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Rei Artur: A Literatura do Mito

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Capa do artigo: Rei Artur: A Literatura do Mito

Recorte da pintura "King Arthur" de Charles Ernest Butler (1903). Via Wikimedia Commons.

O rei Artur é uma das mais famosas personalidades históricas inglesas. Quem nunca ouviu falar nas aventuras dos cavaleiros da Távola Redonda, na busca pelo Santo Graal ou em alguns dos personagens centrais da trama, como, por exemplo, Lancelot e Merlin? Mas por que um personagem do século V, de historicidade discutível, tornou-se mais conhecido que qualquer rei inglês após ele? Talvez o fator responsável pelo sucesso desse mito seja a sua capacidade de, a cada nova versão, adaptar-se aos ideais e necessidades de sua época, porém, antes de tentarmos descobrir quem foi Artur e como seu mito se desenvolveu tentaremos compreender o que estava acontecendo na grande ilha britânica no começo do século 5.

No ano de 406 o Império Romano estava ruindo. A parte ocidental sofria um duro golpe: milhares de bárbaros cruzavam o rio Reno obrigando o imperador a convocar seus soldados espalhados nas regiões mais longínquas para defender o centro do império. Assim, a Britânia, uma província romana há mais de 300 anos, foi abandonada pelos soldados e, desprotegidos, os bretões passaram a ser atacados por bárbaros do norte: irlandeses, pictos e escotos.

Segundo uma lenda antiga, Vortigem, um dos líderes bretões, teria feito um acordo com os anglos-saxões, um povo do outro lado do mar, pelo qual a Britânia obteria ajuda para defender suas fronteiras em troca de um tributo anual. Em pouco tempo, os aliados começaram a exigir terras rompendo o acordo e, assim, passaram de amigos à principais inimigos dos bretões.

Um século depois, os anglo-saxões já haviam começado a colonização das novas terras conquistadas na ilha. Os bretões, fugindo da fúria bárbara, eram expulsos cada vez mais para a parte ocidental da ilha. Até que algo aconteceu. Durante décadas o avanço parou, o que não se deveu a uma barreira natural, mas ao surgimento de um líder capaz de unir os bretões e comandar ataques eficientes contra os inimigos. Um líder chamado Artur.

As fontes que possuímos sobre esse período são principalmente relatos de monges, os grandes escritores medievais. A idéia de que um guerreiro bretão chamado Artur, teria organizado uma resistência que durou décadas, e impediu por muito tempo o avanço anglo-saxão na Britânia pós-romana, foi relatada pela primeira vez por Nennius, um monge galês de meados do século VII.

Em sua obra Historia Brittonum, ele cita, não uma, mas doze batalhas vencidas pelos bretões graças à liderança de Artur. E Nennius não foi o único, durante toda a alta idade média a tradição arturiana foi transmitida por via oral até que no século XI ela ganhou sua mais importante versão escrita até então. Em 1137, apoiado pelos governantes normandos, que haviam conquistado a ilha setenta e um anos antes, o bispo Geoffrey de Monmouth escreveu a grande obra Historia Regum Britannie. Nela, ele faz um relato dos reinados dos 99 reis britânicos anteriores à invasão normanda. O rei Artur é o 91° deles. Doherty afirma o seguinte sobre essa obra:

Alguns historiadores acreditam que a classe dominante normanda procurava um herói para competir com a popularidade de Carlos Magno, o rei dos francos. Outra explicação é que talvez Geoffrey tenha pensado que seu relato (...) pudesse oferecer aos governantes normandos uma tradição a seguir, permitindo-lhes acreditar que haviam assumido o controle de uma nação com a mais digna e antiga herança. (DOHERTY, 1987, 46)

É consenso entre os historiadores que a obra do bispo galês é de caráter muito mais fictício do que histórico. Aliás, o rei Artur sempre foi uma personagem com “um pé na terra dos fatos verídicos e outro no mundo da imaginação”.(DOHERTY, 1987, 31)

Toda a história narrada no livro é muito fantasiosa. No decorrer dela, Artur luta contra gigantes, derrota o imperador romano e conquista um imenso império que inclui boa parte do norte europeu após uma centena de batalhas épicas. Justamente por essa liberdade literária do autor, a obra possui um papel de destaque no desenvolvimento do mito arturiano.

