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Bustos de imperadores romanos, da esquerda para a direita: Júlio César (Museu de Torino), Augusto (Museu de Velletri), Calígula (Museu Glyptotek, Dinamarca), Nero (Museu Capitolino, Roma) e Domiciano (Museu do Louvre).
Em uma cena memorável da clássica série de TV da BBC Eu, Claúdio (1976), três senadores assustadores são convocados ao palácio na calada da noite pelo imperador Calígula. Em vez de serem executados, eles são agraciados com uma performance do próprio Calígula.
A dança da meia-noite de Calígula é o clímax de uma sequência de horrores e indiscrições cometidas pelo imperador. Ele tem seu antecessor sufocado até a morte com um travesseiro, executa seu primo por causa de sua tosse irritante e se envolve em um relacionamento incestuoso com sua irmã (ambos são deuses, então tudo bem).
Essas cenas estranhas não podem ser atribuídas à imaginação do roteirista Jack Pulman ou a Robert Graves, autor dos romances originais nos quais a série se baseia. Os incidentes são adaptados de De Vita Caesarum (A Vida dos Doze Césares), de Suetônio, uma coleção de biografias imperiais escritas em latim no século 2 d.C.
O trabalho de Suetônio descreve a vida dos primeiros 12 líderes de Roma, de Júlio César a Domiciano - portanto, e hoje é mais conhecida como A Vida dos Doze Césares. Este é o título que traz na edição de bolso da Penguin Classics, traduzida pelo próprio Robert Graves em 1957, e ainda hoje impressa.
Os inesquecíveis contos de Suetônio sobre sexo, escândalo e devassidão garantiram que seus escritos tenham desempenhado um papel significativo na formação de nossas percepções da Roma imperial.
Caio Suetônio Tranquilo era um estudioso e intelectual que ocupava cargos administrativos na corte imperial sob os imperadores Trajano e Adriano. Foi prolífico, escrevendo biografias de poetas e oradores, além de trabalhar em temas tão diversos quanto os jogos, o ano romano, os defeitos corporais e a vida de cortesãs famosas.
Ele provavelmente começou a escrever sobre a vida dos Césares quando era secretário de correspondência de Adriano.
No entanto, as biografias só foram publicadas depois que Suetônio foi demitido do serviço de Adriano por estar muito familiarizado com a esposa do imperador. A conveniência política significou que Suetônio, sabiamente, evitou escrever sobre Adriano.
Em vez disso, os Doze Césares incluem os Julio-Claudianos, a primeira dinastia imperial de Roma (Júlio César, Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio, Nero), três imperadores de vida curta durante as guerras civis de 69 d.C. (Galba, Óton, Vitélio) e os imperadores da Dinastia Flaviana (Vespasiano, Tito, Domiciano).
A estrutura das biografias individuais muitas vezes intrigou os leitores modernos, que esperam que Suetônio conte sua história de maneira linear, do nascimento à morte. Embora Suetônio geralmente comece com a família e a educação de um imperador, a maior parte de cada Vida consiste em uma variedade de anedotas memoráveis e às vezes obscenas sobre a conduta pública e a vida privada de um imperador.
Mas este não é um mero catálogo casual de sexo e corrupção. Em vez disso, Suetônio diz a seus leitores que ele organizou cuidadosamente as histórias por "categorias". Essas categorias incluem as virtudes do imperador (como justiça, autocontrole e generosidade) e seus vícios (como ganância, crueldade e excesso sexual).
No século 2 d.C., quando Suetônio estava escrevendo, não havia chance de retorno à República, mas os aristocratas ainda esperavam que o imperador se comportasse como se ele fosse apenas o cidadão mais prestigioso e não um autocrata. As histórias de virtude e vício dos Césares são cuidadosamente selecionadas para ilustrar se os imperadores alcançaram esse padrão.
Quando Suetônio descreve os ancestrais de um imperador, ele destaca como suas qualidades influenciaram o próprio governante. No início da vida de Nero, o leitor encontra o avô de Nero, que realizou espetáculos particularmente cruéis na arena. Isso ajudaria a explicar os contos posteriores da selvageria de Nero, porque o leitor veria que esse vício fazia parte de sua natureza.
Suetônio é justo e imparcial no tratamento de seus biografados. Todos os imperadores parecem homens defeituosos, com virtudes e vícios, mas o equilíbrio entre eles depende de cada um individualmente. Ele dá o devido crédito ao notório Calígula, que iniciou seu reinado publicando o orçamento imperial e mostrando generosidade ao povo. Suetônio então sinaliza uma mudança:
Até aqui falei dum príncipe. Quero falar agora dum monstro. (p.259)
Essa "divisão" - uma declaração na qual Suetônio separa claramente as histórias que ilustram virtudes dos vícios - é uma característica de várias de suas biografias. No caso de Calígula, é a partir deste ponto que lemos sobre suas pretensões à divindade, sua condenação dos aristocratas ao trabalho forçado nas minas e sua imoralidade sexual.
As histórias dos hábitos sexuais dos imperadores constituem algumas das passagens mais famosas de Suetônio. As crônica do comportamento sórdido de Tibério em Capri, detalhando como ele forçou homens e mulheres a se envolverem em sexo a três, fez crianças fazerem sexo oral nele e estuprou jovens que ele gostava.
