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Figuras de madeira pintadas preparando comida e cerveja.
6° Dinastia. Século 24-22 a.C. Museu Britânico. N° EA55728
Considerando o valor que os antigos egípcios davam a aproveitar a vida, não é surpresa que eles sejam conhecidos como a primeira civilização a aperfeiçoar a arte de fabricar cerveja. Os egípcios eram tão conhecidos como cervejeiros que, de fato, sua fama eclipsou os verdadeiros inventores do processo, os sumérios, mesmo nos tempos antigos. Os gregos, que não eram grandes fãs da bebida, escreveram sobre a habilidade dos egípcios, ignorando em grande parte os mesopotâmicos.
O general grego e escritor Xenofonte (430-354 a.C), no entanto, em sua obra Anábase, faz uma crítica da versão mesopotâmica que ele provou na região da Armênia, observando que "a bebida sem mistura de água era muito forte e tinha um sabor delicioso para certos paladares, mas o gosto deve ser adquirido "(4.5.27).
A bebida mesopotâmica na narrativa de Xenofonte era servida em grandes tigelas, e as pessoas bebiam através de um canudo para evitar o malte que flutuava na superfície. Essa era a maneira usual de beber cerveja na Mesopotâmia. O canudo, na verdade, foi inventado pelos sumérios especificamente para beber cerveja. A cerveja mesopotâmica era espessa, com a consistência do mingau moderno e não podia ser apenas sorvida.
Os egípcios alteraram os métodos de fabricação sumérios para criar uma bebida mais suave e mais leve, que poderia ser despejada em uma caneca ou copo para consumo. A cerveja egípcia, portanto, é mais citada como a "primeira cerveja" do mundo, porque tem mais em comum com a bebida moderna do que a receita mesopotâmica, embora poucos entusiastas modernas da cerveja reconheçam a fermentação antiga como sua bebida preferida.
Nos primeiros dias do mundo, a cerveja estava entre os muitos presentes dos deuses concedidos à humanidade. Segundo o mito, o próprio deus Osíris deu à humanidade os dons da cultura e ensinou-lhes a arte da agricultura; ao mesmo tempo, ele também os instruiu no ofício de fabricar cerveja.
Mas nenhuma história realmente relata este evento, e a origem da cerveja no Egito é frequentemente, e imprecisamente, dada na história conhecida como O Mito da Destruição da Humanidade. No entanto, esta história, que data do Novo Reino do Egito (c. 1570-1069 a.C), deixa claro que a cerveja já era conhecida pelos deuses. Nenhuma menção é feita aos deuses que criam álcool no conto, eles simplesmente encontram um bom uso para ele.
Em A Destruição da Humanidade, o grande deus Rá se cansa do constante pecado e da tolice da humanidade e decide destruir a todos na Terra. Ele libera a deusa Sekhmet para cuidar dessa tarefa para ele e parece muito satisfeito, enquanto ela se destrói uma comunidade atrás da outra, matando as pessoas e bebendo seu sangue. Os outros deuses, no entanto, apontam para ele que se Sekhmet persistir, não haverá seres humanos para oferecer sacrifícios ou adoração aos deuses e, além disso, ninguém deve ficará vivo para aprender a lição que a punição de Rá deveria ensinar.
Rá quer chamar Sekhmet de volta, mas ela está consumida pela sede de sangue e parece que não há como impedi-la. Rá, portanto, ordena que uma grande quantidade de cerveja seja tingida de vermelho e entregue a Dendera, diretamente no caminho que Sekhmet cruzará. A deusa encontra a cerveja e, pensando que é sangue, bebe. Ela então fica bêbada, adormece e acorda como Hathor, a gentil e doce amiga da humanidade. O Festival Tekh, um dos mais populares do Egito, comemorava este evento.
O Festival de Tekh era conhecido como "O Festival da Embriaguez" e foi observado pela primeira vez no Reino Médio (2040-1782 a.C), mas pode ter tido origens anteriores. Foi mais popular durante o Reino Novo, onde a história da violência e transformação de Sekhmet foi encontrada esculpida nos túmulos de Seti I, Ramsés II e outros. Neste festival, que foi dedicado a Hathor, os participantes bebiam em excesso, dormiam em um certo salão e acordavam de repente com o bater dos tambores.
O álcool diminuiria as inibições e as faculdades críticas das pessoas e permitiria um vislumbre da deusa quando os participantes fossem despertados pelos tambores. Parece ter havido também um lado sexual no festival porque, segundo a egiptóloga Carolyn Graves-Brown, algumas cenas da celebração nas paredes dos templos "vinculam a embriaguez ao 'viajar pelos pântanos', um possível eufemismo para a atividade sexual" (169).
Isso dificilmente seria surpreendente, já que o sexo não era considerado apenas um aspecto natural da vida humana, mas também estava associado a Hathor e Mut, uma deusa da fertilidade que também estava intimamente ligada ao festival.