Nela, pela primeira vez, Artur é definido como um rei, e não mais um mero chefe militar. Também é nela que personagens como Merlin e Guinevere fazem sua estréia. Mordred, que já havia sido citado brevemente em outros relatos, aqui torna-se sobrinho e inimigo do rei. Além disso, é nesse relato que surge a história tradicional do nascimento de Artur em Tintagel depois do caso de amor entre Igraine e Uther, esse ultimo ajudado pela magia de Merlin.

A obra de Geoffrey de Monmouth teve grande repercussão não só na Inglaterra, mas por toda a Europa, isso porque algo incomum estava acontecendo no oriente. As cruzadas, conflito da cristandade contra os infiéis muçulmanos, permitiam um maior contato com os produtos e com a cultura oriental. A monetarização do comércio, o crescimento das cidades e o surgimento de uma classe média mercantil impulsionavam a economia. É o chamado renascimento comercial e urbano. O desenvolvimento de universidades também impulsionava o saber, os nobres tinham mais tempo e dinheiro para o entretenimento, e a literatura floresceu por toda Europa. É o renascimento literário.

Pintura Rei Arthur de Charles Ernest Butler (1903) Via Wikimedia Commons.

A Historia Regum Britannie foi logo traduzida para outros idiomas. E aqui observamos algo interessante. Já pudemos perceber que nesse período não havia uma grande diferença entre história e mito, mas parece não ter havido também uma noção de direitos autorais. Cada tradutor alterava o texto conforme achasse apropriado, adicionava novos personagens e, a partir da obra de outro autor, criava uma nova a seu próprio gosto. Na versão para o francês foi adicionada a Távola Redonda, e na tradução inglesa surgiu uma nova personagem, Morgana.

A idéia de um rei perfeito, vivendo com sua corte e com cavaleiros leais que passavam os dias atrás de aventuras, logo atraiu novos autores. O mais importante deles foi sem dúvida Chrétien de Troyes (1130-1191). Esse poeta francês do século XII foi responsável pela introdução de novos personagens (Lancelot e Percival) e de uma nova sub-história (a busca pelo Santo Graal). Foi ele também o responsável por adaptar a obra arturiana aos ideais de cavalaria e do amor cortês, por isso a importância de compreendermos estes conceitos.

Sir Galahad e a busca pelo Santo Graal - Ilustração de Arthur Hughes (1870). Via Wikimedia Commons.

A cavalaria é uma instituição tipicamente medieval. Unindo influências orientais com ideologias cristãs, ela surgiu como uma válvula de escape perfeita para o grande número de nobres prejudicados pela instituição da primogenitura.  O jovem aristocrata que desejasse entrar na ordem deveria passar anos treinando a arte militar e fortalecendo sua obediência. Ele também poderia ser nomeado cavaleiro depois de mostrar grande bravura durante uma batalha. Na teoria, o cavaleiro era um herói que se arriscava pelos indefesos e representava o ideal pleno de coragem, fé e, acima de tudo, altruísmo.

O conceito de amor cortês já é um pouco mais complexo. Não sabemos se esse conceito ideológico-comportamental realmente fazia parte do dia a dia dos medievais ou se era somente uma idéia pregada pela literatura da época. Ele pode ser relacionado diretamente com o trovadorismo, que se constitui na veneração/adoração da mulher. Para os trovadores o amor era “um principio vivificador, a fonte de todas as virtudes, que torna o homem delicado e generoso, humilde e conquistador, sincero e alegre.” (PASTOREAU, 1989, 144) A mulher era um ser inacessível e idealizado pela mente do trovador, que lhe escrevia poemas e se dispunha a oferecer-lhe todo o tipo de serviço sem esperar recompensas.

