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Ciropédia, de Xenofonte - Livro 3

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Representação moderna de Ciro o Grande.

Sobre a fonte

Ciropédia (ou A educação de Ciro) é uma biografia de Ciro, o Grande (580-530 a.C.), escrita pelo ateniense Xenofonte. A obra tem um caráter parcialmente ficcional e seu uso como fonte histórica tem sido repetidamente discutida. Xenofonte viveu entre 430-355 a.C., cerca de 100 depois da morte de Ciro. Apenas o primeiro dos seus 8 livros é, estritamente falando, a Ciropédia. O primeiro livro é dedicado à origem e educação de Ciro e à sua estada na corte do seu avô materno, o rei Medo Astíages. Os livros 2 a 7 cobrem a vida de Ciro II enquanto vassalo dos Medos. O livro 8 é um ensaio sobre o modo de Ciro governar e sobre as suas visões da monarquia.

Prisão do rei da Armênia e de toda a sua família — Seu julgamento — O rei da Armênia declara-se aliado de Ciro — Ciro e Tigranes, filho do rei da Armênia, fazem uma expedição contra os caldeus — O rei da Armênia vem ter com Ciro — Fundação de um castelo — Paz com os caldeus — Ciro parte da Armênia para a Média — Depois de várias disposições Ciro entra na Assíria — Batalha entre os medos e os assírios — Os medos ficam vitoriosos.

Prisão do rei da Armênia e de toda a sua família — Seu julgamento — O rei da Armênia declara-se aliado de Ciro

Ciro ia marchando. O rei da Armênia, assim que ouviu da boca do arauto a ultimação de Ciro, refletiu em seu injusto comportamento, não pagando o tributo nem enviando tropas, ficou aterrado: e subia de ponto seu terror quando considerava que em breve se saberia que ele principiava a pôr seu palácio em estado de defesa. Nesta situação congrega suas tropas e envia para as montanhas Sabaris, seu filho mais moço, suas filhas, sua mulher, sua nora e as alfaias de mais preço. Despediu exploradores, que espreitassem os movimentos de Ciro, e entretanto alistava os armênios, que se achavam presentes: mas eis que vêm dizer-lhe que Ciro estava próximo. Longe de pensar em vir a braços, retira-se; o que vendo os armênios, retiram-se também para suas casas para pôr seus bens em segurança. Ciro, vendo-os espalhados pela planície, publicou que os que se deixassem ficar não seriam tratados como inimigos, e pelo contrário os que fugissem. Muitos se deixaram ficar; outros foram seguindo o rei. Os que acompanhavam as mulheres, topando com a divisão de Crisantas, que ocupava a montanha, gritaram, e deitando a fugir, caíram em grande número no poder dos adversários. Não escaparam o filho do rei, as mulheres, as filhas e todas as riquezas que levavam. Com esta notícia, não sabendo o rei dar-se a conselho, fugiu para um outeiro. Então Ciro cercou o outeiro, mandou dizer a Crisantas que deixasse um presídio no monte, e viesse unir-se com ele.

Entretanto que o exército se congregava, Ciro enviou um arauto ao rei da Armênia com ordem de lhe perguntar assim: — “Porventura quereis combater com a fome e sede, deixando-vos estar aí, ou desceis para combater conosco?” Respondendo ele que nem uma nem outra coisa queria, Ciro tornou a mandar-lhe perguntar:

— Para que estais aí posto e não desceis para a planície?

— Porque não sei o que hei-de fazer.

— Não deveis vacilar; podeis descer para se vos fazer justiça.

— E quem é o juiz?

— Está claro que aquele a quem Deus concedeu um poder absoluto sobre vós.

Então o rei, forçado pela necessidade, desceu à planície, e Ciro o meteu a ele é toda a sua comitiva no meio do exército, que já estava todo reunido.

A este tempo chegava de uma viagem Tigranes, filho mais velho do rei, que na caça já fora companheiro de Ciro. Informado do que tinha acontecido, imediatamente foi ter com Ciro, e vendo seu pai, mãe, irmãos, esposa, todos cativos, não pôde, como era natural, conter as lágrimas. Ciro, sem outra demonstração de afeto, lhe diz;

— Vindes em boa ocasião para assistirdes ao julgamento de vosso pai.

E logo convocou os cativos persas e medos, e também os armênios mais distintos, e sem mandar retirar as mulheres que estavam em seus carros, consentiu que todos o ouvissem. Estando tudo pronto, Ciro falou assim:

— Primeiro que tudo, aconselho-vos a falar verdade em todo este processo, para que não cometais o maior dos delitos: bem sabeis que a mentira é o maior dos obstáculos para obter perdão. Vossos filhos, estas mulheres e os armênios que presentes estão, conhecem vosso comportamento. Se vos ouvirem mentir, eles mesmos pensarão que pronunciais contra vós a mais severa sentença, se chego a descobrir a verdade.

— Perguntai, e eu responderei a verdade, aconteça o que acontecer.

— Dizei, pois. Algum tempo fizestes guerra a Astíages, meu avô materno, e aos medos?

— Sim, fiz.

— E vencido por ele não pactuastes pagar-lhe um tributo, fornecer-lhe tropas, quando vo-las exigisse, e não ter lugares fortificados?

— Assim é.

— E agora por que não pagais o tributo e nem forneceis tropas, e fortificais lugares?

— Impeliu-me a isso o amor da liberdade, que eu desejava restaurar, e legar a meus filhos.

— De feito, é honroso para o homem o desejo de pelejar com o fim de não vir a cair na escravidão; mas depois de vencido e escravizado, dizei-me como procederíeis com ele, no caso que se revoltasse contra seus senhores; honrá-lo-íeis como a um homem assisado, ou castigá-lo-íeis por injusto, se o colhêsseis às mãos?

— Castigava-o. Não consentis que eu minta.

— Respondei claramente a estas perguntas. Se um general vosso cometesse um crime, deixá-lo-íeis gozar de suas honras, ou substitui-lo-íeis por outro?

— Substituía-o.

— Se tivesse muitas riquezas, consentiríeis que ele as desfrutasse, ou reduzi-lo-íeis à pobreza?

— Tirava-lhe tudo que ele possuísse.

— E se viésseis a saber que ele tinha correspondências com os inimigos?

— Condenava-o à morte. Não é pois melhor morrer falando a verdade do que convencido de mentiroso?