A cerveja é mencionada como parte de quase todos os grandes festivais do antigo Egito e muitas vezes era fornecida pelo Estado, como no caso do Festival do Opet e A Bela Festa do Vale. Os festivais de Bastet, Hathor e Sekhmet, em especial, envolviam grandes quantidades de cerveja e encorajavam a bebida em excesso. Graves-Brown escreve:
Embora o ato de beber fosse muitas vezes desencorajado no antigo Egito, às vezes parece ter sido celebrado por ambos os sexos. Uma antiga tumba egípcia mostra uma mulher de elite vomitando por excesso de álcool. Uma mulher em uma festa pede 18 taças de vinho porque sua garganta está seca como palha. (p.3)
Embora a cerveja fosse apreciada nessas celebrações, certamente não era reservada apenas para ocasiões especiais. A cerveja era um alimento básico da dieta diária do egípcio, assim como uma forma comum de compensação pelo trabalho e frequentemente prescrita para a saúde.
As mulheres foram as primeiras cervejarias no Egito. A egiptóloga Helen Strudwick escreve: "tanto a fabricação de cerveja quanto a panificação eram atividades realizadas por mulheres e numerosas estatuetas encontradas em tumbas mostram mulheres moendo grãos em moinhos ou peneirando a farinha resultante" (p.408).
A cerveja foi produzida pela primeira vez em casa por mulheres e só mais tarde se tornou uma indústria financiada pelo Estado, liderada por homens.
A influência feminina inicial na fabricação de cerveja talvez seja indicada na divindade que presidiu essa habilidade: Tenenet (também Tenenit, Tjenenet) a deusa da cerveja. Como a deusa Ninkasi dos sumérios, Tenenet vigiava os cervejeiros e certificava-se de que a receita fosse observada para produzir a cerveja de melhor qualidade. Os sumérios tinham o Hino à Ninkasi, que era basicamente a receita da cerveja cantada pelos cervejeiros para que eles a memorizassem, mas nenhuma evidência de uma música parecida foi encontrada no Egito.
As antigas cervejeiras egípcias não parecem ter sofrido muito com isso, no entanto, já que seu produto era imensamente popular. O nome comum para cerveja era heqet (também referido como hecht e henket) ou tenemu (a partir do nome da deusa Tenenet), mas também havia nomes para tipos específicos de cerveja.
A cerveja era classificada de acordo com o teor alcoólico e o sabor, com a cerveja média tendo um teor alcoólico de 3-4%, enquanto a cerveja usada em festas ou cerimônias religiosas tinha maior teor alcoólico e era considerada de melhor qualidade.
Homens, mulheres e crianças bebiam cerveja, pois ela era considerada uma fonte de nutrição, não apenas um intoxicante. A cerveja era usada regularmente como pagamento para o trabalho (referido como hemu) e os trabalhadores no planalto de Gizé, por exemplo, recebiam rações de cerveja três vezes por dia como pagamento.
Registros de pagamento com cerveja em vários locais em todo o Egito, de fato, fornecem algumas das melhores evidências de que os grandes monumentos não foram construídos por escravos, mas por trabalhadores egípcios pagos.
A cerveja também era freqüentemente prescrita em textos médicos. Mais de cem receitas de remédios incluíam cerveja e, mesmo quando a cerveja não estava incluída na lista de ingredientes, sugeria-se que o paciente tomasse a receita com uma xícara de cerveja que, segundo se pensava, "alegrava o coração".
Também se acreditava que a cerveja confundisse os maus espíritos que eram considerados a causa de muitas doenças. Um feitiço dado para curar uma doença não identificada, instruí a pessoa a chamar o deus Set, que dará poder à cerveja, para que os espíritos fiquem perplexos e desorientados e deixem o corpo. Receitas precisas para essas cervejas nunca foram escritas, mas o método geral usado é bastante claro, tanto em textos e pequenos modelos de cervejeiros encontrados em tumbas.
Os exemplos mais conhecidos desses modelos vêm do túmulo de Meketre do início do Reino Médio. Estes são pequenos dioramas que detalham o processo de fermentação naquela época. Os modelos suplementam cartas, recibos e outros trabalhos escritos, descrevendo como a cerveja era fabricada e por quem. Strudwick observa que
"embora a cerveja fosse produzida diariamente na maioria dos antigos domicílios egípcios, havia também uma produção em grande escala em cervejarias para distribuir rações a moradores da cidade, tavernas ou 'casas de cerveja', indivíduos ricos e funcionários do estado" (p.410)
Cada cervejeiro tinha sua própria especialidade, com algumas cervejas sendo conhecidas por maior teor alcoólico e outras por um certo sabor. De acordo com Strudwick:
"o tipo mais comum de cerveja era uma cerveja encorpada e ligeiramente doce, mais ou menos como a cerveja marrom, mas cervejas mais leves, semelhantes a uma cerveja moderna, eram criadas para ocasiões especiais" (p.411)
Em ambos os casos, como nos dias atuais, as cervejarias seguiam basicamente o mesmo procedimento.
