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A rebelião dos escravos, os gladiadores e a série Spartacus

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Capa do artigo: A rebelião dos escravos, os gladiadores e a série Spartacus

Os gladiadores da ludus de Lentulus Batiatus.

Spartacus é um seriado de TV disponível na Netflix sobre os gladiadores da cidade de Cápua no século 1 a.C., e sobre a rebelião de escravos liderada pelo gladiador trácio Espártaco. A série conta com 34 episódios em três temporadas, produzidas entre 2010-2013, e também possui um spin-off, uma minisérie em seis episódios (Spartacus: Deuses da Arena) produzida em 2011, que conta a história de Gannicus, um outro gladiador de Cápua que também foi um dos líderes da rebelião.

A série chama a atenção por ter uma fotografia muito similar a do filme 300, além de também dar muito destaque para os abdomens bem definidos dos gladiadores, que são contantemente mostrados usando apenas roupas de baixo, para destacar o seu corpo musculoso (muito mais parecido com um fisiculturista moderno do que com um gladiador romano), assim como no filme que trata dos soldados de Esparta. Por todas essas características, comecei a assistir a série com um olhar bem cético, mas devo dizer que fiquei impressionado positivamente em vários momentos.

Tudo bem, a série tem seus problemas. Por um lado, ela não perde nenhuma oportunidade de mostrar cenas de sexo. Do ponto de vista sexual, perto dessa série, Game of Thrones (HBO) parece uma série escrita por puritanos cristãos. E os romanos recebem novamente o tratamento de vilões, seguindo o padrão de Hollywood, que parece só ser capaz de produzir algo sobre a Roma Antiga criando um mocinho para lutar contra a maldade desse "maléfico império".

Mas vamos falar um pouco sobre as suas qualidades:

Pontos positivos

Acredito que nunca no cinema e na TV, os gladiadores romanos tenham sido tão bem retratados. A série mostra a vida dos gladiadores na ludus, a relação com os doctores (treinadores), as rivalidades entre os gladiadores, a irmandade que existia entre ele, a busca da glória na arena, e os privilégios concedidos aos gladiadores que se destacavam nos jogos.

A Ludus de Batiatus. Colocada no topo de uma colina e na beira de um precipício para fins dramáticos.

Essa também é a primeira produção que vi a realmente mostrar as diversas classes de gladiadores (murmillo, trácio, secutor, retiário, entre outras). O filme Gladiador, sempre tão elogiado como uma grande obra da ficção-histórica, simplesmente ignora a existência dessas classes. E no geral, essas classes são retratadas de forma correta, exceto pelos secutores, que são mostrados portando machados, ou por outros gladiadores usando maças. Esse tipo de arma não existia na época, e não era usada na arena.

Secutor usando machado? Definitivamente não!

A forma como a sociedade romana é retratada também me agradou muito. O seriado mostra o preconceito que o resto da sociedade tinha com os gladiadores, uma relação de amor e ódio. O lanista, que era o dono da escola de gladiadores (ludus), embora fosse mais rico do que a maioria da população, também sofria preconceito e era visto como inferior pelas elites romanas. E a relação dos gladiadores com os lanistas também é retratada de forma fiel: embora os gladiadores fossem lutadores que podiam ganhar grandes glórias na arena, eles não passavam de escravos, e como tais eram vistos como objetos sujeitos a vontade de seus donos.

Algumas das mulheres da série Spartacus.

A minisérie Spartacus: Deuses da Arena, também mostra as relações entre os diversos lanistas, as lutas pelos melhores gladiadores, e pelo direito de colocar os seus gladiadores nos jogos. Além disso, ela mostra a construção da arena de Cápua (que na verdade teria sido construída uns 30 anos antes), e as arenas temporárias que eram construídas antes das arenas de pedra se tornarem comuns. Embora o personagem Gannicus seja risível, a minisérie mantém a qualidade da maioria das representações.

A arena de Cápua é conhecida como uma das primeiras arenas de pedra construídas na Itália. Mas ainda há discussões entre historiadores sobre a sua construção. Alguns acreditam que o anfiteatro foi construído por volta de 100 a.C. (a série se passa na década de 70 a.C.), o que o tornaria o mais antigo, mas outros defendem que o anfiteatro atual foi construído no reinado de Augusto, sobre as ruínas de um outro anfiteatro mais antigo, e isso tornaria o anfiteatro de Pompéia o mais antigo.

As ruínas do anfiteatro de Cápua. Uma das arenas romanas mais antigas.O anfiteatro de Cápua mostrado na série.


Mesmo a primeira temporada da série, que é boa, também tem seus problemas. Os gladiadores, e Espártaco principalmente, são mostrados como deuses imbátiveis. Há uma cena em que Espártaco, praticamente pelado e usando apenas uma espada, é colocado para lutar contra cerca de 10 soldados romanos fortemente armados. E ele os vence sem nenhuma dificuldade! E essa tendência, de mostrar os gladiadores como lutadores sobre-humanos só se intensifica conforme a série avança, virando um grande problema nas temporadas finais.