A estas palavras seu filho arrancou da cabeça a tiara e rasgou a roupa. As mulheres feriam-se e levantavam grande alarido, como se já seu pai estivesse morto e elas todas perdidas.

Ciro mandou impor silêncio, e continuou a falar:

— Ó armênio, escorado nessas vossas bases de justiça, aconselhai-me o que devo fazer.

O rei calou-se, duvidoso, se aconselharia a Ciro que proferisse contra ele sentença de morte, ou se retratasse o que tinha dito. Então, Tigranes interrogou Ciro:

— Visto que meu pai está vacilante, concedeis que a seu respeito vos dê um conselho salutar?

Ciro, recordando-se que, quando fora seu companheiro na caça, Tigranes costumava trazer consigo um sofista a quem admirava, desejou por isso ouvi-lo, e imediatamente lhe disse que expusesse o que entendia.

— Eu — disse Tigranes — aconselho-vos a imitar meu pai, se aprovais seus feitos e seus projetos; e não imitá-lo, se vos parece que ele procedeu erradamente.

— Na prática da justiça de maneira nenhuma hei-de imitar um criminoso.

— Assim deve ser.

— Portanto, segundo vosso mesmo discurso, vosso pai deve ser castigado, se é justo castigar um criminoso.

— Mas vós, Ciro, quereis que as punições redundem em vosso proveito ou em vossa desvantagem?

— Neste último caso punia-me a mim mesmo.

— Pois vós fazeis a vós mesmo um grande dano, se entregardes à morte gente que está sob vosso poder, quando vos releva muito sua conservação.

— Que grande importância pode ter a conservação de homens injustos!

— Sim, no caso que ainda venham a ser justos. Sem justiça, tenho para mim que todas as outras virtudes são sem preço. Ora, se não for justo, que proveito poderá vir de um homem forte, animoso, perito na arte eqüestre, rico, poderoso? Pelo contrário, sendo justo, todo amigo é útil, todo servo é bom.

— Quereis, pois, dizer, que em um só dia vosso pai, de injusto que era, se fará justo?

— É verdade.

— Vós cuidais que a justiça é uma paixão de alma, como a tristeza, e não uma virtude que se aprende. Mas para ser justo é preciso ser prudente, e um homem imprudente não pode de repente fazer-se justo.

— Ora, ainda não vistes, Ciro, um homem combater imprudentemente com outro mais forte, ficar vencido, e desde então não cometer outra imprudência igual? Não tendes visto, que de duas cidades em luta, a que fica vencida obedece logo à outra?

— Mas que detrimento experimentou vosso pai, para vós assegurardes que ele se fará justo?

— Pensar que, buscando a liberdade, caiu na escravidão; não conseguir bom resultado de seus desígnios, quer secretos, quer manifestos; tê-lo vós enganado com a facilidade com que se engana um cego, um surdo ou um louco; ver que vós lhe ocultáveis vossos projetos, de maneira que nos lugares que ele tinha por mais seguros, aí mesmo o encerrastes, antes que ele percebesse. Enfim, contemplar que vós o excedestes em velocidade, de maneira que chegastes com um numeroso exército primeiro que ele reunisse as tropas que tinha em seu país.

— Esse detrimento, o conhecer a superioridade dos outros, parece-vos ser bastante para fazer os homens justos?

— Parece-me mais eficaz do que uma derrota em batalha campal. Um contendor que é vencido à viva força, depois de restaurar seu vigor, torna a entrar na arena; uma cidade subjugada procura cobrar sua liberdade com o auxílio de seus aliados; pelo contrário, o homem que conhece a superioridade de outro, obedece-lhe sem violência.

— Vós pareceis não crer que os homens insolentes, os ladrões, os fraudulentos, os injustos, conhecem os que não têm os seus vícios. Não sabeis que vosso pai cometeu uma fraude, violando os pactos que fizera conosco, e não ignorando que nós sempre guardámos os que fizemos com Astíages?

— Eu também não digo que seja bastante o somente conhecer a superioridade dos outros, sem a circunstância de receber algum castigo, como está acontecendo a meu pai.

— A vosso pai ainda não aconteceu mal nenhum, e por isso sei que deve temer os últimos reveses.

— Pensais vós que alguma coisa oprime mais o homem do que o grande medo? Ignorais que o que é ferido pelo ferro, o que se julga ser o maior dos tormentos, quer outra vez entrar na luta? Pelo contrário os homens não podem olhar para aqueles que temem, ainda que estes lhes falem com termos afetuosos.

— Pensais, pois, que o medo do castigo confrange mais que o próprio castigo?

— Vós bem sabeis que eu digo a verdade. Conheceis quão grande mágoa se apodera do ânimo dos que temem ser expatriados, ser vencidos no combate, dos que temem o naufrágio, os ferros da escravidão: eles não podem comer nem dormir. Ora, os fugitivos, os que já estão vencidos, os já escravos, comem e dormem com mais satisfação que os homens felizes. Com exemplos mostra-se ainda mais claramente o grande peso que faz na alma o temor. Alguns delinqüentes, sendo presos, e temendo a morte, morrem de medo, uns precipitando-se, outros estrangulando-se, outros degolando-se. Assim, de todos os males nenhum mais que o temor acabrunha a alma: e tal é a paixão que aflige agora meu pai, que teme sua escravidão, a minha, a de sua esposa e de seus filhos.

— Assim o creio; mas é certo que o homem arrogante na prosperidade, submisso na adversidade, se cobra sua primeira fortuna, se ensoberbece, e outra vez exercita suas travessuras.

— Nossas culpas vos dão motivo para desconfiardes de nós; mas está da vossa parte fundar castelos, segurar-vos dos lugares fortes, e lançar mão de outros penhores de nossa lealdade. Não ouvireis por isso nossas queixas, porque nos lembramos que fomos a causa de vos haverdes assim. Se derdes a administração da Armênia a algum homem probo, e não mostrardes depositar nele toda a confiança, olhai, não lhe façais ao mesmo tempo o benefício, e atraiais sobre vós sua inimizade. E se com o intuito de evitar esta inimizade, lhe não impuserdes condições, para se não tornar insolente, olhai não vos venha a ser preciso empregar meios mais eficazes do que empregastes conosco, para reduzi-lo a seus deveres.

— Com grande dificuldade me serviria de pessoas que obedecessem com constrangimento; aquelas, porém, que eu visse desempenhar seus cargos com verdadeiro afeto para comigo, nessas eu desculparia mais facilmente os defeitos do que nas que, aborrecendo-me, obedecessem todavia com pontualidade, mas forçadamente.

