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Fragmento de relevo assírio mostrando caçadores com seus cães. Palácio Norte de Niníve.
Museu Britânico. N° 118915
Cães têm sido parte da história dos seres humanos desde antes da palavra escrita. O antigo templo de Gobekli-Tepe na Turquia, datado de pelo menos 12.000 anos a.C, forneceu aos arqueólogos evidências de cachorros domesticados no Oriente Médio, correspondendo à mais antiga evidência de domesticação, o Túmulo Natufiano, (cerca de 12.000 a.C), descoberto em Ein Mallaha, Israel, no qual um velho foi enterrado com um filhote de cachorro.Em muitas culturas em todo o mundo antigo, os cães figuravam proeminentemente e, em grande parte, eram vistos da mesma maneira que são hoje: como companheiros fiéis, caçadores, guardiões e uma parte valorizada da família.
Na história mais antiga do Oriente Próximo, A Epopéia de Gilgamesh da Mesopotâmia (datada de 2150-1400 a.C), os cães aparecem em um papel elevado como os companheiros de uma das deusas mais populares da região; a deusa Innana (Ishtar) viaja com sete estimados cães de caça na coleira.
Embora o Egito seja creditado com a invenção da coleira de cachorro, ele provavelmente se desenvolveu na Suméria. Pode-se supor que o desenvolvimento da coleira de cachorro foi sugerido logo após os cães serem domesticados, o que aconteceu na Mesopotâmia antes do Egito. O pingente de ouro de um cão (claramente um Saluki) foi encontrado na cidade suméria de Uruk datada de 3300 a.C e um selo cilíndrico de Nínive (datado de 3000 a.C) também apresenta um Saluki. O pingente de cachorro usa um colarinho largo; evidência da coleira de cachorro em uso naquele momento.
No famoso conto Descida de Innana (uma história considerada mais antiga e não parte de Gilgamesh) em que a deusa desce ao submundo, seu marido, Dumuzi, mantém cães domesticados como parte de sua comitiva real. Cães tinham destaque na vida cotidiana dos mesopotâmicos. O historiador Wolfram Von Soden observa isso, escrevendo:
O cão (nome sumério, ur-gi; nome semítico, Kalbu) foi um dos primeiros animais domésticos e serviu principalmente para proteger rebanhos e habitações contra inimigos. Apesar do fato dos cães vagarem livremente nas cidades, o cão no antigo Oriente estava sempre ligado a um único mestre e era cuidado por ele. É claro que o cão também era comedor de carniça e nas aldeias prestava o mesmo serviço que as hienas e os chacais. Até onde podemos dizer, havia apenas duas raças principais de cães: grandes galgos que eram usados principalmente na caça e cães muito fortes (tipo os dinamarqueses e mastins), que no antigo Oriente eram mais do que adequados para enfrentar os lobos geralmente menores e, por essa razão, eram especialmente adequados como cães de rebanho. As fontes distinguem numerosas sub-raças, mas só podemos identificá-las parcialmente. O cão era muitas vezes o companheiro dos deuses da terapêutica. Embora a expressão "cão vicioso" tenha ocorrido, "cão" como termo pejorativo foi pouco utilizado (91).
Os cães são retratados na arte mesopotâmica como caçadores, mas também como companheiros. Cães eram mantidos em casa e eram tratados da mesma maneira por famílias atenciosas como são hoje. Inscrições e placas embutidas retratam cães esperando por seus senhores e, de acordo com o historiador Bertman, até mesmo ouvindo seu mestre tocar música: "As imagens em placas incrustadas, pedras de selo esculpidas e relevos esculpidos nos transportam de volta(...) Nós vemos um pastor tocando sua flauta enquanto seu cão se senta e escuta atentamente "(294).
Cães protegiam a casa e imagens amuléticas de cães - como a mencionada acima, de Uruk - eram transportadas para proteção pessoal. Os famosos Nimrud Dogs, figuras de barro encontradas na cidade de Kalhu, foram enterrados sob ou ao lado do limiar de edifícios por seu poder protetor.
Cinco outras estatuetas de cães (foto acima) foram recuperadas das ruínas de Nínive e inscrições relatam como essas figuras foram imbuídas com o poder do cão para proteger contra o perigo. Além disso, os "deuses da terapêutica" referenciados por Von Soden acima eram as divindades envolvidas com a saúde e a cura e, mais notavelmente, a deusa Gula que era regularmente representada na presença de seu cão. A saliva do cão foi considerada medicinal porque se notou que, quando os cães lambiam suas feridas, promovia a sua cura.
Na Índia antiga, o cão também era altamente considerado. O Indian Pariah Dog, que ainda existe hoje, é considerado por muitos o primeiro cão verdadeiramente domesticado da história e o mais antigo do mundo (embora isso tenha sido questionado). O grande épico cultural O Mahabharata (cerca de 400 a.C) apresenta um cão que pode ter sido um desses cães párias.
O épico relata, perto do final, a história do rei Yudisthira, muitos anos após a batalha de Kurukshetra, fazendo uma peregrinação ao seu lugar de descanso final. No caminho, ele é acompanhado por sua família e seu cão fiel. Um por um, seus familiares morrem ao longo do caminho, mas seu cachorro permanece ao seu lado. Quando, por fim, Yudisthira alcança os portões do paraíso, ele é recebido pela boa e nobre vida que viveu, mas o guardião do portão lhe diz que o cão não é permitido entrar. Yudisthira fica chocado que uma criatura tão leal e nobre como seu cão não seria permitida no céu e assim escolhe ficar com seu cachorro na terra, ou até mesmo ir para o inferno, do que entrar em um lugar que excluiria o cão. O guardião do portão diz a Yudisthira que este foi apenas um último teste de sua virtude e que, é claro, o cão também é bem-vindo para entrar. Em algumas versões deste conto, o cão é então revelado como sendo o deus Vishnu, o preservador, que esteve vigiando Yudisthira por toda a sua vida, ligando assim a figura do cão diretamente ao conceito de deus.
