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A Peste em Ashdod é uma pintura de Nicolas Poussin produzida em 1630 e que retrata uma peste que teria atingido os filisteus segundo a Torá. Na falta de imagens retratando a peste Antonina usei essa imagem de forma ilustrativa. Essa pintura se encontra no Museu do Louvre, em Paris.
A Peste Antonina, também chamada de Peste de Galeno, ocorreu em 165 d.C, no auge do poder romano no mundo mediterrâneo, durante o reinado do último dos Cinco Bons Imperadores, Marco Aurélio Antonino (161-180 d.C). A primeira fase do surto durou até 180, afetando a totalidade do Império Romano, enquanto um segundo surto ocorreu entre 251-266.
Alguns historiadores sugerem que a peste representa um ponto de partida útil para marcar o início do declínio do Império Romano no Ocidente.
O médico grego Galeno (129-216 d.C), autor de Methodus Medendi, não apenas testemunhou o surto, mas também descreveu seus sintomas e seu curso. Entre os sintomas mais comuns estavam a febre, a diarréia, o vômito, a sede, a garganta inchada e a tosse. Mais especificamente, Galeno observou que a diarréia parecia enegrecida, o que sugeria sangramento gastrointestinal.
A tosse produzia um odor desagradável na respiração e erupções cutâneas vermelhas e pretas por todo o corpo, segundo descrição de Galeno:
De algumas dessas errupções que haviam sido ulceradas, a parte da superfície chamada crosta caiu e depois a parte restante nas proximidades ficou saudável e depois de um ou dois dias ficou marcada. Nos lugares em que não era ulcerado, a errupção era áspera e escamosa e caía como uma casca e, portanto, tudo se tornava saudável. (Littman e Littman, p. 246)
Os infectados sofriam da doença por aproximadamente duas semanas. Nem todos os que pegavam a doença morriam e os que sobreviviam desenvolveram imunidade contra novos surtos. Com base na descrição de Galeno, pesquisadores modernos concluíram que a doença que afetava o império era provavelmente a varíola.
A epidemia provavelmente surgiu na China pouco antes de 166, se espalhando para o oeste ao longo da Rota da Seda, e por navios mercantes a caminho de Roma.
Em algum momento entre o final de 165 e o início de 166, os militares romanos entraram em contato com a doença durante o cerco de Selêucia (uma grande cidade no rio Tigre). As tropas que retornam das guerras no leste espalharam a doença para o norte, para a Gália, e entre as tropas estacionadas ao longo do rio Reno.
Sobre as origens exatas da praga, duas lendas diferentes surgiram. Na primeira história, o general romano, e mais tarde co-imperador, Lúcio Vero teria aberto uma tumba selada em Selêucia, durante o saque subsequente da cidade, liberando a doença. O conto sugere que a epidemia foi uma punição, pois os romanos violaram um juramento feito aos deuses de não saquear a cidade.
Na segundo história, um soldado romano teria aberto um caixão de ouro no templo de Apolo, na Babilônia, permitindo que a praga escapasse.
Duas fontes diferentes do século 4, Res Gestae do historiador Amiano Marcelino (300-400) e as biografias de Lúcio Vero e Marco Aurélio, atribuem o surto à participação em um sacrilégio, violando o santuário de um deus e quebrando um juramento. Outros romanos culparam os cristãos que teriam irritado os deuses.
Há muito debate entre os estudiosos sobre as conseqüências da epidemia no Império Romano. Este debate está focado na metodologia usada para calcular o número real de pessoas que morreram. O historiador romano Dion Cássio (155-235) fala em 2000 mortes por dia em Roma no auge do surto. No segundo surto, a estimativa da taxa de mortalidade foi muito maior, superior a 5000 por dia.
É provável que o número extremo de mortes tenha sido causado pela exposição a uma novo agente patogênico, desconhecido para as pessoas que viviam no Mediterrâneo. A mortalidade aumenta quando doenças infecciosas são introduzidas em uma "população virgem", ou seja, uma população que não possui imunidade adquirida ou herdada para uma doença específica.
Ao todo, acredita-se que 25% a 33% de toda a população pereceu, algo estimado em 60 a 70 milhões de pessoas no império. O que é indiscutível é que Lúcio Vero, co-imperador com Marco Aurélio, morreu da doença em 169 e Marco Aurélio morreu 11 anos depois da mesma doença. Ironicamente, foram os soldados de Vero que contribuíram para espalhar a doença do Oriente Próximo para o resto do império.
No início da peste, o exército de Roma era formado por 28 legiões, totalizando aproximadamente 150 mil homens. As legiões eram bem treinadas, bem armadas e bem preparadas, mas isso não as impedia serem contaminadas, adoecer e morrer. Independentemente de seus postos, os legionários contraíram a doença de outros soldados que estavam de folga retornando do serviço ativo.
Os doentes e moribundos causaram escassez de mão-de-obra, especialmente ao longo das fronteiras germânicas, enfraquecendo a capacidade dos romanos de defender o império. A falta de soldados disponíveis fez com que Marco Aurélio recrutasse qualquer homem capaz de lutar: escravos libertados, germanos, criminosos e gladiadores. Esgotar o suprimento de gladiadores resultou em menos jogos em casa, o que incomodou o povo romano que exigia mais, e não menos, entretenimento durante um período de intenso estresse.
Esse exército de retalhos falhou em seu dever: em 167, tribos germânicas cruzaram o rio Reno pela primeira vez em mais de 200 anos. O sucesso dos ataques externos, especialmente dos germânicos, facilitou o declínio das forças armadas romanas, que, juntamente com as perturbações econômicas, contribuíram para o declínio e queda do Império.