— Mas quem poderá em tempo algum dedicar-vos uma amizade mais estreita do que nós agora?

— Aqueles que nunca se portaram hostilmente comigo, no caso que eu queira beneficiá-los, como pedis que eu vos beneficie.

— Mas, Ciro, podeis porventura ser mais liberal para com alguém do que para com meu pai? Por deixardes viver um homem que nunca vos ofendeu, cuidais que este vos há de agradecer? Se lhe não tirar d es os filhos e a esposa, pensais que por isso vos há de ser mais grato do que aquele que conhece que com justiça lhe podem ser tirados? Quem sentirá mais do que nós, não possuirmos o reino da Armênia? E é claro que quem mais o sentir, mais grato será, vindo a possuí-lo. Quando partirdes, se quiserdes deixar a Armênia em sossego, refleti, se podereis consegui-lo melhor, introduzindo um novo governo, do que deixando persistir o antigo. Se quiserdes levar daqui um grande exército, quem será mais apto para escolher os soldados do que aquele que muitas vezes tem militado à sua frente? Se quiserdes dinheiro, quem poderá aprontá-lo com mais facilidade do que aquele que dirige os negócios do Estado? Ó, bom Ciro, olhai que para deitar-nos a perder, não causeis a vós mesmo maior detrimento do que meu pai poderia causar-vos.

Aqui Tigranes pôs termo ao seu arrazoado.

Ciro folgou muito de o ouvir, porque estava vendo realizar-se tudo que prometera a Ciaxares, Lembrava-se de ter dito que contava fazer do rei da Armênia um aliado mais fiel de que fora dantes. Em conseqüência disto novamente interrogou o rei de Armênia, desta forma:

— No caso que eu me conforme com as instâncias de vosso filho, dizei-me que tropas e que dinheiro me fornecereis para a guerra.

— Nada vos posso dizer de mais singelo, nem de mais justo, do que declarar-vos quais são minhas forças e meus cabedais, para tirardes o que for de vossa vontade.

— Explicai-vos, pois.

— Minhas forças são oito mil cavaleiros e quarenta mil infantes; enquanto a cabedais, incluindo os tesouros que meu pai deixou, andam avaliados, em prata, por mais de três mil talentos.

— De vossas tropas, visto estardes em guerra com vossos vizinhos caldeus, fornecer-me-eis metade; de vossos cabedais, em vez de cinqüenta talentos, que pagáveis a Ciaxares, solvereis o duplo por terdes faltado ao pagamento. A mim emprestar-me-eis cem, os quais eu prometo, ajudando-me as divindades, satisfazer-vos, ou com mais eminentes serviços, ou com o mesmo dinheiro, se puder. Se o não fizer, é porque não posso, e não serei tachado de falto de fidelidade no pacto.

— Não me faleis assim, que desanimais minha confiança. Pensai que tudo que me deixardes não é menos vosso do que o que levardes.

— Assim será. Por quanto quereis remir, vossa esposa?

— Por quanto puder.

— E vossos filhos?

— Também por quanto puder.

— Prometeis o duplo de vossas posses. E vós, Tigranes, por quanto comprais a liberdade de vossa esposa?

Tigranes era casado de pouco tempo, e a amava sobremaneira: respondeu que até com a vida compraria sua liberdade; ao que Ciro redargüiu:

— Levai vossa esposa. Eu nunca a reputei escrava, por isso que vós nunca abandonastes nossa parcialidade. Vós, rei da Armênia, recebei também vossa esposa e vossos filhos em resgate, para que saibam que eu não vo-los entrego como escravos. Agora vamos cear, e depois da ceia cada una de vós pode ir para onde quiser.

Acabada a ceia, Ciro perguntou:

— Tigranes, que é feito daquele homem que vos acompanhava na caça, e a quem vós muito admiráveis?

— Ah! Pois não o condenou à morte meu pai?

— Por que delito?

— Corromper-me era o delito que meu pai lhe assacava. Mas era ele tão inculpado, que antes de expirar, me chamou e disse-me: “— Tigranes, não vos escandalizeis contra vosso pai por me condenar à morte, o que ele faz é por ignorância, não por maldade; e eu reputo involuntários os erros cometidos por ignorância.”

— Coitado! — exclamou Ciro.

— Ó Ciro, — acudiu o rei — o que mata um adúltero não leva em vista fazer mais circunspecta sua mulher, mas é porque rouba a afeição que só a ele é devida. Foi também por ciúme que eu condenei esse homem, a quem me parecia que meu filho respeitava mais do que a mim.

— Vossa falta — tornou Ciro — é, pelos deuses, uma conseqüência da fragilidade humana. Tigranes, perdoai a vosso pai.

Concluído este diálogo, e assim reconciliados, subiram a seus carros, e se retiraram contentes. Chegando ao palácio, um gabava a sabedoria de Ciro, outro seu valor, qual sua brandura, qual sua beleza e estatura. A este tempo Tigranes perguntou a sua esposa Armênia se lhe parecera gentil a pessoa de Ciro.

— Eu não olhei para ele — respondeu Armênia.

— Então para quem olhastes?

— Para aquele que disse que compraria com a sua vida a minha liberdade.

Terminado este colóquio, entregaram-se ao repouso.

No dia seguinte o rei da Armênia enviou presentes a Ciro e a todo o exército. Passou ordem que os armênios que haviam de partir para a Pérsia se apresentassem em três dias, e enviou a Ciro a quantia dupla do dinheiro que este lhe pedira. Ciro recebeu a quantia que tinha exigido e tornou a remeter-lhe o resto. Ciro perguntou-lhe quem ia por chefe do exército armênio, se seu filho, se ele próprio.

— Irá quem vós determinardes — disse o rei.

— Eu, — disse o filho — nunca vos deixarei, Ciro, ainda que vá acompanhando a bagagem.

Ciro riu-se e exclamou:

— Quanto dais, Tigranes, a quem disser à vossa esposa que vós sois bagageiro?

— Não é preciso dizer-lho: ela há de acompanhar-me, e estará presente a todas as minhas ações.

— É tempo de fazer os preparativos.

— Ficai certo que nos apresentaremos com tudo que meu pai nos fornecer.

Então os soldados foram recebidos em aposentos e se entregaram ao sono.

