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Armas e armaduras - Equívocos comuns

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Capa do artigo: Armas e armaduras - Equívocos comuns

Uma armadura típica do século 14. O soldado usa um elmo conhecido como bascinet (Hounskull).

O campo das armas e armaduras está repleto de lendas românticas, mitos sangrentos e equívocos amplamente difundidos. Suas origens geralmente encontram-se na falta de conhecimento e experiência com objetos genuínos e seus antecedentes históricos. A maioria deles são totalmente absurdos, desprovidos de qualquer base histórica.

Talvez o exemplo mais infame seja a noção de que “os cavaleiros tinham que ser içados em suas selas com um guindaste”, o que mesmo sendo absurdo é comumente repetido até mesmo entre muitos historiadores. Em outros casos, certos detalhes técnicos que escapam a uma explicação óbvia se tornaram o foco de tentativas lúgubres e fantasticamente imaginativas de explicar sua função original. Entre eles, o descanso da lança (Arrêt de Cuirasse), um objeto que se projeta do lado direito de muitas couraças, provavelmente ocupa o primeiro lugar.

Descanso de lança italiano do século 16 com 14 cm de comprimento. MET. N° 27.159.15O descanso da lança (Arrêt de Cuirasse) foi implementado em armaduras usadas por cavaleiros a partir do final do século 14. Essa reconstrução moderna mostra como ele ajudava o cavaleiro a segurar a lança e a conter o recuo causado pelo impacto da lança em um oponente. Foto de vídeo produzido por Robert N. Charrette.


O texto a seguir tentará corrigir alguns dos equívocos mais populares e responder a algumas das perguntas mais frequentes feitas pelo público durante as visitas guiadas às galerias de armas e armaduras do MET.

1. A armadura era usada apenas por cavaleiros: Errado

Essa crença errônea, mas comum, é provavelmente o resultado da noção romântica do "cavaleiro de armadura brilhante", uma imagem que abriga uma série de outros equívocos. Primeiro, os cavaleiros raramente lutavam sozinhos, nem os exércitos medievais e renascentistas consistiam inteiramente de cavaleiros montados.

Soldados do início do século 15 na batalha de Azincourt (1415). Ilustração moderna, autor desconhecido.

Embora os cavaleiros fossem a força dominante da maioria desses exércitos, eles eram invariavelmente - e com o tempo cada vez mais - apoiados (e combatidos) por soldados de infantaria, como arqueiros, piqueiros, besteiros e pistoleiros. Durante uma campanha, um cavaleiro dependia de uma pequena hoste de lacaios, escudeiros e assistentes que forneciam apoio armado e cuidavam de seus cavalos, armaduras e outros equipamentos - sem falar dos camponeses e artesãos, que faziam a sociedade feudal, com sua classe guerreira, possível em primeiro lugar.

Em segundo lugar, é errado presumir que todo nobre era um cavaleiro. Os cavaleiros não nasciam, mas eram criados por outros cavaleiros, senhores feudais ou, às vezes, padres. E, sob certas condições, pessoas de nascimento não nobre podiam ser nomeadas cavaleiros (embora se tornar  cavaleiro fosse frequentemente considerado como uma admissão na baixa nobreza). Em algumas ocasiões, mercenários ou civis lutando como soldados comuns podiam ser condecorados por exibições excepcionais de coragem e valor, enquanto em tempos posteriores um título de cavaleiro poderia ser comprado.

A batalha de Brignais (1362), retratada nessa imagem das Crônicas de Jean Froissart, é um conflito interessante pois foi uma luta entre o exército francês e um grupo de mercenários que estavam saqueado cidades francesas durante a Guerra dos Cem Anos. Nessa imagem, ambos os lados, tanto franceses quanto o soldados mercenários são retrados usando armaduras.

Em outras palavras, não era de forma alguma um direito exclusivo do cavaleiro vestir e lutar com uma armadura. Soldados de infantaria, como mercenários, ou grupos de lacaios compostos de camponeses, bem como burgueses, também participavam de conflitos armados e, portanto, protegiam-se com armaduras de qualidade e extensões variadas. Na verdade, esperava-se que os burgueses (de certa idade e acima de uma riqueza ou renda estipulada) da maioria das cidades medievais e renascentistas adquirissem e mantivessem suas próprias armas e armaduras, uma expectativa que era frequentemente imposta por leis e decretos.

Cota de malha do século 15 de origem alemã feita de aço com detalhes em latão. A cota de malha já existia desde a antiguidade, era usada por soldados romanos e permaneceu em uso durante a Idade Média e a Idade Moderna. MET. N° 14.25.1540

Normalmente, ela não seria uma armadura completa, mas compreendia pelo menos um elmo, uma defesa corporal na forma de uma cota de malha (foto acima), armadura de tecido ou peitoral, bem como uma arma como uma lança, lança, arco ou besta. Em tempos de guerra, essas forças de milícia eram obrigadas a defender a cidade ou prestar serviço militar para senhores feudais ou cidades aliadas. Durante o século 15, à medida que algumas cidades ricas e poderosas se tornavam mais independentes e confiantes, até mesmo burgueses organizavam seus próprios torneios, nos quais, é claro, teriam usado armaduras.

