Faça login Esqueci minha senha
Email ou senha incorretos.
Ou cadastre-se

É grátis e rápido!

Quero me cadastrar
Esqueceu sua senha?

Preencha o campo abaixo com seu email para receber uma mensagem para redefinir sua senha.

Cadastro

Fontes primárias

Fontes primárias de diversos períodos históricos. Sempre que encontrarmos alguma fonte iremos disponibilizá-la aqui, para que todos os interessados por História possam ter o acesso facilitado a esses documentos (essa seção se focará mais nas fontes escritas).

Ciropédia ou A educação de Ciro, de Xenofonte - Livro 7

Fontes primárias > Antiguidade Geral  |  1,1 mil visualizações  |  12050 palavras  |  22,5 páginas  |  0 comentário(s)

Representação moderna de Ciro o Grande.

Ciropédia (ou A educação de Ciro) é uma biografia de Ciro, o Grande (580-530 a.C.), escrita pelo ateniense Xenofonte. A obra tem um caráter parcialmente ficcional e seu uso como fonte histórica tem sido repetidamente discutida. Xenofonte viveu entre 430-355 a.C., cerca de 100 depois da morte de Ciro. Apenas o primeiro dos seus 8 livros é, estritamente falando, a Ciropédia. O primeiro livro é dedicado à origem e educação de Ciro e à sua estada na corte do seu avô materno, o rei Medo Astíages. Os livros 2 a 7 cobrem a vida de Ciro II enquanto vassalo dos Medos. O livro 8 é um ensaio sobre o modo de Ciro governar e sobre as suas visões da monarquia.

Disposições para a batalha pelejada entre Ciro e Creso — Batalha entre estes dois príncipes — Vitória de Ciro — Tomada de Sardes — Diálogo entre Ciro e Creso — Morte trágica da princesa Panteia — Expedição à Cária — Expedição à Frígia — Tomada de Babilônia — Ciro pretende tornar-se menos acessível aos seus — Ciro fortifica Babilônia.

Disposições para a batalha pelejada entre Ciro e Creso

Dirigidas as preces aos deuses, os oficiais foram ocupar seus respectivos postos. Ainda Ciro e seus satélites se entretinham nas cerimônias religiosas, quando lhes trouxeram iguarias e licores. Ciro, sem se tirar da posição em que se achava, comeu depois de fazer oblações aos deuses, e repartiu pelos que mais precisavam; e feitas as competentes libações e invocações, bebeu, no que todos o imitaram. Depois pediu a Júpiter pátrio que fosse seu condutor e seu companheiro, montou a cavalo e passou ordens aos que ali estavam. Todos os satélites de Ciro tinham as mesmas armas que ele, a saber, capas de púrpura, lorigas e capacetes de bronze, penachos brancos, espadas e arremessões de pau de cerejeira. A armadura da testa, do peito e das ilhargas dos cavalos, era de bronze, assim como as das escarcelas dos cavaleiros. As armas de Ciro não diferiam das dos outros, que eram douradas, senão por brilharem como se fossem espelhos. Estava já montado e olhava por onde marcharia, quando à sua direita estalou um trovão. Ciro exclamou:

— Grande Júpiter, seguir-vos-emos.

E principiou a marchar, levando à direita o hiparca Crisantas com a cavalaria e à esquerda Arsamas com a infantaria; e recomendou que olhassem para a bandeira, e a seguissem a passo igual. A bandeira era uma águia dourada, suspensa na ponta de uma grande lança; e tal é ainda hoje a bandeira do rei da Pérsia.

Três vezes mandou Ciro fazer alto, antes de divisar os inimigos, que foram vistos depois de uma marcha de vinte estádios. À vista um do outro os dois exércitos, Creso notou que a frente de sua hoste excedia muito de uma e de outra parte a da contrária, e mandou fazer alto para lhe dar a forma de um grande arco de círculo, a fim de poder combater os persas por todos os lados. Ciro nada agiu em conseqüência dos movimentos dos inimigos, e continuou a marchar na mesma ordem; mas, observando que estendia muito a curvatura por um e outro flanco de seu exército, disse para Crisantas:

— Notais a que ponto chegam as alas do inimigo?

— Muito bem noto — respondeu Crisantas — e muito me admiro, porque parece que eles ficam muito afastados do grosso do exército.