Ciro e Tigranes, filho do rei da Armênia, fazem uma expedição contra os caldeus

Acompanhado de Tigranes, dos mais distintos cavaleiros medos e de alguns amigos seus, Ciro foi explorar o país, para escolher uma posição para a fundação de um castelo, e, chegando a um alto, perguntou a Tigranes quais eram os montes de onde os caldeus baixavam para fazer correrias na Armênia. Tigranes lhos indicou, e Ciro lhe perguntou se estavam desertos.

— Não — disse Tigranes — os caldeus sempre ali têm espias, que dão sinal do que observam.

— E que fazem eles quando são avisados pelos espias?

— Correm em sua defesa.

Ciro, depois de observar que grande parte do terreno estava erma e inculta, regressou a seu acampamento: os soldados cearam e se recolheram. No seguinte dia apareceu Tigranes acompanhado de quatro mil cavaleiros, dez mil arqueiros e igual número de peltastas.

Enquanto as tropas se iam reunindo, Ciro fazia sacrifícios aos deuses; e como estes se mostrassem favoráveis, convocou os capitães persas e medos, e lhes falou assim:

— As montanhas que daqui avistamos são dos caldeus. Se nos assenhorearmos delas, e fundarmos em seu cume um castelo, seremos respeitados por armênios e caldeus. As divindades mostram-se propícias. A presteza deve sobretudo acompanhar nossa coragem. Se nos anteciparmos aos inimigos em nossa marcha, ou havemos de ocupar o alto do monte sem descarregar um só golpe, ou teremos que entrar em ação com um pequeno número de adversários, e esses fracos. Nenhuma empresa será mais fácil e menos arriscada do que esta, havendo ânimo e agilidade. Correi, portanto, às armas. Os medos marchem pela esquerda, metade dos armênios pela direita, outra metade na vanguarda; e os cavaleiros, marchando na retaguarda, animem e apressem a marcha, não consentindo delongas.

Ditas estas palavras, Ciro formou o exército e postou-se à sua frente. Apenas observaram a rapidez de sua marcha, os caldeus deram sinal, e gritando uns para os outros, se começaram a reunir.

— Persas — exclamou Ciro — os inimigos advertem que nos apressemos. Se ganharmos primeiro que eles o alto do monte, debalde empenharão seus esforços.

Os caldeus usam de um escudo e duas lanças cada um. Diz-se que é a nação mais belicosa daquelas partes, e por seu valor e pobreza costumam assalariar-se nas expedições estrangeiras. Seu território, por ser montanhoso, é pouco abastado.

Como as tropas de Ciro se fossem aproximando do alto da montanha, Tigranes disse para Ciro:

— Sabeis que breve nos será preciso pelejar, porque os armênios não sustentam o ímpeto dos caldeus?

Ciro respondeu que bem sabia, e exortou os persas a prepararem-se para perseguir os inimigos, quando os armênios, fugindo por dissimulo, os trouxessem para perto. Marcham adiante os armênios, e os caldeus, ao verem-nos aproximar-se precipitam-se sobre eles com grande vozeria, como costumavam. Os armênios não aguardam o choque, os caldeus lhes vão nas espáduas, e vêm as outras forças correndo sobre eles com a espada em punho. Os caldeus que continuaram o alcance morreram; dos demais, uns fugiram, outros ficaram prisioneiros.

Senhores das montanhas os aliados, descobriam as habitações dos caldeus, e observavam que das casas mais próximas os moradores fugiam. Reunidas todas as tropas, cearam. Acabada a ceia, Ciro, que havia notado ser forte e bem provido de água o lugar onde estavam vigias dos caldeus, entendeu logo em construir ali mesmo um castelo. Pediu a Tigranes para mandar dizer a seu pai que viesse ter com ele com todos os carpinteiros e pedreiros que houvesse. Partiu o mensageiro, e entretanto deu começo à obra com os operários que consigo tinha.

A este tempo trouxeram à presença de Ciro os prisioneiros atados, alguns deles feridos. Ciro mandou desatá-los, chamou os médicos para curar os feridos, e lhes falou assim:

— Eu não vim com propósito de vos perder ou de vos fazer guerra: meu fim é firmar a paz entre os armênios e caldeus. Antes de me fazer senhor da montanha, sei que não vos importava a paz; porque fazíeis incursões nos campos dos armênios, estando em segurança os vossos. Agora, porém, reparai em vossa situação. Eu vos dou a liberdade, e vos envio para a vossa pátria, a fim de consultardes com vossos compatriotas se quereis guerra ou paz. No primeiro caso não volteis sem armas, se tendes juízo; no segundo vinde desarmados, e eu tomarei a peito pôr em segurança vossas coisas.

Os caldeus, depois de muitos louvores e agradecimentos, puseram-se a caminho.

O rei da Armênia vem ter com Ciro — Fundação de um castelo — Paz com os caldeus — Ciro parte da Armênia para a Média

Apenas noticiado do aviso de Ciro e do fim para que o solicitava, o rei da Armênia partiu com a maior velocidade, acompanhado de carpinteiros e munido dos materiais que lhe pareciam necessários. Logo que avistou Ciro, lhe falou neste teor:

— Quão pouco podemos nós conhecer o futuro, e a quão grandes empresas nos abalançamos! Eu, querendo recobrar a liberdade, caí, na escravidão, e quando me considerava perdido, achei-me mais afortunado que nunca. Enquanto aos caldeus, que não cessavam de inquietar-me, eu agora os vejo na situação que desejava. E deveis saber que para rechaçá-los destes montes, eu daria uma quantia mais avultada do que a que recebestes de mim. Pelo que toca aos serviços, que prometestes fazer-me, eles estão por esta via prestados. Mas nosso reconhecimento sobe de ponto, de maneira que por mais que façamos, nunca poderemos pagar-vos vosso extraordinário benefício.

Assim falou o rei da Armênia.

Os caldeus voltaram pedindo paz. Ciro perguntou-lhes:

— Caldeus, se preferis a paz, não é porque esperais viver mais seguros do que em guerra, visto sermos senhores dos montes?

— É verdade.

— E se da paz tirardes ainda outras vantagens?

— Muito mais nos lisonjearemos.

— Se sois pobres, porventura não é por causa da esterilidade do terreno?

— Assim é.

— Quereis gozar da liberdade de cultivar campos na Armênia, pagando rendas como os armênios?

— Sim, contanto que se nos não faça alguma injustiça.

— E vós, rei da Armênia, quereis que vossos campos incultos sejam roteados, pagando os cultivadores as costumadas rendas?