Em termos mais gerais, o terrível número de mortos reduziu o número de contribuintes, recrutas para o exército, candidatos a cargos públicos, empresários e agricultores. Em um momento de aumento das despesas com a manutenção do império e das forças militares necessárias para garantir a segurança do império, as receitas do governo diminuíram.
A diminuição da receita tributária foi atribuída à menor produção no campo, pois um número menor de agricultores significava que muita terra era deixada sem cultivo. A escassez de colheitas causou aumentos acentuados nos preços, além de diminuir a oferta de alimentos.
O efeito da peste na economia não se limitou ao setor agrícola. Menos artesãos significavam menos produtos sendo feitos, o que estagnava as economias locais. A escassez de mão-de-obra também levou a salários mais altos para aqueles que sobreviveram à epidemia. O aumento dos preços e a falta de empresários, comerciantes, comerciantes e financiadores causou profundas interrupções no comércio doméstico e internacional.
Todas essas recessões significaram menos impostos para o Estado, que já estava bastante pressionado para cumprir suas obrigações financeiras.
O cristianismo dava sentido a vida e a morte em tempos de crise. Aqueles que sobreviveram ganharam conforto ao saber que entes queridos, que morreram como cristãos, poderiam receber a recompensa do céu. A promessa cristã de salvação na vida após a morte atraiu seguidores adicionais, expandindo assim o crescimento do monoteísmo dentro de uma cultura politeísta.
A conquista de novos adeptos começou a criar as condições que fariam o cristianismo emergir como a religião oficial do império.
O profundo impacto da doença afetou profundamente a identidade dos romanos e o que significava ser romano. Atingia todas as classes sociais. A morte de dezenas de milhares de soldados romanos também diminuiu o alto status do soldado romano. As perdas militares para as tribos germânicas minaram a força que a noção de ser um cidadão romano tinha no império.
Isso significava que os romanos estavam mais vulneráveis. Em geral, um profundo sentimento de ansiedade e impotência permeava a mentalidade e as perspectivas romanas. A Peste Antonina não apenas diminuiu as atividades e o tamanho da população do império, mas também a própria idéia do que significava ser romano e o sentimento de invencibilidade que acompanhava essa identidade.
Qualquer discussão sobre o colapso do Império Romano no Ocidente começa com leitura de Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon. Gibbon não descartou o papel dos efeitos dos surtos de doenças. Em relação a Peste de Justiniano (541-542), Gibbon argumenta no início de seu trabalho em vários volumes que “Pestilência e fome contribuíram para preencher a medida das calamidades de Roma” (Vol. 1., p. 91).
Mas Gibbon deu pouca atenção a Peste Antonina, argumentando que as invasões bárbaras, a perda da virtude cívica romana e a ascensão do cristianismo desempenharam papéis mais importantes no declínio do império.
Mais recentemente, pesquisadores e historiadores, como A. E. R. Boak (1888-1962), sugeriram que a Peste Antonina, juntamente com uma série de outros surtos, representa um ponto de partida útil para entender o início do declínio do Império Romano no Ocidente.
Em Manpower Shortage and the Fall of the Roman Empire (Escassez de mão-de-obra e a queda do Império Romano), Boak argumenta que o surto de peste em 166 contribuiu para um declínio no crescimento da população, levando os militares a atrair mais camponeses e oficiais locais para suas fileiras, resultando em uma menor produção de alimentos, escassez e fatal de apoio aos assuntos do dia-a-dia na administração das vilas e cidades, enfraquecendo assim as habilidades de Roma para afastar as invasões bárbaras.
Eriny Hanna, em The Route to Crisis: Cities, Trade and Epidemics of the Roman Empire (A rota para a crise: cidades, comércio e epidemias do Império Romano), argumenta que “a cultura romana, o urbanismo e a interdependência entre cidades e províncias” facilitou a propagação de doenças infecciosas, criando os fundamentos para o colapso da império (Hanna, 1).
Cidades superlotadas, dietas precárias que levavam à desnutrição e falta de medidas sanitárias fizeram das cidades romanas epicentros da transmissão de doenças. Os contágios se espalhavam facilmente ao longo das rotas comerciais terrestres e marítimas que ligavam as cidades às províncias periféricas.
Mais recentemente, Kyle Harper sugeriu que "os paradoxos do desenvolvimento social e a imprevisibilidade inerente da natureza trabalharam em conjunto para provocar o desaparecimento de Roma" (Harper, 2). Em outras palavras, as mudanças climáticas forneceram o contexto ambiental para a introdução de novas doenças mais catastróficas, incluindo a Peste Antonina, que chegou ao final de um período climático mais favorável e introduziu ao mundo a varíola.
Harper argumenta que a Peste Antonina foi a primeira de três pandemias devastadoras, que incluiem a Peste de Cipriano (que atingiu o império durante a crise do século 3, entre 249-262) e a Peste Justiniana (541-542), que abalou os fundamentos do Império Romano em grande parte devido à sua alta taxa de mortalidade.
Os pontos fortes que são destacados nas descrições lisonjeiras ao império de Roma - o exército romano, a extensão do império, as extensas redes comerciais, o tamanho e o número de cidades romanas - acabaram por fornecer a base para transmissões de doenças devastadoras que contribuíram para a queda do império.
Tradução de texto escrito por John Horgan
Maio de 2019
Moacir tem 37 anos e nasceu em Porto Alegre/RS. É graduado em História pela ULBRA (2008-12) e é o criador e mantenedor do site Apaixonados por História desde 2018.