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Estátua de mulher encontrada no templo de Inanna em Nippur. 2600-2500 a.c.
Museu Metropolitano de Nova York - Número de registro: 62.70.2
Nos últimos dias fiz a leitura de um artigo intitulado "Sacerdotisas Sumérias". O objetivo era me aprofundar nas práticas religiosas da Mesopotâmia e conhecer o trabalho das mulheres que viviam nos templos e se dedicavam ao rito dos deuses. Entretanto, a temática central do artigo acabou sendo outra; ele trata, principalmente, dos rituais sexuais ligados a religião e o tema que mais chama atenção, por ser algo ainda muito debatido, é o da chamada prostituição sagrada. Logo, decidi por bem, que esse seria o tema principal desse artigo.
A atuação de mulheres como sacerdotisas era muito comum na antiguidade, e na Mesopotâmia elas inclusive possuíam um status especial na sociedade. Isso é provado pelo código de Hamurabi, que possuí vários artigos definindo os direitos dessas sacerdotisas.
Na Suméria, a ligação das mulheres ao culto do deus da Lua, Nanna, parece ter tido alguma conexão com a menstruação. Segundo nos conta Schussler:
"A lua está também ligada ao ciclo menstrual feminino o que pode ser a hipótese provável da importância da mulher sumeriana nos ritos de adoração, pois o deus Nanna era regente do tempo, das estações, da fertilidade e do sangue sagrado de todas as mulheres." (SCHÜSSLER, 2010, p.12)
Muito se discute sobre o caráter sexual da religião na Mesopotâmia, e na verdade, na antiguidade como um todo. Realmente há indícios de que a sociedade mesopotâmica era mais liberal com relação ao sexo, do que seus contemporâneos gregos, por exemplo. Paul Kriwaczek e Gwendonlyn Leick, em seus livros sobre a civilização do Tigre e do Eufrates, destacam o fato de que a moral repressora e conservadora era vista por esse povo como um freio que esmagava o progresso e a imaginação.
O rito do casamento sagrado seria realizado ao final das celebrações do Ano Novo, data mais importante do calendário mesopotâmico. Segundo a versão mais popular, a sacerdotisa se deitava com o governante da cidade, representando a união entre os deuses e o poder secular, onde a sacerdotisa representava a deusa Inana e o rei ficava no papel de seu consorte, Dumuzi. Através do ritual se visava fortalecer a cidade e estimular a fertilidade e a riqueza.
Na verdade não sabemos se esse ritual envolvia participantes humanos, e se realmente a sacerdotisa tinha relações físicas com o rei. O casamento sagrado era um importante ritual na Mesopotâmia, mas nenhum texto nos fala do que acontecia no templo durante o ritual, nem se os participantes do rito eram os próprios humanos (sacerdotisa e rei), ou estátuas representando essas duas figuras.
Em seu excelente artigo, Johanna H. Stuckey comenta que é possível que a sacerdotisa estivesse em estado de transe durante o ritual, já que seu nome não é citado e ela é identificada como a própria deusa, e prossegue:
"O que estou sugerindo é que (...) (a sacerdotisa) era uma médium. Através de talento e treinamento, ela entrava em transe e permitia que Inanna tomasse seu corpo. Então a deusa poderia realmente estar presente durante o ritual. Em menor ou maior grau, o rei também poderia ser tomado pelo deus Dumuzi." (STUCKEY, tradução nossa)
No entanto, como já foi destacado, as fontes são ambiguas e abertas a muitas interpretações, tornando uma conclusão definitivamente muito difícil. É provável que o rito acontecesse, mas talvez nunca saibamos qual a forma que ele tomava e se algum tipo de prática sexual era realmente efetuada.
A prostituição sagrada, por outro lado, é um tema muito mais complexo, cercado por polêmicas. Antes de nos aprofundarmos nessas discussões, precisamos definir com clareza o que queremos dizer com o termo "prostitução sagrada". Em seu artigo sobre o debate historiográfico em torno desse assunto, Batista o define da seguinte forma:
A “prostituição sagrada” ou sexo ritualístico seria uma prática ligada à religião, na qual mulheres comuns e sacerdotisas (as “prostitutas sagradas”) teriam relações sexuais com quem as procurasse com objetivo de ser abençoado com fertilidade, seja para si, esposa, terras ou animais. Por essas relações sexuais, elas receberiam um pagamento, porém o pagamento seria oferecido à divindade ou ao templo. (BATISTA, 2011, p.187)
O grande debate gira em torno das seguintes questões, todas elas possibilidades viáveis mas ainda sem uma resposta definitiva:
A primeira hipótese é a que possui menos evidências, embora haja indícios da prática do casamento sagrado (descrito acima), a prostituição praticada por sacerdotisas do templo não parece ter sido uma realidade da religião na Mesopotâmia. Mas há indícios que dão margem para supor que esse prática fosse corrente no mundo grego antigo, conforme alguns relatos do viajante e historiador Estrabão, que viveu no século I a.C.
A segunda teoria é sustentada por uma citação de Heródoto, o pai da História. Segundo ele, esse seria um costume babilônico. É importante frisar que não há evidências de que Heródoto, que viveu no século 5 a.C, tenha realmente visitado a Mesopotâmia. É muito provável que todos os seus comentários sobre a região, tenham partido de informações obtidas por uma outra fonte.