— Isso muito estimo eu, para aumentar meus rendimentos.

— Vós, caldeus, permitis que os armênios apascentem seus gados em vossas montanhas abundantes de pastagens, pagando eles o que for razoável?

— Sim, esse é o meio de fazer grandes lucros sem trabalho.

— E vós, rei da Armênia, quereis aproveitar-vos destas pastagens dos caldeus, se, pagando-lhes uma pequena quantia, tirardes avultadíssimos interesses?

— De muito boa vontade, contanto que não haja nisso perigo.

— Que perigo pode haver, tendo vós os montes fortificados?

— Dessa maneira, sim.

— Por Júpiter — replicaram os caldeus — nesse caso não podemos nós com seguridade cultivar nem os campos armênios nem os nossos.

— E se os montes estiverem fortificados para vos proteger?

— Então tudo vai bem.

— Mas não irá bem para nós — redargüiu o rei da Armênia — se outra vez os caldeus se fizerem senhores dos montes, mormente estando estes fortificados.

— Eu digo como hei-de fazer — tornou Ciro — a nenhum de vós cometerei a guarda da montanha, porei nela guarnição minha. No caso de ultraje, seguirei o partido do ultrajado.

Ao ouvir estas palavras, ambos aplaudiram, e disseram que só assim a paz teria estabilidade. Depois disto deram demonstrações recíprocas de lealdade, e convencionaram que os dois povos seriam independentes um do outro, e haveria reciprocidade nos casamentos, na cultura das terras, nas pastagens, no caso de invasão. Feito este convênio, que ainda hoje tem vigor, ambos os povos cooperaram energicamente para a edificação do castelo.

Assomando a tarde, Ciro convidou para sua mesa armênios e caldeus, os quais já tratava como amigos. Durante a ceia disse um dos caldeus:

— Estas medidas são desejáveis para a maior parte de nossa nação; mas não para aqueles que, acostumados a viver de pilhagem e no exercício da guerra, não sabem, nem podem cultivar a terra. Por esta razão eles costumam assalariar-se umas vezes nos exércitos do rei da Índia, que possui grandes riquezas, outras vezes nos de Astíages.

— E por que não vêm eles também — perguntou Ciro — assalariar-se em meu exército? Dar-lhes-ei maior soldo que outro qualquer poderá dar-lhes.

Convieram nisso e afirmaram que grande número havia de querer. Eis o pacto que fizeram. Tendo Ciro ouvido que os caldeus faziam constantes carreiras para a Índia, e lembrado de que o rei destas partes havia expedido arautos para examinar os motivos da guerra, e que depois partiram para a Assíria com o mesmo intuito, determinou informar o rei índio do que tinha feito. Em tal pressuposto, recitou este discurso:

— Ó vós armênios e vós caldeus, dizei-me: no caso que eu mande algum embaixador ao rei da Índia, querereis também enviar da vossa parte alguns, que o guiem, e ao mesmo tempo cooperem com ele para o bom êxito da embaixada? Eu queria possuir mais grossos cabedais, para pagar generosamente as tropas, e premiar honrosamente os soldados distintos. Esta a razão que me impele ao desejo de possuir consideráveis tesouros. Eu, porém, gosto de poupar os vossos haveres, porque vos contemplo como amigos; mas do rei da Índia receberei de boa vontade o que ele quiser dar. O meu embaixador, apresentando-se a ele, falar-lhe-á nestes termos: — “Sou embaixador de Ciro, que me manda a vossa presença para vos expor sua falta de dinheiro, estando ele à espera de outro exército da Pérsia. (Na verdade o espero.) Se lhe enviardes a soma que estiver ao vosso alcance, ele, se Deus o ajudar na empresa, fará com que não vos arrependais de vossa liberalidade.” Assim falará da minha parte. Aos vossos enviados dai as instruções que julgardes a propósito. Se o rei índio for liberal conosco, viveremos com mais abundância, se não, como nenhum favor lhe ficamos a dever, poderemos proceder como pedirem nossos interesses.

Assim falou Ciro, esperando que os enviados armênios e caldeus dissessem dele o que desejava que por toda parte se propagasse. Dispostas assim as coisas, desfez-se o ajuntamento e foram repousar.

No seguinte dia Ciro despachou seu embaixador. O rei da Armênia e os caldeus fizeram partir em sua companhia as pessoas mais hábeis para esta negociação. Concluído o castelo, e provido de boa guarnição e de todo o necessário, entregou o governo dele a um medo, que lhe parecia mais da afeição de Ciaxares, e pôs-se em marcha, seguido de seu exército armênio e de quatro mil caldeus mais valentes. Descendo aos lugares habitados, todos saíam de suas casas, homens e mulheres, com o que possuíam de mais precioso; e vinham oferecê-lo a Ciro, por lhes ter dado paz. O rei armênio não levava a mal esta demonstração de homenagem rendida a Ciro, sabendo que com isto ele se deleitava. A mesma rainha com as princesas suas filhas e com seu filho mais novo lhe saiu ao encontro, e entre outras dádivas lhe ofereceu o ouro que Ciro não tinha querido antes aceitar.

— Não penseis — disse Ciro — que eu quero ser pago dos benefícios que faço. Voltai para o vosso palácio com esse dinheiro, e não consenti que vosso marido o enterre. Com ele fazei uma lustrosa equipagem de guerra para vosso filho: o resto empregai-o de maneira que passeis com vosso marido, filhos e filhas, uma vida honrosa, esplêndida e jucunda. À terra é bastante que se entregue o corpo depois de morto.

Ditas estas palavras, foi Ciro continuando seu caminho, seguido do rei armênio e de todos os outros, que o aclamavam por seu benfeitor, e o acompanharam até às fronteiras. O rei, como a paz imperava em seus Estados, lhe forneceu um exército mais numeroso. Desta maneira Ciro se ausentou da Armênia, rico com os tesouros que trazia, e mais rico com os de que podia dispor, quando tivesse precisão.