Todavia, o amor cortês, assim como outras ideologias, saiu de moda e no final da idade média surgiu uma nova versão literária sobre o nascimento, vida e morte de Artur. É a obra de Sir Thomas Malory, que é considerada uma das mais importantes sobre o tema, isso porque é usada como base por todos os escritores posteriores que tentam contar essa história. Em A Morte D’Arthur, Malory fez uso dos trabalhos de Geoffrey de Monmouth e Chrétien de Troyes para organizar a lenda e definir os rumos que ela toma a partir desse momento.

O nascimento em Tintagel, a criação com Sir Ector, a espada na pedra, a Excalibur e a Dama do Lago, a Távola Redonda, Camelot, o amor adúltero de Guinevere e Lancelot, a busca pelo Santo Graal, a usurpação de Mordred, o combate entre pai e filho e a viagem para Avalon. Está tudo em Malory, e, graças ao surgimento da imprensa nesse mesmo período, essa será a história que correrá o mundo e ganhará o coração de milhares de novos leitores.

Le morte d’Arthur, de Sir Thomas Malory (1407-1471), [foi] a primeira compilação, em uma narrativa linear, dos relatos esparsos, orais e escritos, que até então compunham a legenda arturiana. (WHITE, T. H., 2004, 294)

A lenda aristocrática do rei Artur perdeu um pouco de força durante os séculos seguintes que assistiram ao nascimento e erguimento de uma nova classe social: a burguesia. No entanto, ela ressurgiu com força no século 19 com o romantismo contemporâneo e o renascimento de ideais há muito perdidos. Muitos autores utilizaram-se de elementos nela presentes em suas histórias; o inglês Tennyson e o norte-americano Mark Twain são alguns deles.

Arthur e Guinevere em filme de 2004. Nesse longa metragem o lendário guerreiro inglês é retratado com um soldado romano que permaneceu na ilha para defendê-la dos invasores bárbaros.

No começo do século 20 o britânico T.H. White escreveu aquela que é considerada por muitos a versão definitiva do mito Arturiano, a série O Único e Eterno Rei. A autora norte-americana Marion Zimmer Bradley também deixou seu legado ao escrever As Brumas de Avalon, uma série mais voltada para os personagens femininos presentes na lenda. Bernard Cornwell, Mary Stewart e Pérsia Wooley são outros autores que também escreveram sobre o tema, alguns deles herdeiros de Malory e outros mais preocupados em tentar desvendar o Artur histórico. No cinema o mito também deixou suas marcas, com filmes como o famoso Excalibur (1981), o polêmico Rei Arthur (2004) e, mais recentemente, o filme Rei Arthur: A Lenda da Espada (2017).

Artigo escrito originalmente em 2009.

Foto de membro da equipe do site: Moacir Führ
Escrito por Moacir Führ

Moacir tem 37 anos e nasceu em Porto Alegre/RS. É graduado em História pela ULBRA (2008-12) e é o criador e mantenedor do site Apaixonados por História desde 2018.

Fontes bibiliográficas
  • ANÔNIMO, A Morte do Rei Arthur. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
  • DOHERTY, Paul C. Os Grandes Líderes: Rei Artur. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
  • DURANT, Will. A História da Civilização IV – A Idade da Fé. Rio de Janeiro: Record, 2002.
  • PASTOREAU, Michel. No tempo dos cavaleiros da távola redonda. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
  • WHITE, T.H. O Único e Eterno Rei I – A Espada na Pedra. São Paulo: W11 Editores, 2004.
  • Wikimedia Commons. Arthur Hughes - Sir Galahad. Acesso em 01 agosto 2018.
  • Wikimedia Commons. Charles Ernest Butler - King Arthur. Acesso em 01 agosto 2018.
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