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Recorte do Tondo Severiano mostra os jovens Caracala (à direita) e a imagem apagada de seu irmã Geta (à esquerda). Século 3 d.C. Altes Museum, Berlim.
Sabemos que os imperadores romanos eram frequentemente elevados ao status de deuses após sua morte. No entanto, muitos outros receberam o tratamento oposto - foram oficialmente apagados da história.
Damnatio memoriae é um termo que usamos para descrever um fenômeno romano no qual o governo condenava a memória de uma pessoa que era vista como tirana, traidora ou como inimiga do estado. As imagens de tais figuras condenadas eram destruídas, seus nomes apagados das inscrições e, se a pessoa condenada fosse um imperador ou outro funcionário do governo, mesmo suas leis poderiam ser anuladas.
Moedas com a imagem de um imperador que teve sua memória condenada seriam recuperadas (recall) ou deixavam de ter valor. Em alguns casos, a residência dos condenados podia ser arrasada ou destruída.
Isso era mais do que uma forma de vandalismo casual, motivado politicamente, e realizado por indivíduos descontentes, uma vez que a condenação exigia a aprovação do Senado e os efeitos da denúncia oficial podiam ser vistos longe de Roma.
Existem muitos exemplos de damnatio memoriae ao longo da história da República Romana e do Império. Até a época do reinado de Constantino, cerca de 26 imperadores já haviam tido suas memórias condenadas; por outro lado, cerca de 25 imperadores foram deificados após suas mortes.
O fenômeno da condenação da memória, no entanto, não é exclusivo do mundo romano. Os faraós egípcios Hatshepsut e Akhenaton também tiveram muitas de suas imagens, monumentos e inscrições destruídas por oponentes políticos ou puristas religiosos.
Instâncias de damnatio memoriae nem sempre foram completamente bem-sucedidas em apagar a memória de um indivíduo. Entre os imperadores que sofreram damnatio memoriae estão algumas das figuras mais conhecidas da história romana, incluindo Caio (também conhecido como Calígula) e Nero.
A notoriedade desses homens chega até nós não apenas de textos escritos durante suas vidas e mais tarde, mas também de imagens que sobreviveram à violência imediata da damnatio memoriae e depois a séculos de negligência.
Por exemplo, o retrato de mármore acima preserva não apenas a imagem de Calígula, mas também vestígios de tinta, informando-nos da existência desse imperador condenado, bem como da policromia da escultura antiga. Na antiguidade, esses tipos de imagens eram considerados muito poderosas e estavam intimamente ligados à identidade da pessoa que representavam.
Calígula foi o primeiro imperador a ter suas imagens propositadamente destruídas após sua morte. É impossível saber quantos retratos em bronze ou outros metais preciosos foram derretidos, mas vários retratos de mármore mostram traços de terem sido cortados ou simplesmente desmontados e descartados.
Os procedimentos da oficina para retratos imperiais oficiais ditavam que muitas estátuas de corpo inteiro em pedra eram criadas em duas partes. Assim, as cabeças de Calígula, como os que estão hoje na Villa Getty e na Galeria de Arte da Universidade de Yale, (exemplo acima) poderiam ser facilmente separadas dos corpos e descartadas, e uma cabeça-retrato do novo imperador substituiria rapidamente o ofensor.
Uma estátua de corpo inteiro de um pontifex maximus (acima) - principal sacerdote do estado, um dos títulos do imperador - de Velleia, no entanto, aparentemente passou por uma espécie de reciclagem escultural. O rosto do sucessor de Calígula, Cláudio, parece bem pequeno em comparação com a cabeça e o resto do corpo - sugerindo a alguns estudiosos que foi cortado de um retrato de Calígula.
Um recorte semelhante é evidente em um conjunto de relevos encontrados em Roma e agora alojados nos Museus do Vaticano. Os chamados relevos da Cancelleria mostram figuras mitológicas e alegóricas celebrando os membros da dinastia Flaviana por seus sucessos militares.