Depois de várias disposições Ciro entra na Assíria

No seguinte dia Ciro enviou o exército e os tesouros a Ciaxares, que estava próximo, como prometera. Ciro divertia-se em caçar com Tigranes e com os persas mais distintos, onde quer que topava caça. Chegado que foi à Média, distribuiu dinheiro pelos taxiarcas, quanto lhe pareceu suficiente para poderem premiar seus subordinados. Estava persuadido que se cada companhia se fizesse elogiável por seu comportamento, todo o exército o seria. Se via alguma coisa que pudesse servir de decoração ao exército, fazia por obtê-la e com ela honrava os mais dignos, convencido de que as decorações do exército revertiam em honra do general. Quando fez a distribuição, falou assim na presença dos taxiarcas, dos logagos e dos outros a quem era feita:

— Amigos, agora temos razão para nos deixarmos dominar pela alegria, visto vivermos na abastança e podermos premiar as pessoas beneméritas. Mas não risquemos da memória, que procedimento foi o nosso, que nos granjeou estas prosperidades. Lembremo-nos que foram nossas vigílias, nossas fadigas, nossa agilidade, e o nunca ceder aos contrários; e reflitamos que os grandes prazeres e grandes venturas só se alcançam com a obediência, tolerância, trabalhos e riscos.

Refletindo que os corpos dos soldados estavam assaz vigorosos para suportar os trabalhos bélicos, a coragem assaz fortalecida para desprezar o inimigo, o manejo das armas bem sabido, a obediência aos superiores bem reconhecida, Ciro desejava meter ombros a alguma empresa, persuadido de que o temporizar transtorna muitas vezes os mais bem delineados planos. Demais, observava que a emulação demasiadamente forte nos exercícios militares podia converter-se em inveja. Por estas razões queria ele invadir quanto antes o território inimigo, certo de que os perigos comuns geram a afeição entre os soldados, que não olham com inveja para as armas mais elegantes, nem para seu desejo de glória, pelo contrário louvam-nos e abraçam-nos, só atendendo a que eles trabalham para o bem geral. Entendeu pôr em armas o exército, e formá-lo o melhor que pudesse, em ordem de batalha, e então convocou os miriarcas, quiliarcas, taxiarcas e logagos. Estes oficiais não entravam no número do exército. Quando iam receber ordens do general, ou fazer-lhe alguma participação, o exército não ficava sem chefe; era entretanto comandado pelos dodecadarcas e exadarcas.

Reunidos os ditos oficiais, Ciro foi passeando com eles, mostrando-lhes as boas disposições do exército, e indicando-lhes as forças que esperava de cada um dos aliados. Depois que lhes incutiu o desejo de tentar alguma empresa, ordenou que fossem expor a seus subordinados o que de sua boca tinham ouvido e diligenciassem acender neles a vontade e o ânimo de correr contra o inimigo, e também lhes ordenou que pela manhã aparecessem às portas do palácio de Ciaxares. Estas ordens foram prontamente executadas. Ao alvorecer do seguinte dia, achando-se no lugar determinado, Ciro entrou com eles no palácio e falou a Ciaxares neste teor:

— Sei que o que vou dizer já em outro tempo foi aprovado não menos por vós do que por nós; mas talvez vos pejeis falar na partida das tropas, sofrendo mal fornecer-lhes os mantimentos. Mas visto que guardais silêncio, falarei por nós e por vós. Estando nós prontos para romper as hostilidades, todos somos de parecer que, para bater o inimigo, não esperemos que ele entre em nossas terras, mas que quanto antes invadamos as suas. Durante a estada das tropas em nossas terras, havemos de danificá-las, mesmo contra vontade; pelo contrário, entrando nas dos inimigos, do melhor grado as devastaremos. Aqui tendes de fazer grandes despesas com a nossa sustentação, lá tiraremos o sustento de seus mesmos territórios. Se lá o perigo fosse maior do que aqui, claro é que devíamos escolher o lugar mais seguro. Advirtamos, porém, que os inimigos são os mesmos, ou os esperemos aqui, ou os vamos acometer em seus domínios; nós os mesmos somos, ou aguardemos sua invasão, ou os vamos buscar em suas próprias mansões. Nossas tropas encher-se-ão de coragem, vendo que de boa vontade vamos arrostar com os inimigos; e estes encher-se-ão de temor, ao ouvirem que, longe de ficarmos em casa cheios de susto, aguardando que venham assolar nosso país, vamos contrastar seu poder, apenas sentimos suas operações, e assolamos os territórios deles. Ora, se conseguirmos disseminar o terror entre os adversários e a confiança entre os nossos, que vantagem não será a nossa, e quão menor o perigo em comparação do inimigo? Meu tio, vós e todos, concordam em que o êxito de uma batalha está mais vinculado ao ânimo do que às forças físicas.

— Ciro e vós outros, persas, não imagineis que eu vos forneça de mau grado os mantimentos. Enquanto ao entrar nas terras da Assíria, esse foi sempre o partido que eu julguei mais vantajoso.

— Atenta a uniformidade de pareceres — tornou Ciro — preparemo-nos; e se os deuses aprovarem nossos desígnios, marchemos sem interpor dilação.

Ciro ordenou aos soldados que se preparassem, e fazendo sacrifícios a Júpiter soberano e às outras deidades, para que o protegessem, e invocando também o favor dos heróis da Média, obteve felizes presságios; e reunido ao exército nas fronteiras, notou que as aves agoureiras voavam com bons auspícios, e entrou no terreno da Assíria. Entrando nele, propiciou a Terra com libações e com sacrifícios, aplacou os deuses e heróis assírios. Feitas estas coisas, tornou a sacrificar a Júpiter pátrio, não desprezando nenhum dos outros deuses que ocorreram à sua memória.

Batalha entre os medos e os assírios — Os medos ficam vitoriosos

Dispostas assim as coisas, a infantaria marchou adiante, e acampou a pequena distância. A cavalaria fazia incursões, e colhia muitos e variados despojos. Levantaram depois o acampamento, e, providos de todo o necessário, devastavam os campos e esperavam os inimigos; e como se divulgasse que eles estavam a menos de dez dias de marcha, Ciro disse a Ciaxares:

— É tempo de acometer os inimigos, e não dar a eles nem aos nossos o menor indício de temor. Cumpre que eles se persuadam que não combatemos a nosso pesar.

Como também esta fosse a opinião de Ciaxares, o exército principiou a marchar em ordem de batalha. Ceavam ainda com luz do sol, de noite não acendiam fogo nos arraiais, e adiante deles acendiam fogueiras, para que, sem serem vistos, pudessem ver, se alguns inimigos os assaltavam. Com o fim de enganar os adversários, muitas vezes as acendiam atrás do acampamento, e desta forma, pensando que estavam adiante, os espias vinham cair em poder das guardas avançadas.