Lentulus Batiatus, o lanista da ludus de Espártaco, é um personagem histórico real citado por Plutarco. Segundo o autor grego, foram os maus tratos impostos por ele que levaram a rebelião dos gladiadores.

Assim que a rebelião começa, a série também mostra de forma correta a falta de objetivos dos revoltosos e a divisão entre eles, com um grupo sendo liderado por Espártaco e outro por Crixus, o gaulês. Esse, por sinal, é um ponto interessante. A série não dá muita bola para a questão da representação correta dos tipos étnicos. Crixus é retratado como um sujeito de cabelos pretos, bem diferente de um gaulês da época, que seria loiro e teria um grande bigode.

Crixus na série Spartacus.

Oenomaus, o doctor (treinador) dos gladiadores, também é interpretado por um ator negro, mas segundo o historiador Orósio, ele também era gaulês. Confira a citação desse historiador antigo:

No ano 679 da cidade e durante o consulado de Lucullus e Cassius, 74 gladiadores escaparam da escola de formação de Cnacus Dolabella em Cápua. Sob a liderança de Crixus e Oenomaus, que eram gauleses e de Spartacus, um trácio, os fugitivos ocuparam o Monte Vesúvio. (Histories 5.24.1)

É claro que os escritos de Orósio também podem ser criticados. Segundo ele, a ludus pertencia a um homem chamado Cnacus Dolabella, enquanto todas as outras fontes falam que o lanista se chamava Lentulus Batiatus. Então não podemos tomar os seus escritos ao pé da letra, e é importante lembrar que Orósio viveu entre 375-418 d.C., mais de 400 anos após a rebelião.

Vários personagens da série são reais e aparecem nas fontes: Lentulus Batiatus era o lanista da ludus de Espártaco, Gaius Claudius Glaber foi o pretor que primeiro enfrentou e foi derrotado pelas tropas de Espártaco no Monte Vesúvio. Crixus, Oenomaus e Gannicus foram escravos que lideraram a rebelião ao lado de Espártaco. E Crasso, Júlio César e Pompeu que aparecem na terceira temporada, são todos personagens reais, que tiveram um papel fundamental na política romana no final do século 1 a.C.

Toda a primeira temporada é interessante, porque mostra a vida dos gladiadores na ludus antes da rebelião. Na segunda temporada, quando a rebelião já está em andamento, a série também mostra corretamente como ela foi subestimada pelos romanos. Nenhum general queria acabar com uma rebelião de escravos, porque eles acreditavam que não estava a altura deles. Somente quando a rebelião derrotou vários exércitos romanos, é que o senado começou a levá-la a sério e enviou suas melhores tropas para enfrentá-los.

A 2° e a 3° Temporadas: uma queda gigantesca na qualidade

Vamos deixar claro desde o início, a segunda e a terceira temporada são risíveis, além de extremamente chatas, embora essa seja uma opinião pessoal. A segunda temporada apresenta várias missões de resgate não históricas, e termina com a destruição das tropas do pretor Glaber no Monte Vesúvio em 73 a.C., logo no início da rebelião.

O pretor Glaber na série Spartacus, interpretado pelo ator Craig Parker.

Nessas temporadas as recriações de combates e batalhas beiram o ridículo, cometendo os erros de sempre praticados por Hollywood: combates individuais, soldados com armaduras sendo facilmente derrotados por soldados sem armadura, soldados sem armadura sendo invulneráveis e praticamente imortais, enquanto soldados fortemente armados morrem com facilidade para demonstrar a habilidade e a coragem dos mocinhos.

O primeiro exército a ser derrotado pelos rebeldes de Espártaco foi o exército do pretor Gaius Claudius Glaber. A série dá bastante destaque a esse personagem, do qual não sabemos praticamente nada. Os roteiristas tiveram a excelente ideia de começar a série mostrando Glaber como o responsável pela escravidão de Espártaco e de sua mulher, então todo o confronto entre Espártaco e Glaber teve uma conotação de busca pela vingança. As tropas de Glaber foram as primeiras a serem derrotados por Espártaco, quando essas as sitiavam no Monte Vesúvio.

Crasso, Júlio César e Pompeu

A terceira temporada da série mostra o confronto entre Espártaco e o exército de Crasso, o último exército enviado pelos romanos para enfrentá-lo em 71 a.C. Foi interessante ver esse milionário romano sendo retratado na TV, já que ele é uma figura normalmente ignorada pelas grandes produções.

Da esquerda para a direita: Crasso, Júlio César e Pompeu.