— É verdade, e também do nosso.

— Mas para que será bom isso?

— É porque temem nossa agressão, achando-se as alas perto de nós, e distantes do grosso do exército.

— Mas como poderão eles socorrer-se reciprocamente estando tão desviados uns dos outros?

— É claro que quando os inimigos tiverem com suas alas coberto os nossos flancos, nos hão de atacar por todos os lados.

— E julgais útil o estratagema?

— Sim, a atenderem somente à aparência do nosso exército; aliás, é ele mais desvantajoso do que se atacassem de frente. Finalmente, Arsamas, conduzi a infantaria a passo pouco acelerado, no que seguireis meu exemplo; e vós, Crisantas, marchai no mesmo passo à frente da cavalaria. Eu vou ocupar o lugar onde creio ser mais conveniente travar a batalha, e irei observando o estado de nossas tropas; e quando for tempo de entrar na luta, entoarei um hino, e imitai-me. Quando viermos a braços, sereis depressa informados disso, porque haverá grande tumulto, e então romperá logo Abradatas com os carros através dos inimigos. Ele vai ser para isso intimado. Vós, segui imediatamente Abradatas, para tirardes partido da desordem por ele causada nas fileiras contrárias. O mais que puder, aparecerei perseguindo os fugitivos, se os deuses assim o têm determinado.

Ditas estas palavras, Ciro entregou a senha, que era Júpiter salvador e guia, e partiu. Caminhando por entre os carros e os couraceiros, olhava para os soldados, e a uns dizia:

— Valentes, quão agradável me é a contemplação de vossos semblantes!

A outros:

— Valentes, hoje a batalha não só nos há de trazer os frutos de uma vitória, mas também a continuação do gozo da que já obtivemos, e uma felicidade completa!

A outros:

— Valentes, não temos motivos para queixar-nos dos deuses, que nos proporcionam os meios de possuir grandes bens; mas dai provas de coragem!

A outros:

— Valentes, para que melhor ceia do que esta podíamos nós fazer mútuos convites? Agora os bravos têm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas, e boas!

A outros:

— Valentes, bem sabeis que perseguir, ferir, matar, gozar, ouvir elogios, ficar livre, dominar, tais são os prêmios do vencedor; são contrários os do vencido! Todo aquele que ama sua honra, combata ao pé de mim, porque eu não admitirei que se pratique um só ato de covardia ou de infâmia!

Enfim, aos soldados que já tinham estado na primeira ação, dizia:

— A vós, que tenho eu que dizer, valentes? Já sabeis o que acontece aos bravos e aos covardes em um dia de batalha.

Continuando sua digressão, Ciro chegou ao lugar onde Abradatas estava e parou. Abradatas entregou as rédeas ao auriga e encaminhou-se a Ciro; e os capitães de carros, que se achavam próximo, o imitaram. Então disse Ciro:

— Abradatas, Deus ouviu vossos votos, concedendo que vós e vossos soldados ocupásseis a vanguarda de nosso exército. Lembrai-vos que quando for ocasião de pelejar, os persas, com os olhos postos em vós, não vos hão de deixar sós na batalha.

Abradatas respondeu:

— Ciro, da nossa parte tudo irá bem. O que me causa alguma impressão são os flancos, porque vejo estenderem-se as alas do exército inimigo, bem guarnecido de carros e de toda a casta de soldados; e nós só alguns carros temos para opor-lhes: de maneira que se não fosse a sorte que me destina este lugar, envergonhar-me-ia de ocupá-lo. Tal é a seguridade em que me acho.

Ciro replicou:

— Se da vossa parte tudo vai bem, sossegai a respeito dos flancos; porque eu saberei desembaraçar-me das alas dos adversários. Peço-vos que não traveis a luta antes de verdes em fuga aqueles mesmos que vós agora temeis.

Estando próxima a ocasião de batalhar, tão jactanciosamente falava Ciro, que aliás nunca manifestava a menor sombra de jactância!

— Quando os virdes em fuga — continuou ele — ficai certo que me acho ao pé de vós, e então avançai contra os inimigos, os quais encontrareis cheios de medo, e vossos soldados de valor. Mas enquanto tendes vagar, passai uma completa revista a vossos carros, e animai os soldados ao combate, com esperanças e com a vivacidade de vosso semblante. Para quererem parecer valorosos, basta difundir entre eles a emulação; depois todos confessarão nada haver mais útil do que o valor.