Já próximos os dois exércitos contrários, os assírios e seus aliados circunvalaram seu acampamento, como ainda hoje os bárbaros costumam fazer, o que lhes é fácil por sua numerosa multidão. Sabem eles que de noite confusa e dificultosamente pode mover-se a cavalaria, principalmente a sua. É trabalhoso estar a desatar os cavalos presos às manjedouras, enfreá-los, arreá-los e armar-se o cavaleiro e depois de tudo isto é inteiramente impossível cavalgar pelo campo. Tais são os motivos que induzem estes e os outros bárbaros a fortificar-se em seus arraiais e pensam que assim estão em segurança, e que podem a seu talante esquivar o conflito.

Achando-se os dois exércitos na distância de uma parasanga, os assírios acamparam em um lugar circunvalado e descoberto, e Ciro em um lugar escuso, atrás de umas aldeias e outeiros, persuadido de que os movimentos bélicos inesperados são os que mais intimidam os inimigos. Esta noite, postadas as guardas de ambos os exércitos, entregaram-se ao sono. No dia imediato o rei da Assíria, Creso e outros capitães, conservavam as tropas em seus alojamentos. Ciro e Ciaxares postaram as suas em ordem de batalha, para receber os inimigos no caso que avançassem. Notando, porém, que não saíam dos arraiais, nem pelejavam naquele dia, Ciaxares chamou Ciro e todos os oficiais, e lhes disse:

— Amigos, eu penso que formados como estamos, devemos marchar para os entrincheiramentos dos adversários, dando assim mostras de querermos entrar em ação. Se não saírem a repelir-nos, os nossos soldados encher-se-ão de confiança, e eles de temor, ao verem o desassombro dos nossos.

Ciro respondeu:

— Por todos os deuses, ó Ciaxares, não façamos isso. Os inimigos, vendo-se sem receio de perigo, não se amedrontarão com a nossa marcha, e quando retrocedermos sem nada fazer, verão um exército inferior ao seu, olharão para ele com desprezo, e amanhã vêm atacar-nos com ânimo mais decidido. Pelo contrário, sabendo eles que estamos aqui, sem nos terem visto, não seremos objeto de seu desprezo, seremos sim objeto de seus cuidados e de seus discursos. Deixai-os sair de seu acampamento, e então ao mesmo tempo mostremo-nos, acometamo-los, e aproveitemo-nos da oportunidade.

Aprovada esta maneira de raciocinar, cearam, postaram-se as guardas avançadas, acenderam-se as fogueiras e entregaram-se ao sono.

No outro dia pela manhã, Ciro com uma coroa na cabeça, acompanhado dos homotimos também coroados como lhes fora prescrito, celebrou um sacrifício, ao qual pôs termo com este discurso:

— Amigos, os deuses, segundo me parece e os adivinhos asseguram, nos prometem a vitória. Envergonhar-me-ia de vos indigitar em tal caso vossos deveres. Sei que os conheceis tão bem como eu, sendo eles constante objeto de vossas meditações, de sorte que estais no caso de poder ensinar os outros. Mas talvez não tenhais ainda meditado no que vou dizer, e portanto escutai-me. Aos soldados que há pouco militam debaixo de nossas bandeiras, e aos quais pretendemos fazer adquirir o valor dos soldados mais antigos, releva fazer-lhes conhecer quais as vistas de Ciaxares em nos sustentar, qual o fim de nossos exercícios, qual o de nossas exortações, e isto para que de bom grado entrem em emulação conosco. Lembrai-lhes depois, que este é o dia em que seu mérito vai ser posto a uma prova rigorosa. Não é para admirar que homens tarde instruídos careçam das advertências de outrem. Para quem as faz, além de ser lisonjeiro, é demonstração clara de seu consumado valor criar homens valorosos. Quem se satisfaz com o valor próprio e não cura do dos outros, só é valoroso em metade. Não sou eu quem lhes há de falar; a vós, que mais de perto os tratais, confio esta missão, para que eles vos sejam aderentes. Sabei que o aparecer-lhes com resolução é o meio de fazê-los também resolutos, com exemplos e não com palavras. Enfim, sem da cabeça tirar a coroa ide jantar, e, feitas as libações, tornai a vossos postos.

Retirando-se os homotimos, Ciro convocou os cerra-filas, e disse:

— Persas, ora aqui estais no lugar dos homotimos, e também estimados, vós, que, além da prudência da idade, tendes o valor dos mais intrépidos; e por isso ocupais um lugar não menos honroso que o dos oficiais da frente. Colocados no último lugar, com vossas exortações aumentais a coragem dos soldados valentes, e não consentis nas fraquezas dos covardes. Se aos outros importa a vitória, vossa idade e o peso de vossa armadura vo-la devem fazer estimar principalmente. Se os oficiais da frente vos exortarem com suas vozes a segui-los, obedecei; mas para em nada lhes dar vantagem, exortai-vos também a marchar velozes contra os inimigos. Enfim, ide jantar, e de coroa na cabeça voltai aos respectivos postos.

Enquanto Ciro se ocupava nestes misteres, os assírios, que já haviam jantado, saíram de seus arraiais respirando coragem, e se formaram em batalha. O rei, que os vinha comandando sobre um carro, recitou perante eles este discurso:

— Assírios, agora é a ocasião de dar provas do vosso denodo; é agora a ocasião de lutar pelas vossas vidas, pela terra que vos deu o berço, pelos lares em que vos criastes, por vossas mulheres e filhos, por tudo que no mundo tendes de mais caro. Se fordes vitoriosos, tudo isto ficará, como antes, em vosso poder; se fordes vencidos, tudo passará às mãos dos inimigos. Se desejais a vitória, é preciso que pelejeis impávidos. Fatuidade é querer a vitória e fugir do inimigo, apresentando-lhe o corpo sem olhos, sem armas, sem mãos. Fatuidade é fugir quem estima a vida, sabendo que os vencedores a conservam, e que fugindo se encontra mais facilmente a morte do que resistindo. Fatuidade é desejar tesouros e deixar-se vencer. Pois, quem ignora que os vencedores conservam seus haveres, e recebem os dos vencidos, e que estes perdem tudo que possuem, até a liberdade?

Entretanto recebeu Ciro da parte de Ciaxares mensageiros, que lhe disseram:

— É tempo de marchar contra os inimigos, que em pequeno número saíram das fortificações, e irão engrossando, enquanto marcharemos. Não aguardemos que avultem mais que os nossos, partamos contra eles enquanto julgamos fácil sua derrota.