Inicialmente, na época do Antigo Reino, a cerveja era preparada misturando pães cozidos em água e colocando a mistura em frascos aquecidos para fermentar. O uso do lúpulo era desconhecido dos egípcios, assim como o processo de carbonatação.
Para um bebedor de cerveja moderno, uma bebida egípcia teria um sabor mais parecido com uma bebida de fruta do que com a cerveja familiar. Tâmaras e mel eram adicionados para açucarar, dar sabor e maior teor de álcool e, em seguida, levedura, a fim de aumentar a fermentação. Essa cerveja era uma bebida vermelha espessa e escura que talvez sugerisse a cerveja originalmente tingida por Rá para acalmar e transformar Sekhmet.
Na época do Novo Reino a cevada e o emmer (trigo) já eram utilizados. Elas eram misturadas com água para criar uma pasta que era então vertida em cubas e aquecida para fermentar. Essa mistura era então coada e diferentes ervas e frutas eram adicionadas para dar o sabor dos vários tipos de cerveja.
Segundo Strudwick, "a fermentação da cerveja cotidiana levava alguns dias, produzindo uma mistura razoavelmente baixa em álcool" e "o resultado era um líquido espesso e grosso que tinha que ser filtrado por uma cesta antes de ser bebido" (p.410). Uma vez coada, a cerveja era lacrada em jarros de cerâmica e armazenada, muitas vezes no subsolo, em um processo semelhante ao posterior atual lagering.
No Reino Novo, quando eram usados emmer e cevada, o uso de tâmaras e mel diminuía na produção de cerveja comum e eram usados apenas para cervejas de maior qualidade para ocasiões especiais. Cerveja com alto teor alcoólico eram preferidas para banquetes e festivais e, na verdade, uma festa era classificada como um sucesso, dependendo do nível de intoxicação dos participantes e da quantidade de cerveja consumida.
A cerveja da mais alta qualidade, é claro, era preparada para o rei e a nobreza e aromatizada com mel, que estava associada aos deuses. A cerveja encontrada no túmulo do faraó Tutancâmon, por exemplo, era uma cerveja de mel semelhante ao hidromel europeu posterior.
A partir do Reino Médio, a cerveja era cada vez mais uma indústria estatal, embora as pessoas ainda produzissem as suas em casa. Essa cerveja continuava sendo de cor âmbar, mas não era tão espessa; como mostrado pelo resíduo encontrado no fundo de cubas e também através da cerveja encontrada no túmulo de Tutancâmon e outros.
Assim como a cerveja era considerada importante para os egípcios na vida, ela também era considerada uma oferta necessária para os mortos; a cerveja, portanto, tornou-se uma das mais oferendas mais comuns em tumbas, para aqueles que podiam se dar ao luxo de se desfazer dela. Como a cerveja era uma forma comum de pagamento, incluir jarras da bebida em um túmulo seria comparável a enterrar o cheque de pagamento com o falecido.
Além do uso da cerveja como parte das refeições diárias e nos festivais, a bebida era destaque em banquetes e funerais. Os funerais eram uma celebração da vida do falecido e também uma despedida para a alma na jornada contínua para a vida após a morte. Terminado o ritual formal do funeral, a família e os convidados se reuniam, muitas vezes do lado de fora da tumba, sob uma tenda, para um banquete de piquenique no qual a comida que o falecido havia desfrutado em vida seria servida junto com uma quantidade de cerveja e, às vezes, vinho.
A cerveja era servida aos convidados em jarros e despejada em taças de cerâmica de onde os convidados bebiam sem o uso de canudos ou coadores. Strudwick observa que "a qualidade da cerveja dependia tanto da habilidade do cervejeiro quanto da quantidade de açúcar: quanto mais açúcar fosse adicionado à fermentação, mais forte seria a cerveja" (p.411).
A cerveja servida em funerais teria tido um teor alcoólico maior do que uma cerveja normal. A mesma cerveja desfrutada pelos convidados teria sido colocada no túmulo do falecido.
Assim como a cerveja era oferecida às almas dos mortos, ela era considerada a melhor oferta para os deuses. Os templos prepararam sua própria cerveja, que era dada à estátua do deus no santuário para alegrar seu coração, assim como faz com a humanidade. Comida e bebida seriam colocadas diante da estátua da divindade, que continha seu espírito, e os nutrientes seriam absorvidos sobrenaturalmente. A refeição seria então levada e entregue ao pessoal do templo. Osíris dera ao povo o conhecimento da cerveja, e o povo demonstrava sua gratidão oferecendo em troca os frutos desse conhecimento: cerveja, a bebida dos deuses.
Tradução de texto escrito por Joshua J. Mark
Março de 2017
Moacir tem 37 anos e nasceu em Porto Alegre/RS. É graduado em História pela ULBRA (2008-12) e é o criador e mantenedor do site Apaixonados por História desde 2018.