muros de contenção, diques e canais para reduzir ainda mais o nível do lago Moeris e fornecer mais terras aráveis.
Ele construiu o famoso Labirinto como parte de seu complexo de templos em Hawara, o que Heródoto posteriormente registraria como sendo mais impressionante do que qualquer uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo. Amenemés III também ergueu uma série de outros monumentos notáveis em toda a área, como os reis da 12ª Dinastia haviam feito antes dele, e instituiu políticas que estimularam ainda mais a economia e o comércio.
A essa altura, é claro, o Faium não contava mais com animais selvagens e vegetal tão exuberante quanto no início. Conforme a região se tornou mais próspera, naturalmente também se tornou mais popular; as aldeias viraram cidades e essas cidades se expandiram e estimularam o surgimento dos subúrbios, que cresceram em seus arredores e se expandiram ainda mais.
Construir um acréscimo à casa de alguém, ou erguer novas casas, era simples: era só medir um terreno, fazer quantos tijolos de barro fossem necessários e colocá-los no lugar. Não havia leis de zoneamento e podia-se construir onde se quisesse, contanto que ninguém mais se opusesse.
Havia casas de classe alta com vigas, janelas e portas de madeira (um produto de luxo na época), mas as casas mais simples podiam ser construídas por uma quantia modesta e de maneira relativamente rápida. Da mesma forma que as pessoas hoje pedem a amigos e familiares para ajudá-los a mudar ou completar melhorias em sua casa, aqueles que viviam no antigo Faium organizariam uma festa onde os hóspedes os ajudariam a fazer e depois montar tijolos de barro para construir uma casa ou um anexo. A grande riqueza do Faium, bem como a sua beleza natural, atraiu mais e mais pessoas para a região, embora o imposto que o governo cobrava sobre esses cidadãos fosse maior do que em qualquer outro lugar.
Esta era a situação da região do Faium no início da 13ª Dinastia do Reino Médio. A essa dinastia faltou o poder e foco que eram marcas da dinastia anterior e, assim, ela se degenerou lentamente a cada novo rei. Perto do fim, a nobreza se concentrava muito mais em seu próprio prazer e dramas pessoais do que no bem do país e permitiu que os Hicsos, um povo estrangeiro que se estabeleceu em Aváris, no Delta, ganhasse controle significativo sobre o Baixo Egito. Estes desenvolvimentos levaram à perda constante de poder do governo central que finalmente caiu, inaugurando a era conhecida como o Segundo Período Intermediário (c.1782-c.1570 a.C).
Pouco é registrado do Faium durante este tempo ou no Reino Novo que o seguiu. Nenhum novo monumento foi construído e a manutenção dos canais parece ter sido negligenciada. No início da dinastia Ptolomaica, os grandes canais, obras hidráulicas, paredes e monumentos sofreram com anos de desatenção e o Faium se tornou apenas uma sombra pálida da sua antiga forma.
O Terceiro Período Intermediário (c.1069-525 a.C), que se seguiu ao Reino Novo, viu um Egito dividido entre um governo em Tânis e outro em Tebas, governantes da Líbia e da Núbia, e foi pontuado no final pela invasão persa. O período tardio (525-332 a.C) foi uma época em que o país trocou de mãos entre os persas e os egípcios até que os persas conquistaram o país. Alexandre, o Grande, tomou o Egito dos persas em 332 a.C e, após sua morte, o país foi reivindicado por um dos seus generais, Ptolomeu I Sóter (323-285 a.C), que fundou a dinastia Ptolemaica.
Ptolomeu I e seu sucessor imediato, Ptolomeu II Filadelfo (285-246 aC) dedicaram atenção significativa ao Faium, reparando e renovando os monumentos, templos, canais e edifícios administrativos que haviam caído em decadência. Ptolomeu I drenou o Lago Moeris ainda mais para criar terras mais aráveis e Ptolomeu II alocou muitas áreas desta região fértil para os veteranos gregos e macedônios.
Desde a conquista de Alexandre, o Grande, em 332 a.C, a vida no Faium melhorou dramaticamente. Mas embora a evidência dessa prosperidade seja vista em vários exemplos, as melhores e mais famosas são os Retratos do Faium. Estas são pinturas dos membros da elite da comunidade, produzidos em painéis de madeira e colocadas em suas múmias.
