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A Medicina na Antiga Mesopotâmia - Médicos e diagnósticos

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Capa do artigo: A Medicina na Antiga Mesopotâmia - Médicos e diagnósticos

A tábua do Fígado (The Liver Tablet). Cerca de 1900-1600 a.C. Babilônia. Modelo de um fígado de ovelha provavelmente usado para instruir alunos na arte da Hepatoscopia. Veja mais detalhes na galeria ao final dessa série de artigos.

Nesse artigo iremos descrever a organização básica e a lógica por trás da Medicina na Antiga Mesopotâmia. Os artigos que usamos para a elaboração desse texto se focam no período do Império Neo-Assírio, quando houve uma unificação entre as culturas da Babilônia e dos conhecimentos oriundos de todo o império assírio.

A medicina mais evoluída nessa época, entretanto, não era a Mesopotâmica, mas a egípcia. No futuro, iremos fazer um artigo dedicado exclusivamente a ela.

Qual era o conhecimento da época?

O conhecimento do corpo humano era extremamente limitado na Antiga Mesopotâmia. Eles desconheciam completamente a existência de microorganismos, e não possuíam uma visão muito clara da função de cada um dos órgãos da anatomia humana. 

Acreditava-se que o coração era responsável pelo intelecto e pelo espírito, o estômago pela coração, o útero pela bondade a os rins pela força física. É provável que as autópsias fossem consideradas um tabu, porque não há registros de que tenham sido realizadas e, até onde sabemos, eles desconheciam também a existência da circulação sanguínea.

Algumas doenças por causas naturais eram reconhecidas, como as causadas por excesso de frio ou calor, consumo de alimentos estragados, e excesso de comida e bebida. Entetanto, segundo a crença da época,  a maioria das doenças era causada por espíritos e demônios. Conforme nos relata Biggs:

 "(...) profundamente enraizado no pensamento mesopotâmico estava a visão de que a doença ou qualquer tipo de problema era punição enviada pelos deuses por causa de ofensas cometidas pela pessoa doente." (BIGGS, 2005, p.3, tradução nossa)

Para os mesopotâmicos o destino de cada um já estava pré-determinado pelos deuses, mas como essas divindades eram movidas por paixões e se enfureciam como os seres humanos, o destino poderia ser alterado se os deuses viessem a ser irritados. Acreditava-se que cada pessoa possuía uma espécie de espírito-guardião (como um anjo da guarda), e se essa pessoa tomasse uma atitude que irritasse os deuses, essa proteção poderia ser retirada, tornando-a completamente vulnerável diante dos fantasmas, espíritos e demônios que rondavam o mundo.

A lista de atos que poderia ofender os deuses era imensa, logo, o uso de amuletos e encantamentos era muito comum, buscando criar uma proteção por possíveis ofensas cometidas. As estátuas de leões alados nas entradas de palácios, serviam para o mesmo propósito, proteger a construção e as pessoas dentro dela, da ação de espíritos e forças sobrenaturais malignas.

O conceito de feitiçaria, também era conhecido na época. A idéia de que comidas ou bebidas podiam ser amaldiçoadas por outra pessoa, também fazia parte das crenças mesopotâmicas. Esses feitiços podiam ser feitos utilizando partes da pessoa visada, tais como cabelos, sêmen, etc. O artigo II do código de Hamurabi (cerca de 1750 a.C.) trata de acusação de feitiçaria, mostrando como esse era um tema natural na época.

Quem eram os "médicos"?

Nos vestígios que possuímos da literatura médica da época, fica clara a existência de duas classes de "médicos": o Ashipu e os Asu. Costuma ser feita uma distinção mostrando o Ashipu como um diagnosticador e o Asu como alguém responsável por trata os sintomas.

"Todavia, havia alguma sobreposição nos respectivos desempenhos, podendo o asû completar os seus tratamentos com algum feitiço, enquanto o ašhipu concluía os rituais mágicos com a prescrição de uma droga." (MARTINS E SILVA, 2010, p.133)

Vamos discutir a seguir mais alguns detalhes de cada um dos tipos de médicos:

Ashipu

Eram sacerdotes do templo. Podiam ser homens ou mulheres. O Ashipu era o 'médico' mais importante e o primeiro a ser chamado para fazer o diagnóstico e tentar, através de rituais específicos, fazer o exorcismo do demônio causador. Sua abordagem era mais espiritual, e eles eram completamente dedicados a vencer as forças sobrenaturais que afligiam o doente.

"os ašhipu (ou šipu) eram exorcistas especializados em procedimentos mágicos, que atuavam como interlocutores dos deuses e outros espíritos; em seu nome, interpretavam a origem das doenças individuais e outras calamidades mais vastas; através da divinação, feitiços, conjuros ou esconjuros, utilizando amuletos e outros rituais mágicos, procuravam anular as forças sobrenaturais. Pelo exorcismo, cada ašhipu purificava o doente das origens do seu mal, reintegrando-o na sociedade. O ašhipu usava vestes vermelhas e, decerto para provocar maior efeito psicológico durante a sua atuação ritual, utilizava uma máscara representativa de um animal (p.ex., de leão ou águia)." (MARTINS E SILVA, 2010, p.132)

Asu

O Asu (que podia ser um homem ou mulher), por outro lado, possuía uma abordagem mais voltada para o tratamento dos sintomas. Os asu são normalmente retratados como sendo médicos seculares que trabalhavam na corte real, podendo ser enviados para socorrer outros cidadãos.