Conseqüentemente, nem todas as armaduras existentes atualmente foram usadas por um cavaleiro, e nem todas as pessoas retratadas em uma obra de arte usando uma armadura podem ser identificadas como um cavaleiro. Uma pessoa em armadura deve ser mais corretamente referida como soldado ou homem em armadura.

2. Mulheres nunca lutaram em batalhas ou usaram armaduras: Errado

Existem várias referências a mulheres participando de conflitos armados na maioria dos períodos da história. Embora haja evidências de nobres damas que se tornaram comandantes militares, como a condessa Jeanne de Penthièvre (1319-1384), há apenas referências esparsas a mulheres de níveis mais baixos da sociedade pegando em armas. No entanto, algumas são registradas como tendo lutado em armadura, embora nenhuma ilustração contemporânea mostrando qualquer uma delas realmente usando armadura pareça ter sobrevivido.

Única representação de Joana D'Arc feita durante sua vida. Protocolo do parlamento de Paris (1429). Desenho de Clément de Fauquembergue. Arquivos nacionais franceses. Via Wikimedia Commons.

Joana d'Arc (c. 1412–1431), provavelmente o exemplo mais famoso de uma guerreira, tem a reputação de ter usado uma armadura encomendada para ela pelo rei francês Carlos VII. No entanto, apenas uma pequena ilustração dela (foto acima), sem dúvida desenhada durante sua vida, chegou até nós, mostrando-a com uma espada e um estandarte, mas não vestida com armadura. O fato de os contemporâneos aparentemente perceberem as mulheres liderando um exército, ou mesmo usando armaduras, como algo que valia a pena registrar pelo menos por escrito, indica que tal visão deve ter sido uma exceção, e não a regra.

3. A armadura era tão cara que apenas os príncipes e a nobreza rica podiam pagar: Errado

Essa ideia deve derivar do fato de que muitas das armaduras em exibição em instituições como o MET representam equipamentos de alta qualidade, enquanto muitas das armas e armaduras mais simples do homem comum e da baixa nobreza foram relegadas a depósitos ou perdidas ao longo dos séculos.

É verdade que, a menos que ela tenha sido obtida em um campo de batalha ou vencida em um torneio, a aquisição de uma armadura teria sido algo dispendioso. No entanto, como certamente existem diferenças na qualidade da armadura, também haveria diferenças no preço. Armaduras de baixa a média qualidade, acessíveis a burgueses, mercenários e a baixa nobreza, podiam ser compradas prontas em mercados, feiras de comércio e lojas urbanas.

Por outro lado, havia também produtos de alta qualidade feitos sob medida nas oficinas da corte imperial ou real e produzidas por famosos armeiros alemães e italianos. A armadura feita por alguns desses mestres célebres representava a mais alta arte dos armeiros e podia custar tanto quanto o resgate de um rei.

A armadura do imperador do Sacro Império Germânico Fernando I (1503–1564). O melhor que o dinheiro podia comprar na metade do século 16. A armadura pesa 24 kg. MET. N° 33.164a–x

Embora exemplos de preços de armaduras, armas e equipamentos sejam conhecidos em vários períodos da história, é difícil traduzir o valor monetário histórico em termos modernos. É claro, no entanto, que o valor da armadura variava: haviam armaduras de segunda mão de baixa qualidade ou desatualizadas, que eram bastante acessíveis aos cidadãos e mercenários, e haviam armaduras que custavam um arsenal inteiro de um cavaleiro inglês, cujo conteúdo foi avaliado em 1374 em mais de £16. Isso era equivalente a cerca de 5 a 8 anos de aluguel da casa de um comerciante em Londres, ou mais de 3 anos de salário de um trabalhador qualificado. Um único elmo (um bascinet, provavelmente com almofar) custava o equivalente a uma vaca.

Acredita-se que essa seja uma das várias armaduras do rei inglês Henrique VIII que sobreviveram. Ela foi produzida na oficina real de Greenwich, que foi criada pelo rei em 1515, para produzir armaduras para ele e para sua corte. O design e a decoração dela são atribuídos a Hans Holbein o Jovem, que trabalhou na corte inglesa entre 1526 e 1528. A amadura completa pesa cerca de 43 kg. MET. N°  19.131.1a–r, t–w, .2a–c; 27.183.16

Na extremidade superior da escala, encontramos exemplos como uma grande garniture (uma armadura básica que, por meio da adição de outras peças e placas, pode ser adaptada para vários fins tanto no campo de batalha quanto em diferentes tipos de torneio) encomendado em 1546 por um rei alemão (mais tarde imperador) para seu filho. Por esta encomenda, o armeiro da corte Jörg Seusenhofer de Innsbruck recebeu ao finalizar, depois de um ano, a enorme soma de mais de 1.200 moedas de ouro, o equivalente a 12 anos de salário de um alto funcionário da corte.