Júlio César também aparece nessa temporada. Ele é retratado como um jovem patrício buscando ascensão política, que é convidado por Crasso para participar das campanhas contra Espártaco. Historicamente isso não é tão absurdo, nessa época César tinha cerca de 27 anos e tinha acabado de ser eleito tribuno militar (isso aconteceu em 72 ou 71 a.C.), então é bem possível que ele tenha se envolvido na repressão a essa rebelião.

O que me irritou foi o fato de Júlio César ser retratado como um palhaço irresponsável. Nada mais longe da realidade. Desde muito cedo, César demonstrou uma visão muito clara de onde queria chegar, e mesmo nessa época ele já tinha mostrado muita seriedade no meio político, atuando como advogado nos tribunais, seja como defensor ou como acusador, em diversas causas buscando ganhar apoio para sua carreira política. Essa era uma prática comum entre políticos romanos.

Adrian Goldsworthy fala o seguinte sobre uma possível participação de Júlio César na rebelião de Espártaco:

Nenhuma de nossas fontes menciona, dessa vez, um posto em uma província, o que sugere que César serviu na própria Itália, porque a guerra dos escravos estava no auge. (...) César pode ter servido com Crasso e, se isso aconteceu, trata-se da primeira ligação conhecida entre os dois homens. (...) Tão pouco se sabe sobre o período de César como tribuno militar que não podemos afirmar se ele participou ou não da guerra dos escravos e, em caso positivo, qual o papel que desempenhou nela. Anos depois, quando liderava suas legiões contra as tribos germânicas pela primeira vez, César encorajou os soldados, afirmando que havia muitos alemães no derrotado exército dos escravos, mas seu próprio relato não menciona serviço pessoal no conflito anterior. (...) No final, é mais provável que tenha servido na guerra, e, presumivelmente, exibido a mesma competência do passado, mas talvez não tenha feito nada que o distinguisse e pudesse ter merecido a menção das fontes. (GOLDSWORTHY, p.112-113)

Pompeu também faz uma aparição rápida nos últimos minutos da série, quando há uma sugestão da rivalidade entre Crasso e Pompeu, que seria muito forte nos anos seguintes. Pompeu tentou roubar a glória da vitória sobre Espártaco, e Crasso nunca perdoou isso. No fim, a raiva de Pompeu e o desejo de glórias militares, fez Crasso se lançar em uma campanha militar no oriente, o que acabou levando a sua morte em 53 a.C., vinte anos após o fim da rebelião de Espártaco.

Homossexualidade na Roma Antiga

Diferente dos gregos, os romanos não viam a homossexualidade com bons olhos. Mas a série dá bastante destaque à relações homossexuais. Vários gladiadores são homossexuais e o tema é tratado com total naturalidade, como se os romanos não tivessem nenhum problema com isso.

Confira essa citação de Adrian Goldsworthy sobre essa questão:

A aristocracia romana admirava muitos aspectos da cultura grega, mas nunca aceitara abertamente a celebração da homossexualidade, abraçada pela nobreza de algumas cidades gregas. Os senadores que tinham amantes homens tendiam a se comportar de forma mais discreta possível e, assim mesmo, eram, frequentemente, ridicularizados em público por seus oponentes políticos. A aversão à homossexualidade parecia bem disseminada entre a maioria das classes sociais de Roma e era vista como uma coisa que enfraquecia o homem. No exército, a homossexualidade no acampamento era crime capital desde o século 2 a.C. Durante a campanha contra os cimbros, Mário concedeu a corona civica a um soldado que matou um oficial depois que ele tentou fazê-lo ceder a suas investidas. A conduta do legionário foi considerada um exemplo de virtude e coragem, enquanto a morte do oficial foi vista como punição apropriada por sua paixão excessiva e abuso de autoridade. (...) Particular desprezo era reservado aos garotos e jovens apaixonados e parceiros passivos no sexo. Tal papel implicava efeminação extrema e era considerado pior ainda que o comportamento dos mais velhos, amantes mais ativos. (GOLDSWORTHY, p.96-97)

A naturalidade com que os homossexuais são mostrados na série, é muito mais um reflexo da visão atual, de aceitação com relação a qualquer opção sexual, do que uma representação correta da visão romana no século 1 a.C. Os romanos eram extremamente preconceituosos com relação a essa prática, e é um erro imaginar que compartilhavam da visão grega sobre o tema.

Para finalizar, devo dizer que recomendo a primeira temporada da série, que traz uma representação muito interessante dos gladiadores e da realidade dos jogos. No entanto, quando o tema é a rebelião de escravos de Espártaco acho que a série comete muitos erros, e não apresenta uma visão muito realista dos eventos.

Foto de membro da equipe do site: Moacir Führ
Escrito por Moacir Führ

Moacir tem 37 anos e nasceu em Porto Alegre/RS. É graduado em História pela ULBRA (2008-12) e é o criador e mantenedor do site Apaixonados por História desde 2018.

Fontes bibiliográficas
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