Em um deles, Domiciano parte de Roma em uma campanha militar, levada para fora da cidade pela vitória, por Marte e Minerva, além de personificações do Senado e do povo romano. No entanto, a cabeça no topo do imponente corpo vestido de túnica do imperador não é de Domiciano.
É de Nerva, que sucedeu Domiciano após seu assassinato e sua consequente damnatio memoriae. Como na estátua de Claudius Pontifex Maximus de Velleia, o rosto de Nerva é pequeno demais para o relevo e até parece cômico quando comparado às divindades que o cercam. Aparentemente, a escultura foi refeita.
Soluções ligeiramente mais elegantes para a damnatio memoriae podiam ser feitas em estátuas de metal. O rosto de um retrato equestre de bronze de Domiciano foi serrado e substituído pelo de seu sucessor, Nerva. O resultado é muito menos chocante do que no relevo de Cancelleria, pois a “máscara” de bronze foi feita na mesma escala que o resto da estátua e a junção é quase imperceptível.
Talvez os exemplos mais impressionantes e difundidos da damnatio memoriae venham do reinado de Caracala, um membro da dinastia Severina que governou de 211-217. Ele era inicialmente co-imperador com seu irmão mais novo, Geta, mas depois de meses de brigas entre os irmãos governantes, Caracala mandou assassinar Geta. Essa morte foi rapidamente seguida pela damnatio memoriae, em que se tornou uma ofensa capital até falar o nome do co-imperador mais jovem.
Em Roma, a imagem de Geta foi eliminada dos relevos no Arco dos Argentarii. Nenhuma tentativa elegante foi feita para refazer a obra, como havia sido feita nos Relevos da Cancelleria. Em um painel mostrando Sétimo Severo e Julia Domna (os pais de Caracala e Geta) fazendo um sacrifício em um altar, um caduceu flutua sobre um espaço vazio onde Geta deve ter estado.
Até as imagens da esposa e do sogro de Geta foram retiradas dos painéis do Arco dos Argentarii, pois eles também sofreram um damnatio memoriae. Os nomes de todos os condenados foram apagados do arco e substituídos por novas inscrições em homenagem a Caracala.
Um painel pintado encontrado no Egito demonstra o alcance muito longo da vingança romana ao representar um damnatio memoriae. O painel mostra a família Severina: Julia Domna usa brincos e colares pesados de pérolas; o cabelo e a barba de Sétimo estão tingidos de cinza; e a luz dos olhos de todas as figuras acrescentam uma qualidade realista.
O rosto infantil de Caracala - pintado quando ele era apenas o herdeiro do trono - espia para a esquerda do espectador. Ao lado dele está um apagão circular na tinta onde Geta uma vez aparecia. Essa exclusão é dramática pois demonstra a amplitude dos procedimentos de damnatio memoriae.
Alguém na província do Egito, longe do centro do Império, foi encarregado de apagar a imagem de uma criança - uma criança que cresceria para ser co-imperador, apenas para ser morta por seu próprio irmão. A tirania de Caracala e a profundidade da damnatio memoriae significavam que praticamente nenhuma imagem dos inimigos do imperador, por menor ou mais antiga, escaparia à destruição.
A damnatio memoriae continuou no mundo romano até o século 4, como pode ser visto em retratos desfigurados do rival de Constantino, Maxêncio. Com o cristianismo oficializado no mundo romano, o vandalismo de retratos imperiais continuou, mas com uma inclinação mais religiosa do que política.
O fato de retratos romanos terem sido removidos, danificados ou destruídos devido a mudanças drásticas na reputação dos indivíduos é uma evidência inconfundível de que essas imagens são mais do que apenas "imagens".
Um retrato pode ter significado ao longo de décadas e séculos - seja de um imperador romano, um líder comunista como Joseph Stálin, um ditador como Saddam Hussein ou generais confederados nos Estados Unidos.
Tradução de texto escrito por Francesca Tronchin
Setembro de 2018
Moacir tem 37 anos e nasceu em Porto Alegre/RS. É graduado em História pela ULBRA (2008-12) e é o criador e mantenedor do site Apaixonados por História desde 2018.