4. A armadura era extremamente pesada e dificultava os movimentos de seu portador: Errado

Uma armadura para uso em batalha geralmente pesava entre 20 a 25 kg, com o capacete pesando de 2 a 4 kg - menos do que o equipamento completo de um bombeiro com equipamento de oxigênio, ou do que a maioria dos soldados modernos carrega para a batalha desde o século 19. Além disso, a maioria dos equipamentos modernos fica suspensa principalmente nos ombros ou na cintura, enquanto o peso de uma armadura bem ajustada era distribuído por todo o corpo.

Foi somente no século 17 que o peso da armadura de batalha aumentou muito, a fim de torná-la à prova de balas contra armas de fogo cada vez mais precisas. Ao mesmo tempo, porém, a armadura completa tornou-se cada vez mais rara, e apenas partes vitais do corpo, como cabeça, tronco e mãos, permaneceram protegidas por placas de metal.

A noção de que o desenvolvimento da armadura de placa (concluída por volta de 1420–30) prejudicou muito a mobilidade do usuário também não é verdadeira. Uma armadura de placas era composta de elementos individuais para cada membro. Cada elemento, por sua vez, consistia em lames (tiras de metal) e placas, unidas por rebites móveis e tiras de couro, permitindo, assim, praticamente todos os movimentos do corpo sem qualquer prejuízo devido à rigidez do material. Veja um vídeo que mostra homens em armadura completa fazendo movimento complexos.

A opinião amplamente difundida de que um homem com armadura mal podia se mover e, depois de cair no chão, era incapaz de se levantar novamente, também não tem fundamento. Ao contrário, fontes históricas nos falam do famoso cavaleiro francês Jean de Maingre (c. 1366–1421), conhecido como Maréchal Boucicault, que, com armadura completa, era capaz de subir a parte de dentro de uma escada usando apenas as mãos.

Segundo o cronista Jean Froissart, o cavaleiro francês Jean de Maingre (c. 1366–1421) conseguia subir uma escada pela parte de dentro usando armadura completa. Nessa ilustração moderna de Angus McBride é possível vê-lo ao lado de outros soldados da época.

Além disso, existem várias ilustrações da Idade Média e da Renascença que retratam homens de armas, escudeiros ou cavaleiros, todos em armadura completa, montando cavalos sem ajuda de instrumentos como escadas ou guindastes. Experimentos modernos com armaduras genuínas dos séculos 15 e 16, bem como com cópias precisas, mostraram que mesmo um homem destreinado em uma armadura devidamente ajustada pode montar e desmontar um cavalo, sentar ou deitar no chão, levantar-se novamente, correr e geralmente move seus membros livremente e sem desconforto.

Existem alguns casos excepcionais em que a armadura era extremamente pesada ou realmente deixava seu usuário quase “travado” em uma determinada posição, como as armaduras produzidas para certos tipos de torneios. A armadura de torneio era feita para ocasiões muito específicas e deveria ser usada apenas por um período limitado de tempo. O homem de armas teria montado em seu corcel com a ajuda de seu escudeiro ou de um pequeno degrau, e as últimas peças de sua armadura poderiam ser vestidas depois de sentar-se com segurança na sela.

A armadura de justa do doutor Tobias Capwell, um grande especialista no século 14 e 15 e curador de armas e armaduras na Wallace Collection em Londres.

5. Os cavaleiros tinham que ser içados para as selas com guindastes: Errado

Essa noção parece ter se originado no final do século 19 como uma piada. Entrou na ficção popular nas décadas seguintes e a imagem foi finalmente imortalizada em 1944, quando Sir Laurence Olivier a usou em seu filme Henrique V - apesar dos protestos de seus conselheiros históricos, que incluíam a eminente autoridade Sir James Mann, Mestre dos Arsenais na Torre de Londres.

Laurence Olivier sendo colocado em seu cavalo com um guindaste em cena do filme Henrique V. Algo puramente ficcional.

Conforme descrito acima, a maioria das armaduras não é tão pesada nem inflexível a ponto de imobilizar o usuário. No geral os soldados seriam capazes de simplesmente colocar um pé em um estribo e montar seu cavalo sem ajuda. Um banquinho ou talvez a ajuda de um escudeiro teriam tornado o processo ainda mais rápido; um guindaste, entretanto, era absolutamente desnecessário.

A segunda parte do texto, que trás as perguntas mais frequentes sobre as armaduras, será publicada nos próximos dias.

Tradução de texto escrito por Dirk H. Breiding
Outubro de 2004

Foto de membro da equipe do site: Moacir Führ
Postado por Moacir Führ

Moacir tem 36 anos e nasceu em Porto Alegre/RS. É graduado em História pela ULBRA (2008-12) e é o criador e mantenedor do site Apaixonados por História desde 2018.

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