A citação é bastante longa, mas vale a pena ler por ser essa a nossa principal evidência:
A instituição mais indecorosa dos babilônios é a seguinte: todas as mulheres habitantes da região devem ir a um templo de Afrodite uma vez na vida e ter relações sexuais com um desconhecido. Muitas delas, orgulhosas por causa de sua opulência, consideram indigno misturar-se com as outras mulheres e vão até as proximidades do templo em carruagens cobertas, em cujo interior permanecem, com numerosos serviçais à sua volta. Em sua maioria as mulheres agem da maneira seguinte: ficam sentadas no recinto de Afrodite com uma coroa de corda na cabeça. Há uma multidão delas, umas chegando, outras saindo, e são estendidas cordas em todas as direções no local onde as mulheres ficam esperando os homens, para que estes possam circular e as escolham. Depois de uma mulher sentar-se naquele lugar, não voltará à sua casa antes de um estranho lhe haver lançado dinheiro nos joelhos e de ter tido relações sexuais com ele fora do templo. Lançando o dinheiro, o homem tem que dizer as seguintes palavras: “Chamo-te em nome da deusa Milita” (Milita é o nome dado pelos assírios à Afrodite). A importância em dinheiro pode ser qualquer uma, e a mulher nunca se recusa; ela não tem esse direito, pois aquele dinheiro se torna sagrado; ela segue o primeiro homem que lhe joga qualquer dinheiro, sem rejeitar nenhum. Depois de ter relações com tal homem ela volta à casa, pois terá cumprido suas obrigações sagradas para com a deusa; posteriormente, por mais dinheiro que se lhe ofereça não se consegue seduzi-la. As mulheres belas e bem proporcionadas não demoram a voltar para suas casas; as feias, porém, esperam muito tempo sem poder cumprir a obrigação imposta por essa instituição, e há algumas que ficam lá durante três e até quatro anos. Em certos lugares da ilha de Chipre existe um costume praticamente idêntico a esse. (BATISTA, 2011, p.192/193, citação de citação)
Essa prática descrita por Heródoto é motivo para muitos debates. No capítulo quatro, de sua obra intitulada O Mito da Prostituição Sagrada na Antiguidade, Stephanie Budin contesta as afirmações de Heródoto com base dos seguintes argumentos:
Ela acredita que o autor grego embelezou ou simplesmente inventou algumas histórias. E a descrição da prostituição sagrada é baseada em algum ritual sagrado das mulheres, como o festival de Thesmophoria, que era restrito as mulheres e cujos rituais praticados eram mantidos em segredos. Além disso o autor teria inventado a história para comparar os povos do leste com os civilizados gregos, com o objetivo de provar a inferioridade desses povos considerados bárbaros.
Budin também contesta em seu livro, outros historiadores que afirmam ter provas da prostituição sagrada, com a argumentação de que suas conclusões seriam baseadas em traduções incorretas e que, tais autores, teriam sido influenciados pelo desejo de seu tempo de provar certas teorias verdadeiras. Ironicamente, Budin também é acusada do mesmo equívoco, sendo reconhecida como uma autora de uma corrente feminista. Fato é, que esse debate permanece aberto, e não há evidências conclusivas para nenhum lado.
A última afirmação, a de que prostituição estaria de alguma forma ligada ao templo, é ratificada por alguns autores. Em seu artigo sobre a Prostituição de Culto, Baugh fala sobre "prostituição baseada em lucro e, ocasionalmente, organizada pelo templo e por sua administração, mas não há necessidade de postular que ela fosse prostituição sagrada a serviço de um culto de fertilidade." (BAUGH, 1999, p. 444). O artigo é dedicado ao tema em Éfeso em um período mais recente, mas o caso da Mesopotâmia também é comentado, já que se trata de um tema que cerca toda a antiguidade.
Will Durant, também discorre sobre esse mesmo tópico, em sua obra sobre a antiguidade oriental, confira o trecho:
"Destas havia várias classes vivendo nos templos, onde desenvolveram o comércio do corpo e às vezes juntavam grandes fortunas. As prostitutas do templo eram comuns na Ásia Ocidental; encontramo-las em Israel, na Frígia, na Fenícia, na Síria, etc.; Na Lídia e em Chipre era desse modo que as moças juntavam o dote para o casamento. A 'prostituição sagrada' só foi abolida na Babilônia pelo imperador Constantino em 325." (DURANT, 1963, p. 167, citação de citação)
Realmente esse ainda é um tema que apresenta muitas lacunas. Se você tiver mais interesse nessas questões, recomendo que leia a bibliografia citada abaixo. A leitura dos textos de Johanna H. Stuckey e Keila Fernandes Batista lhe será muito útil. Buscando produzir um texto mais sucinto, omiti muitos aspectos que são trabalhados com mais profundidade nessas obras.
Moacir tem 37 anos e nasceu em Porto Alegre/RS. É graduado em História pela ULBRA (2008-12) e é o criador e mantenedor do site Apaixonados por História desde 2018.