Montagem sobre reprodução da pintura de Maurice Quentin de La Tour. Um retrato de Voltaire feito no século 18. Atualmente em exposição no Palácio de Versalhes. Via Wikimedia Commons.
François Marie Arouet, que usava o pseudônimo de Voltaire, nasceu em Paris em 1694 e foi um dos grandes expoentes do Iluminismo na França, sendo parte do grupo de pensadores que se denominava os philisophes. Nesse artigo trataremos de uma de suas obras mais famosas.
"Cândido ou o Otimismo” (Candide, ou l'optimisme) foi um livro publicado em 1759 em vários países europeus e em diversos lugares foi banido imediatamente. Nada de anormal visto que a censura era comum no Antigo Regime, principalmente na França. O próprio Voltaire chegou a passar alguns dias na Bastilha por escrever novelas satíricas contra o regente francês. E o que é “Cândido” além de uma das maiores sátiras da sociedade do século 18?
Ao longo de suas 132 páginas o autor faz piada da igreja, da nobreza, do exército e de outras filosofias da época. Seu principal alvo são as idéias de Leibniz. Segundo esse filósofo alemão nós “vivemos no melhor dos mundos possíveis”, ou seja, todos os eventos estão destinados a nos favorecer de alguma forma e a nossa situação de vida sempre será a melhor possível, por pior que seja. É uma filosofia extremamente otimista e ufanista, que tem por objetivo principal, ao meu ver, alienar a sociedade e impedir qualquer movimento em favor da mudança.
Durante toda a obra o jovem Cândido, personagem principal da trama, procura conciliar os desastres que vem acontecendo em sua vida a essa filosofia que lhe foi ensinada por seu mentor, chamado Pangloss. Entretanto, a filosofia de seu mestre faz com que ele tenha uma visão muito ingênua da sociedade, o que acaba lhe atraindo cada vez mais problemas.
A história começa com uma descrição do castelo onde Cândido foi educado, na Westfália. Apaixonado pela filha do Barão, Cunegunda, o jovem é expulso do castelo e passa a se aventurar no mundo. Logo fica sabendo que sua antiga casa foi atacada por Búlgaros e a partir daí o destino dele começa a se cruzar com os seus antigos companheiros do castelo (Cunegunda, Pangloss e o irmão de Cunegunda), cada um deles com uma história mais sombria e triste.
Ao longo de sua aventura, Cândido vai descobrindo novos lugares e passa pela Holanda, Portugal, Espanha e pela América, de Buenos Aires ao Paraguai, passando pelo fictício reino de Eldorado, indo para o Suriname e depois voltando para a Europa, na França, Inglaterra, Veneza e terminando sua jornada em Constantinopla. É interessante notar que ao longo de toda essa jornada ele encontra apenas desgraças e tristezas, exceto no reino fictício de Eldorado onde tudo funciona perfeitamente e onde não há guerra nem perseguição. Foi a maneira que Voltaire encontrou para ridicularizar a teoria super otimista de Leibniz.
Mas gostaria de chamar a atenção para alguns aspectos da narrativa e fazer uma analise das principais sátiras que Voltaire faz durante a obra. Sua principal crítica vai para a Igreja católica, através da Inquisição. Quando chegam a Portugal, Cândido e Pangloss são considerados culpados por um terremoto - que realmente aconteceu em 1755 - e julgados pela Inquisição:
Após o terremoto que destruiu três quartos de Lisboa, os sábios do país não haviam encontrado um meio mais eficaz para prevenir uma ruína total a não ser proporcionar ao povo um belo auto-de-fé. (...) Após o jantar, vieram prender o doutor Pangloss e seu discípulo Cândido, um por falar e, o outro, por escutar com ar de aprovação. (VOLTAIRE; pag. 24)
Os jesuítas também são ridicularizados. Quando Cândido é preso pelos índios na América, os mesmos o libertam imediatamente, com grandes cumprimentos, ao saber que ele é um assassino de jesuítas. Mas o autor também faz uma crítica aos protestantes holandeses. Deixando de fora apenas os anabatistas, que são citados de forma um pouco mais carinhosa. Os judeus também aparecem durante a narrativa, mas não acredito que a forma com que tenham sido descritos tenha sido caricata. Eles são mostrados como gananciosos e de moral duvidosa, o que reflete o pensamento da época.
As guerras e as práticas do exército também são muito criticadas. Quando Cândido entra no exército búlgaro ele sofre constantes espancamentos, mas já no terceiro dia “bateram-lhe apenas dez vezes e foi olhado por seus companheiros como um prodígio.” (VOLTAIRE; pag. 11) Isso mostra que as grandes guerras de conquista que moveram a política mercantilista muitas vezes estavam baseadas na mão-de-obra de soldados que não eram muito melhor tratados do que os escravos da América. Além disso, era comum eles serem raptados pelo exército ao invés de entrarem por vontade própria.
O pragmatismo iluminista é mostrado de forma muito interessante em uma cena na casa de um nobre veneziano. Em passagem pela biblioteca da casa dele, Cândido pede a sua opinião sobre grandes clássicos da literatura, tais como Ilíada, Paraíso Perdido, e Eneida que são ridicularizadas pelo nobre. Ao comentar as obras de Cícero ele declara “Teria ficado mais a vontade diante de suas obras filosóficas. Mas, quando vi que ele duvidava de tudo, concluí que sabia tanto quanto ele e que eu não tinha necessidade de ninguém para ser ignorante.” (VOLTAIRE; pag. 109).
De modo geral, o livro não faz críticas ao sistema absolutista em si. Há muitas críticas aos privilégios dos nobres e ao demasiado poder da igreja, mas Voltaire não se dedica muito a criticar o sistema baseado no rei absoluto, controlador de todos os poderes. “Cândido ou o Otimismo” é acima de tudo uma crítica à moral e os costumes de sua época, e uma obra que se posiciona ferozmente contra a guerra e o terror que essa causa.
Moacir tem 37 anos e nasceu em Porto Alegre/RS. É graduado em História pela ULBRA (2008-12) e é o criador e mantenedor do site Apaixonados por História desde 2018.