Quando a abordagem mais espiritual do ashipu não rendia resultados, o asu era chamado para fazer um exame do doente e prescrever um tratamento, que normalmente era baseado na utilização de ervas medicinais. Martins e Silva descreve assim a figura do Asu:

"cabia ao asû resolver cada situação através de prescrições tradicionais, com base em extratos, partes ou produtos de plantas, especiarias, resinas e outras substâncias naturais (administradas em poções, unguentos, clisteres, banhos, massagens, ligaduras, emplastros ou gessos), além de tratar fraturas e feridas, drenar abcessos e executar também algumas intervenções cirúrgicas. O asû distinguia-se do restante da população pelas vestes, pelo crânio raspado (como os sacerdotes) e por não usar barba. Consigo transportava um saco (tabalku) onde trazia instrumentos, ligaduras, ervas e outras medicações." (MARTINS E SILVA, 2010, p.132/133)

O ashipu e o Asu eram profissionais liberais que recebiam pagamento, não havia regulação: só eram punidos no caso de cirurgias que causassem lesões irremediáveis ou morte; se nenhuma intervenção cirúrgica houvesse sido feita, eles não possuíam responsabilidade.

A formação médica

Vários textos médicos assírios sobreviveram. Eles eram de dois tipos: os mais antigos, formados principalmente por descrições de encantamentos; e os mais recentes, com relatos de procedimentos médicos. Também foram encontrados manuais de diagnósticos e prognósticos.

Não sabemos como esses conhecimentos eram transmitidos. Existia alguma escola voltada para médicos? Se sim, esses ensinamentos eram feitos através da escrita, fazendo com que todos os candidatos a médicos precisassem dominar o cuneiforme? Não sabemos.

Alguns estudos sugerem que os ashipu sabiam ler, mas também é provável que a maioria tivesse esses conhecimentos na memória, e a transmissão se desse principalmente por uma via oral. Os asu aprendiam através de uma relação mestre-aprendiz.

Infelizmente a forma precisa pela qual o conhecimento médico era transmitido, ainda permanece um mistério para nós.

Como faziam o diagnóstico?

Já mostramos como o ashipu e o asu se relacionavam, mas como exatamente era feito o diagnóstico de uma doença?

O Ashipu possuía vários mecanismos para tentar descobrir a causa das doenças, tais como o uso da astrologia, estudos de números e formas geométricas, análise da forma que uma gota de água tomava ao cair na água. Também podia ser realizada a inspeção de órgãos de animais sacríficados. Além disso a observação de humanos e animais recém-nascidos em um determinado momento, poderia indicar a vontade dos deuses.

A Hepatoscopia (adivinhação a partir da observação das vísceras e do fígado de animais sacrificados) era lugar-comum na antiguidade, e se manteve popular até a ascensão do cristianismo. Um exemplo, muito interessante dessa prática é a Tábua do Fígado (Liber tablet), atualmente em exposição no Museu Britânico, em Londres.

Tábua de argila completa com modelo de fígado de ovelha. Provavelmente usado para instruir estudantes. Cada quadrado descreve a implicação de haver alguma aparição naquela posição. 55 quadrados (frente e verso). Cerca de 1900-1600 a.C. Tamanho: 14.6 x 14.6 cm. Museu Britânico. N° 92668

Os antigos acreditavam que mensagens eram deixadas pelos deuses nas entranhas dos animais. Mas como as informações chegavam lá? Martins e Silva esclarece:

"Conforme as crenças da época, ao ser oferecido um animal em sacrifício a determinada divindade, esta, ao aceitá-lo, identificava-se e fundia a sua alma ou espírito com a daquele animal. Assim o exame das vísceras, ao evidenciar a unicidade das almas de vítima e divindade, revelava a disposição e vontade (favorável ou desfavorável) desta relativamente ao augúrio pretendido." (MARTINS E SILVA, 2010, p.137)

Aos olhos de uma pessoa que vive no século 21, todos esses métodos parecem uma grande bobagem.  Mas os médicos da Mesopotâmia antiga não estavam limitados a isso. Também existiam textos médicos, alguns dos quais eram manuais de diagnósticos e prognósticos (previsões da evolução da doença). E possuíam também um ampla base de conhecimentos  a partir da observação de diversos casos similares. Então, embora muitas das suas práticas pareçam pura crendice, por trás desse espetáculo havia um conhecimento legítimo, que não era científico mas empírico. E isso ficará claro no nosso próximo tópico.

Foto de membro da equipe do site: Moacir Führ
Escrito por Moacir Führ

Moacir tem 37 anos e nasceu em Porto Alegre/RS. É graduado em História pela ULBRA (2008-12) e é o criador e mantenedor do site Apaixonados por História desde 2018.

Fontes bibiliográficas
  • BIGGS RS: Medicine, surgery, and public health in Ancient Mesopotamia. J. Assyr Acad Studies 2005;19:1-19
  • MARTINS E SILVA, J.: Medicina na Mesopotâmia Antiga (1° Parte). Acta Med Port 2009;22:841-854
  • MARTINS E SILVA, J.: Medicina na Mesopotâmia Antiga (2° Parte). Acta Med Port 2010;23:125-140
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