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Gladiador (2000) - Análise histórica do filme

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Capa do artigo: Gladiador (2000) - Análise histórica do filme

Russell Crowe interpreta Maximus, um general romano que se torna um escravo gladiador e enfrenta o despotismo do imperador Cômodo (r.180-192 d.C.).

Gladiador, lançado em 2000, é um dos filmes mais famosos sobre a Roma Antiga. Sucesso de público e crítica, ele venceu 5 Oscars, incluindo melhor filme e melhor ator (Russell Crowe, o gladiador). Mas do ponto de vista histórico, será que esse filme faz um bom trabalho?

É difícil dizer. Sobre muitos aspectos eu fico feliz com a existência dessa obra. Com certeza ela oferece uma das melhores representações dos combates de gladiadores, e do próprio Coliseu, já feitas para o cinema. Mas o filme também deixa a desejar em vários pontos, além de inventar muita coisa absurda.

Para fazer essa análise utilizei a versão disponível na Netflix, que é a versão mais longa com o corte do diretor, tendo um absurdo de 2 horas e 50 minutos!! Mesmo para mim, que gosto de História, esse filme é extremamente cansativo.

Há muitas coisas interessantes que poderiam ser discutidas a partir desse filme, mas se fôssemos tratar de tudo o texto ficaria gigantesco. Por isso decidi me focar em apenas seis tópicos. Então vamos por partes, começando pelo início do filme:

As guerras na Germânia

Os primeiros 40 minutos do filme se passam na Germânia. Durante boa parte do seu reinado (mais de 10 anos), Marco Aurélio esteve envolvido diretamente em guerras defensivas na Germânia. O imperador comandou as legiões que enfrentaram uma série de rebeliões de diversas tribos germânicas, muitas delas antigas aliadas de Roma.

O filme mostra os germânicos como povos completamente bárbaros, sem qualquer disciplina, e com uma cultura completamente diferente da romana (esse é o significado da palavra bárbaro nesse contexto). Essa não era a realidade, os germânicos que se rebeleram eram povos que já tinham contato com os romanos há séculos, e ao longo desse tempo tinham absorvido parte da cultura romana, em especial a disciplina e as táticas de guerra.

Os bárbaros germânicos no filme.

Além disso, o filme retrata os exércitos romanos usando armas como balistas e catapultas para atacar inimigos no campo de batalha. Essas eram armas de cerco, utilizadas contra cidades sitiadas, não contra grupos de indivíduos.

Isso sem falar nas flechas e bolas de fogo. Os romanos não usavam nada desse tipo! Antes da invenção da pólvora, e dos combustíveis derivados do petróleo, era impossível produzir explosões como aquelas que o filme retrata. E o uso de projéteis com fogo não daria certo sem um combustível apropriado.

As explosões.

Eu poderia passar o texto inteiro falando da questão militar, afinal os filmes sempre erram praticamente tudo nesse quesito. Mas vamos parar por aqui, próximo tópico:

Marco Aurélio

Marco Aurélio era imperador de Roma desde 161. O filme Gladiador começa em 180, ano da sua morte. O imperador morreu com 59 anos e foi sucedido por seu filho que, na época, tinha apenas 19 anos! (No filme os atores que interpretam os dois imperadores tinham 70 e 26 anos).

Marco Aurélio é mundialmente conhecido como o Imperador filósofo, um dos grandes imperadores de um período conhecido como Era dos Imperadores Adotivos. No filme, o personagem transmite essa aura de sabedoria, força e intelectualidade. Em uma cena, Maximus chega a tenda do imperador e o encontra escrevendo, os dois param e começam a filosofar sobre a natureza e o sentido de Roma. Essa passagem colocou um leve sorriso no meu rosto, não posso negar, embora a discussão logo tenha se tornado surreal.

Os escritos de Marco Aurélio eram mais dedicados às paixões e a moral do ser humano. A sua grande obra, Meditações, é uma série de escritos pessoais com notas sobre a filosofia estóica. Ele nunca compôs nenhum tratado sobre o governo. Teoria política não era o seu forte.

O imperador filósofo nunca quis transformar Roma novamente em uma República. E não há indícios de que ele tenha considerado outros indivíduos para a vaga de imperador, aparentemente Cômodo sempre foi a primeira opção.

Entender como uma pessoa tão inteligente quanto Marco Aurélio, não foi capaz de perceber que seu filho seria um péssimo imperador, sempre intrigou os historiadores. O filme tentou explicar isso simplesmente negando que o fato aconteceu.

Marco Aurélio foi interpretado pelo ator Richard Harris, que na época tinha 70 anos.

A sucessão de Marco Aurélio

Marco Aurélio subiu ao poder como imperador ao lado de Lúcio Vero (que morreu antes de 180, quando o filme começa). Os dois governaram juntos durante quase oito anos. Lúcio Vero não era um grande imperador, era uma pessoa irresponsável, e os dois não se entendiam tão bem assim. Quando Vero morreu em 169, Marco Aurélio assumiu o império sozinho e em 177 escolheu um novo co-imperador, seu filho Cômodo (que tinha 16 anos).

Bustos de Lúcio Vero (a esquerda) e Marco Aurélio. Via Wikimedia Commons.

Há algumas coisas que devem ser esclarecidas com relação a esse período.  De 96 a 180, Roma foi governada pelos chamados Imperadores Adotivos. Por que esse nome? Nerva, Trajano, Adriano e Antonino Pio decidiram que, ao invés de passarem o governo para os seus filhos quando morressem, eles adotadoriam os indivíduos que considerassem mais capazes de governar o império. O resultado foi muito bom, todos os cinco imperadores dessa fase são considerados grandes imperadores.

Os imperadores adotivos: Nerva, Trajano, Adriano, Antonino Pio e Marco Aurélio.