— Ciaxares — respondeu Ciro — ainda que destruamos metade de seu exército, não se terão por vencidos, e dirão que com medo de seu grande número só atacamos uma pequena parte. Ser-nos-á preciso entrar em nova ação, onde talvez tomem mais cautelosas providências do que tomam agora, que se deixam acometer em o número que nos apraz.

Os mensageiros voltaram com esta resposta.

A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores. Ciro os interrogou, como era natural, no que dizia respeito aos contrários. Disseram que eles saíam do acampamento, que o rei os formava em batalha e fazia mui enérgicas exortações, segundo afirmava quem o ouvira falar.

— Ciro — disse Crisantas — se também exortardes vossas tropas, não lhes infundireis porventura nova coragem?

— Crisantas, não vos causem abalo as exortações do assírio. Um discurso, por mais elegante que seja, não pode no mesmo dia dar valor a quem o não tem; fazer bons arqueiros, bons lanceiros, bons cavaleiros, sem previamente saber manejar um arco, uma seta, um cavalo; dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exercício preliminar.

— Mas é já bastante concitar-lhes o ânimo.

— Porventura é possível que um discurso no mesmo dia em que é pronunciado, encha de pundonor o espírito dos ouvintes, os afaste da estrada do vício, os induza a arrostar por amor da glória os trabalhos e os perigos, e imprima este sentimento de maneira que eles prefiram morrer com as armas na mão a evitar a morte por meio da fuga? Não. Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coração humano, importa primeiro que tudo, fazer leis que assegurem aos valorosos uma existência honrosa e livre, aos covardes uma vida abjeta e cheia de misérias. Depois é preciso haver mestres, que com palavras e exemplos lhes façam ver que o valor e a glória são a origem das maiores prosperidades, a covardia e o opróbrio o germe da mais dura adversidade. Cumpre estar embebido nestas idéias para poder triunfar do temor dos inimigos. Se no mesmo ato de correr contra os inimigos, para entrar na luta, nesta ocasião em que muitos se esquecem do que aprenderam, pudesse um orador criar de repente soldados intrépidos, muito fácil seria aprender e ensinar a maior das virtudes. Enquanto a mim, nem sequer confiaria naqueles que se exercitaram debaixo das nossas vistas, se com vossos exemplos lhes não désseis a necessária instrução, e os não advertísseis de suas faltas. Eu, Crisantas, admirar-me-ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituído desta virtude, como se uma peça de música bem cantada tivesse a força de fazer músico um homem ignorante desta arte.

Enquanto assim discorria, Ciaxares expediu outro enviado a Ciro, dizendo que era desacertado estar temporizando, e não atacar o inimigo.

— Saiba Ciaxares — respondeu Ciro — que eles ainda não saíram dos seus alojamentos em número suficiente. Anuncia-lhe isto de maneira que todos ouçam. Contudo, em obséquio à sua vontade, vou pôr o exército em movimento.

Expedido o enviado, Ciro invocou a proteção dos deuses, e postou-se à frente do exército. Os soldados marchavam em ordem, porque tinham sido ensinados a guardar seus postos; com coragem, pela emulação que entre eles se dava, pela robustez de seus corpos, e pela presença de seus oficiais: a prudência os fazia marchar alegres. Lembravam-se eles de ter aprendido que é muito seguro e fácil combater de perto com os inimigos, mormente arqueiros, acontistas e cavaleiros.

Não tendo ainda chegado a tiro de seta, Ciro anunciou a senha, que eram estas palavras: “Júpiter auxiliar e condutor” e tendo ela corrido por todo o exército, principiou a cantar um hino em louvor dos Dióscoros, e todos religiosamente entoaram em alta voz. Acabado o hino, os homotimos marchavam alegres, olhando uns para os outros, chamando pelos nomes os que iam a seu lado e atrás e repetindo continuamente estas palavras:

— Vamos, amigos, vamos, camaradas intrépidos.

Os que eram assim exortados, clamavam a seus exortadores que os conduzissem com velocidade. Desta maneira viam-se reinar no exército de Ciro a coragem, o amor da glória, o vigor, a confiança, o ardor em mutuamente se exortarem, a prudência, a obediência, qualidades estas capazes de neutralizar todos os projetos dos inimigos.

Ao irem-se aproximando os persas, os assírios, que, andando em carros na vanguarda, costumavam travar a luta, subiram a seus carros e se foram chegando para o grosso do exército. Os arqueiros, acontistas e fundeiros, deram de muito longe uma descarga; os persas continuaram a avançar, e Ciro exclamou:

— Bravos camaradas, é agora a ocasião de dar provas de vosso denodo, e exortar os outros com tais exemplos.

A estas palavras, alguns, cheios de coragem e ansiando entrar na briga, deitaram a correr, e todo o exército os seguiu. Ciro, esquecendo-se de ir a passo, ia à frente, correndo e clamando:

— Quem me segue? Quem é o valoroso, que primeiro lançará em terra um adversário?

Estas palavras foram correndo de boca em boca, de maneira que todos diziam:

— Quem me segue? Quem é o valoroso?

E assim corriam para os inimigos. Estes, sem o esperar, fugiram para seus entrincheiramentos, a cuja entrada se atropelavam. Os persas, que vinham em seu alcance, fizeram grande matança, assim nestes como nos cavalos e homens que com seus carros haviam enchido o fosso com a precipitação da fuga. A cavalaria dos medos atacou a dos inimigos, pô-la em fuga, perseguiu-a, e lhe fez grande estrago de homens e cavalos. Os assírios que se achavam postados sobre a crista do fosso, à vista deste terrível espetáculo fugiram cheios de medo.

As mulheres, ao contemplarem a fuga já dentro dos arraiais, corriam, gritando horrorizadas, umas com os filhos nos braços, outras ferindo-se, rasgando os vestidos, e implorando aos que encontravam que não as abandonassem, que defendessem seus filhos, a elas e a si. A este tempo, o rei com suas tropas de mais confiança batalhava pessoalmente sobre os lugares mais eminentes à entrada do acampamento, e animava os outros. Vendo o que se passava, Ciro, receoso de ser suplantado pela multidão dos inimigos se tentasse forçar a entrada, ordenou que os seus se desviassem do alcance das setas. Então se viu a boa instrução dos homotimos na pontualidade com que obedeceram e com que fizeram executar as ordens do general. Já fora do alcance das setas, cada um ocupou o lugar que lhe competia, com mais ordem que um coro de músicos.

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