A conexão do cão com os deuses e a lealdade do cão para com os seres humanos é explorada também em outras culturas. No antigo Egito, o cão estava ligado ao cão-chacal deus, Anúbis, que guiava a alma do falecido ao Salão da Verdade, onde a alma seria julgada pelo grande deus Osíris. Cães domesticados foram enterrados com grande cerimônia no templo de Anubis em Saqqara e a idéia por trás disso parecia ser a de ajudar os cães falecidos a passar facilmente para a vida após a morte (conhecido no Egito como o Campo dos Juncos), onde poderiam continuar a desfrutar a vida como na terra.
O cão mais conhecido honrado desta maneira é Abuwtiyuw, que foi homenageado com um grande enterro no Antigo Reino (cerca de 2613-2181 a.C) perto do planalto de Gizé. Abuwtiyuw era o cão de um servo desconhecido do rei (cuja identidade também não é clara), cuja placa memorial foi descoberta em 1935 pelo egiptólogo George Reisner. A placa inscrita teria sido parte da capela memorial do proprietário e conta como "Sua Majestade ordenou que ele [o cão] fosse enterrado cerimonialmente, e que ele recebesse um caixão do tesouro real, linho fino em grande quantidade e incenso".
Embora Abuwtiyuw tivesse honras especiais, os cães em geral eram altamente valorizados no Egito como parte da família e, quando um cachorro morria, a família, se pudesse pagar, teria o cão mumificado com tanto cuidado quanto pagaria um membro humano da família. Grande pesar foi exibido sobre a morte de um cão da família e a família rasparia as sobrancelhas como um sinal desse pesar (como eles também faziam com seus gatos). Pinturas de tumbas do faraó Ramsés, o Grande, descrevem-no com seus cães de caça (presumivelmente no Campo dos Juncos) e os cães eram frequentemente enterrados com seus senhores para prover esse tipo de companhia na vida após a morte. A relação íntima entre cães e seus mestres no Egito fica clara através de inscrições preservadas:
Nós até conhecemos muitos nomes de cães egípcios pelas coleiras de couro, e por estelas e relevos. Eles incluíam nomes como Corajoso, Confiável, Bom Pastor, Vento Norte, Antílope e até "Inútil". Outros nomes vêm da cor dos cães, como Pretinho, enquanto outros cães receberam números como nomes, como "Quinto". Muitos dos nomes parecem representar carinho, enquanto outros transmitem apenas as habilidades ou capacidades dos cães. No entanto, mesmo nos tempos modernos, pode haver conotações negativas para os cães devido à sua natureza de servos do homem. Alguns textos incluem referências a prisioneiros como "o cão do rei" (TourEgypt.com).
O cão, como criado, estava mais claramente representado por essas coleiras, que serviam para treinar e controlar os animais. A evidência mais antiga da coleira de cachorro no Egito é uma pintura de parede datada de cerca de 3500 a.C de um homem passeando com o cachorro na coleira. A coleira parece ser uma corda simples ou um pano amarrado ao colarinho. As coleiras de cães egípcios eram fabricadas a partir de uma única peça de couro costurada e colada para formar um anel que depois escorregava sobre a cabeça do cão. A partir de simples anéis de couro, a coleira tornou-se mais elaborada no design na época do Império Médio (2040-1782 a.C), quando foram ornamentadas com tachas de cobre ou bronze. No Império Novo (1570-1069 a.C) elas eram ainda mais elaboradas com gravuras. Isto é mais visível na coleira do túmulo de Maiherpri, um nobre do reinado de Tutmés IV (1400-1390 a.C), que é uma faixa de couro adornada com cavalos e flores de lótus e tingida de rosa pálido.
A China antiga tinha uma relação interessante com o cachorro. Cães foram os primeiros animais domesticados na China (cerca de 12.000 a.C), juntamente com os porcos, e foram usados na caça e mantidos como companheiros. Eles também foram usados, desde muito cedo, como fonte de alimento e como sacrifícios. Antigos ossos de oráculos (que eram os ossos de animais ou conchas de tartarugas usadas para contar o futuro) mencionam os cães repetidamente como bons e maus presságios, dependendo de como, em que condições e sob quais circunstâncias o cão foi visto.
O sangue de um cão era um componente importante ao selar juramentos e promessas de lealdade, porque se acreditava que os cães tinham sido dados aos seres humanos como um presente do céu e, portanto, seu sangue era sagrado. Como um presente do divino, eles foram honrados, mas entendeu-se que eles tinham sido fornecidos com um propósito: ajudar os seres humanos a sobreviver, fornecendo-lhes alimento e sangue para o sacrifício.
Cães eram mortos e enterrados na frente de uma casa, ou antes dos portões da cidade, para evitar doenças ou má sorte. Com o tempo, os cães de palha substituíram os cães reais, pois a prática de sacrificar os cães tornou-se menos popular. A doença ou a má sorte que ameaçavam a cidade ou a casa eram vistas como facilmente enganadas pela figura do cachorro de palha, achando que era um cão de guarda, e fugiriam como de um cachorro de verdade. A prática de colocar uma estátua ou imagem de um cachorro na frente da casa pode vir desse costume de enterrar um cachorro de palha no quintal para proteção contra danos.
Tradução de texto escrito por Joshua J. Mark
Junho de 2014
Moacir tem 37 anos e nasceu em Porto Alegre/RS. É graduado em História pela ULBRA (2008-12) e é o criador e mantenedor do site Apaixonados por História desde 2018.