Quando eles foram descobertos por Flinders Petrie no final do século 19, se acreditava que eles haviam sido pintados em vida e os indivíduos os mantiveram nas paredes de suas casas até a sua morte. Desde então, se comprovou, no entanto, que essas pinturas foram feitas após a morte desses indivíduos. A incrível vitalidade das pinturas, especialmente o olhar expressivo, torna fácil entender por que Flinders Petrie acreditava que eles deviam estar vivos quando as pinturas foram feitas.
Essas obras são representações detalhadas que mostram com precisão as roupas, jóias, penteados e objetos pessoais importantes das pessoas naquele tempo. A riqueza óbvia dos temas reflete a prosperidade da região, que também é exemplificada simplesmente pela existência de pinturas que são obras de alta qualidade criadas por uma sociedade abastada e estável. A egiptóloga Helen Strudwick escreve:
Os retratos do Faium são peças de arte verdadeiramente originais, representando uma síntese do estilo naturalista clássico de retratos, com o antigo conceito egípcio de morte como um portal para uma existência contínua o além. Os retratos forneceram aos egiptólogos uma riqueza de informações sobre os membros de alto status da sociedade greco-romana no Egito - em especial suas roupas, adornos e características físicas - além de serem obras-primas de arte por si mesmos. (p.336)
As pinturas refletem a atenção que mais uma vez foi dada ao Faium durante esse período. Os dois primeiros governantes da dinastia Ptolemaica inspiraram-se no passado do Egito e trabalharam para criar uma sociedade multicultural que acolhesse a diversidade e encorajasse a cultura e as atividades intelectuais. Foi sob esses governantes que a Biblioteca de Alexandria, o Templo de Serápis e o grande farol de Alexandria foram criados. Seus sucessores, no entanto, eram menos competentes e, na época de Cleópatra VII (69-30 a.C), a grandeza do Egito havia diminuído consideravelmente.
Após a morte de Cleópatra, o país foi anexado por Roma sob o governo de Augusto César (27 a.C-14). A essa altura, após os anos de negligência durante a dinastia Ptolemaica, o Faium se deteriorara até o ponto em que os canais e as tubulações de drenagem estavam bloqueados e inutilizáveis. Augusto ordenou extensas reparações na área em todos os níveis e trouxe o Faium de volta à vida. Ao longo dos primeiros anos do Período Romano, a área experimentou um pouco da sua antiga prosperidade, pois ainda era uma terra fértil e o Egito era considerado o celeiro de Roma, fornecendo os grãos que alimentavam o império.
O Faium continuou a prosperar enquanto o império se manteve estável e em expansão, mas, quando ele começou a declinar, suas províncias seguiram o seu exemplo. A população do Faium começou a declinar no século 2 e uma praga mortal devastou ainda mais a região. No início do século 3, a população havia sido reduzida para menos de 10% dos ocupantes do século anterior.
O vale fértil, nessa época, havia sido usado em excesso e grande parte da terra havia se tornada inadequada para a vida selvagem, afastando animais que poderiam vir para a região. As plantas de papiro, outrora tão abundantes, haviam sido colhidas até quase a extinção, assim como as flores e outras espécies de fauna que antes atraíam os habitantes da área.
Embora o Faium tenha continuado a existir durante todo o período romano até a invasão árabe do século 7, e tenha servido como centro de resistência egípcia aos árabes, ele jamais retornaria à sua antiga grandeza e prosperidade.
Sob o governo árabe, foram experimentados novas eras de colheitas abundantes e comércio próspero, e a população novamente se expandiu, mas os recursos naturais da região foram esgotados - e continuariam a ser como cada vez mais conforme a exigência sobre à terra aumentasse - até o vale novamente se assemelhar à bacia árida que havia sido milênios antes.
Atualmente a área é novamente uma região agrícola rica devido aos esforços de preservação ecológica e melhorias na criação de terras. Uma série de impressionantes ruínas egípcias antigas também foram preservadas em toda a região, como a pirâmide de Amenemés III em Hawara, mas embora a área seja relativamente próxima do Cairo, não recebe muitos turistas. As pessoas do Faium vivem hoje em grande parte como seus ancestrais viviam há milhares de anos, e cultivam a terra com essencialmente os mesmos tipos de ferramentas que eram usadas na idade do ouro do Reino Médio.
Tradução de texto escrito por Joshua J. Mark
Julho de 2017
Moacir tem 37 anos e nasceu em Porto Alegre/RS. É graduado em História pela ULBRA (2008-12) e é o criador e mantenedor do site Apaixonados por História desde 2018.