Mas Marco Aurélio, que alguns poderiam argumentar ser o mais inteligente de todos eles, decidiu romper com a tradição. Ele escolheu o instável Cômodo para sucedê-lo.

Cômodo gostava de ser representado como Hércules. Esse busto está no Museu Capitolino.

O filme ignora esse fato, e inventa toda uma estorinha para justificar essa decisão: Marco Aurélio ia nomear Maximus (personagem que nunca existiu) e Cômodo o matou para tomar o poder. Nada disso realmente aconteceu. Cômodo já estava definido como futuro sucessor há anos.

Cômodo

O verdadeiro Cômodo era muito diferente daquele que foi representado em "Gladiador". No filme ele é retratado como alguém extremamente inseguro, que matou o pai e tem uma fantasia de transar com a própria irmã. Não são medidos esforços para deixar claro: Ele é o malvado da história!

Na vida real, Cômodo era um homem seguro de si, casado mas com dezenas de amantes e simplesmente fanático pelos combates de gladiadores. Além disso, Cômodo não gostava das obrigações de ser imperador, e colocou outras pessoas para cuidar da parte política, enquanto ele se dedicava àquilo que realmente gostava: a arena.

Cômodo foi interpretado pelo ator Joaquim Phoenix, que na época tinha 26 anos.

Assim que seu pai morreu, Cômodo assinou um acordo de paz com as tribos germânicas e voltou para Roma. Ele foi imperador de Roma por 12 anos!! Durante os quais ele lutou na arena contra outros gladiadores em diversas ocasiões, vencendo todos os combates. Embora alguns historiadores antigos defendam que seus oponentes recebiam armas inferiores.

Ele também participou das chamadas venationes, caça de animais dentro da arena. De acordo com o historiador Cássio Dion, em uma dessas ocasiões, Cômodo teria matado 100 leões em um único dia, atirando flechas de uma posição privilegiada em cima de um pódio.

Lucila

Lucila era a irmã mais velha do imperador Cômodo e filha de Marco Aurélio. Ela aparece no longa como uma personagem importante. No filme, Lucilla também é do time dos bonzinhos.

O roteiro dá a entender que, no passado, ela teve algum affair com o general Maximus. Mas quando esse caso teria acontecido? A verdadeira Lucila esteve casada desde que tinha 16 anos, primeiro com Lúcio Vero (o co-imperador), e depois com Tibério Cláudio Pompeiano, com que esteve casada até a sua morte.

Lucilla, interpretada pela atriz Connie Nielsen de 35 anos, era a irmã mais velha do imperador Cômodo. Na época da morte de Marco Aurélio ela tinha 32 anos.

Em "Gladiador", Lucila se envolve em uma conspiração com Maximus e com os senadores, para derrubar o império e restituir a república, e tem a honra de fazer o discurso final na arena, exaltando Roma. Na vida real, no entanto, Lucila de fato se envolveu em uma conspiração, mas para colocar a si mesma e o marido no trono. A conspiração foi descoberta (como no filme), e a verdadeira Lucila foi exilada para Capri. No mesmo ano ela foi executada por um centurião, por ordens do irmão Cômodo.

A verdadeira Lucila era muito diferente daquela retratada no filme, ela não só defendia o império como queria se tornar imperatriz.

A idealização de Roma

O ponto fraco do filme com certeza é a idealização de Roma. Marco Aurélio, Maximus, Lucila e alguns senadores passam o filme inteiro falando sobre como Roma representava algo no passado, como Roma perdeu sua alma, como a única solução seria acabar com a ordem imperial e retornar à república.

Em "Gladiador", os combates na arena servem para representar essa suposta corrupção da alma romana. Então, Cômodo (o vilão) adora os jogos, enquanto Marco Aurélio (o bonzinho) teria proibido sua realização - o que nunca aconteceu.

O filme nunca explica o que quer dizer com essa visão. Marco Aurélio fala "Havia um sonho uma vez que era Roma". Para o imperador, somente a volta da república podia acabar com a decadência do império, que segundo ele "...não sobreviverá ao inverno". Para resolver o problema, o personagem Maximus é encarregado por Marco Aurélio de consertar Roma.

Marco Aurélio e Maximus conversam em cena no início do filme.

Maximus, um personagem fictício, é retratado como um general agricultor, ao estilo dos conservadores romanos, como Cincinato, um antigo general que havia sido modelo de virtude e simplicidade no início da república. As ordens de Marco Aurélio são confusas "... devolver o poder ao povo e acabar com a corrupção. (...) Roma será uma república novamente."

Mas o que isso significa? Restituir o sistema republicano e a democracia baseada no voto do povo? Mas a democracia romana era famosa pela sua corrupção! As lutas entre o povo e os aristocratas levaram Roma ao colapso, do qual o império foi a única saída. Estava claro para todos, que a república não tinha sido capaz de lidar com os desafios da administração de um grande império.

Acredito que, na visão produtores do filme, o público não conseguiria se conectar emocionalmente com uma cultura tão diferente quanto a romana. Por isso, decidiram transformar os personagens bonzinhos em republicanos defensores da democracia, enquanto o vilão se identifica com o clássico modelo de désposta militar.

É um pena, o filme realmente tinha potencial, mas praticamente todos os diálogos são dedicados a reforçar esses ideais políticos da atualidade. E a verdadeira Roma, aquela que existiu há quase 2000 anos atrás? Essa foi, a maior parte do tempo, ignorada.

Foto de membro da equipe do site: Moacir Führ
Escrito por Moacir Führ

Moacir tem 37 anos e nasceu em Porto Alegre/RS. É graduado em História pela ULBRA (2008-12) e é o criador e mantenedor do site Apaixonados por História desde 2018.

Fontes bibiliográficas
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