Quando a Loeb Classical Library, que apresenta a tradução original em latim e a tradução em inglês de textos clássicos nas páginas opostas, publicou sua primeira edição de Suetônio em 1913, esses capítulos sobre o comportamento de Tibério foram deixados em latim porque eram considerados escandalosos demais para traduzir. Agora traduzidos para o inglês, esses contos gráficos ainda têm o poder de chocar e abalar o leitor.
Falar sobre vida privada de um imperador e sua conduta sexual era natural, porque isso refletia se ele era ou não adequado para governar. O mesmo se aplicava aos membros de sua família. As filhas de Augusto foram elogiadas por Suetônio por passar o tempo tecendo em sua casa. (Esses estereótipos de gênero permanecem conosco hoje, se alguém se lembrar da sessão de fotos de Julia Gillard tricotando na revista Women's's Weekly).
Quando sua filha, Julia, desrespeitou flagrantemente a legislação de adultério de Augusto, Suetônio relata que ele não teve escolha, a não ser exilá-la. A família imperial tinha que estabelecer padrões para todo o império.
Após as virtudes e os vícios, as Vidas de Suetônio costumam terminar com uma narrativa da morte do imperador e descrever detalhadamente a sua aparência. Suetônio não se segurou nessas passagens, apontando inclusive que o imperador Óton ostentava uma peruca terrível para esconder seu careca (como sua moeda também revela).
A descrição do imperador Nero é particularmente memorável:
Era de estatura mediana. Corpo coberto de sinais disformes. Cabelo pendendo para o loiro. A figura mais bela do que agradável. Olhos azuis e vista fraca. Pescoço grosso, ventre proeminente, pernas muito finas (...) (p.391)
As diferentes partes do corpo deveriam indicar traços de caráter. A pele manchada de Nero o comparava a uma pantera (considerada uma criatura enganosa); a cor do cabelo sugeria coragem; a barriga grande tinha conotações de poder, mas também expunha sua devoção ao prazer; suas pernas fracas indicavam feminilidade e medo. Nero era assim revelado como uma contradição.
As descrições dos corpos também são muito engraçadas. Elas minavam as pretensões divinas de imperadores, cujas estátuas os exibiam em um nudez heróica com tanquinhos que demonstravam sua virilidade e os comparavam a deuses. (Mais uma vez, nada mudou, como revelado pelas imagens das expedições de caça sem camisa de Vladimir Putin ou Tony Abbott e sua sunga).
As histórias de Suetônio sobre as falhas e fraudes dos imperadores os expuseram como seres humanos. Ele até mesmo colecionou algumas frases famosas para iluminar ainda mais a personalidade de seus personagens - a famosa frase “tão rápido quanto aspargos cozidos”, entoada lindamente pelo Augusto, de Brian Blessed (em Eu, Cláudio) saiu diretamente de Suetônio.
Seu relato dos ditos espirituosos de Vespasiano mostra que o imperador brincava com freqüência sobre suas próprias políticas econômicas:
Censurou-o seu filho Tito por ter criado um imposto sobre a urina. Vespasiano, metendo-lhe no nariz a primeira moeda recebida do novo tribuno, interrogou-o "se sentia incomodado com o seu cheiro". Tito contestou-lhe que não. "Sem embargo", retrucou-lhe o imperador, "provém da urina". (p.478)
Vespasiano surge como uma figura bastante humana. Ele até zomba da deificação dos imperadores, proclamando nos dias anteriores à sua morte: "Ao que me parece, começo a ser deus". (p.479)
Mas o humor dos césares de Suetônio é geralmente de dois gumes. Ele conta uma história sobre a vez em que Nero visitou sua tia no leito de morte, e ela observou com carinho que morreria feliz quando ela tivesse os cabelos da sua barba. Nero brincou dizendo que iria se barbear imediatamente. Então deu a sua tia uma overdose de laxantes para matá-la e confiscou sua propriedade.
Os aristocratas romanos que liam esse conto provavelmente teriam rido, dados seus elementos absurdamente cômicos. Mas teria sido uma risada nervosa. Pois essas histórias os lembravam do poder do imperador. Embora eles possam ter rido do infortúnio alheio, teriam ficado profundamente cientes de que um dia poderiam ser eles.
Os Césares de Suetônio são, portanto, mais do que uma coleção aleatória de fofocas e escândalos, mas uma obra que lança luz sobre o mundo da aristocracia romana e como eles viviam (e lidavam) com seus imperadores. As histórias das virtudes e vícios dos imperadores ilustram o que as elites romanas consideravam um comportamento aceitável para seus líderes.
As biografias de Suetônio também diminuíram o tamanho dos imperadores, revelando que eram homens com falhas humanas, em vez de deuses. Eles ofereceram um meio necessário de escapismo em um mundo onde a inconstância imperial poderia acabar com a carreira - ou a vida de alguém.
Tradução de texto escrito por Caillan Davenport
Novembro de 2017
Moacir tem 37 anos e nasceu em Porto Alegre/RS. É graduado em História pela ULBRA (2008-12) e é o criador e mantenedor do site Apaixonados por História desde 2018.