Abradatas subiu ao carro, e punha por obra o que Ciro lhe acabava de dizer.

Ciro partiu daqui e quando chegou ao flanco esquerdo, onde se achava Histaspes com metade da cavalaria persa, o chamou pelo nome, e disse:

— Agora vede a precisão de vossa celeridade, porque se matarmos primeiramente todos os inimigos, ninguém morrerá da nossa parte.

Histaspes respondeu, sorrindo-se:

— Nos encarregamo-nos dos que nos ficam defronte; tratai de pôr em movimento os flancos do nosso exército.

Ciro redargüiu:

— Eu vou já a isso, e lembrai-vos que quem recebe de Deus os primeiros sinais da vitória, não depõe as armas enquanto existem inimigos que debelar.

Ditas estas palavras, dirigiu-se para outro lado, e avistando o comandante dos carros aqui estanciados, lhe disse:

— Eu venho trazer-vos auxílio. Quando perceberdes que andamos a braços no extremo das alas, tentai romper através dos adversários, porque de fora ficais mais seguros do que dentro, onde podeis ser encarcerados.

Chegando atrás das bagagens, ordenou a Artagersas e a Farnucho que se conservassem naquela posição com mil infantes e outros tantos cavalos.

— Quando virdes — acrescentou Ciro — que eu ataquei a ala direita, atacai a esquerda, que é a parte mais fraca do exército, e conservai-vos sempre em falange, para nada perderdes de vossas forças. Os cavalos dos inimigos estão colocados no extremo da ala; contra eles fazei avançar os camelos; e deveis estar certos que antes da luta haveis de rir à custa dos contrários.

Feitas estas disposições, Ciro dirigiu-se ao flanco direito.

Creso, observando o corpo do exército, onde ele estava, mais perto do inimigo do que as alas, que ainda continuavam a alongar-se, fez sinal a estas para não se estenderem mais e voltarem neste lugar. Já todos com os rostos voltados para os contrários, deu sinal para avançar.

Batalha entre estes dois príncipes — Vitória de Ciro

Assim três exércitos iam atacar o de Ciro, um pela frente, dois pelos lados, o que incutia grande medo. À maneira de um pequeno tijolo encaixado em outro maior, o exército de Ciro estava, menos pela retaguarda, cercado por todas as partes pela cavalaria inimiga, pelos hoplitas, peltoferos, arqueiros e carros. Contudo, às ordens de Ciro todos voltaram o rosto para os adversários. Profundo silêncio guardavam as duas hostes, incertas sobre o êxito da batalha, e quando lhe pareceu oportuno Ciro principiou o hino, que todo o exército entoou; e logo depois invocou em altas vozes a proteção de Marte Eniálio. Ciro rompe à frente da cavalaria, apanha os inimigos de lado, e trava-se com eles em um momento. A infantaria o segue logo em boa ordem, e, lançando-se por uma e por outra parte, peleja com grande superioridade, como tropa ordenada em falange combatendo contra uma ala. Os inimigos abalaram em desatada fuga.

Vendo já Ciro em movimento, Artagersas avança contra a ala esquerda, fazendo ir adiante os camelos, como Ciro lhe havia prescrito. Os cavalos não suportaram sua presença mesmo de longe, e fugiram enfurecidos, saltando, e atropelando-se uns aos outros. Tal é o efeito que produz nos cavalos a vista dos camelos. Artagersas marcha à frente de sua tropa em boa ordem contra os assírios em confusão, mandando avançar seus carros pela direita e pela esquerda. Os que querem evitar o perigo dos carros, morrem às mãos dos soldados, à testa dos quais ia Artagersas; os que querem evitar o encontro destes, são aprisionados pelos carros.

Abradatas, sem esperar mais tempo, disse com voz sonora:

— Amigos, acompanhai-me.

E picou os cavalos, deixando-os todos ensangüentados. Os outros condutores de carros arremessam-se com igual entusiasmo. Os dos assírios fogem, e alguns já sem os respectivos combatentes. Abradatas rompe através destes mesmos até à falange dos egípcios, acompanhado dos que estavam mais perto. Sempre se teve por coisa bem averiguada que nada iguala o denodo de uma falange composta de amigos: foi o que se verificou nesta ocasião. Os companheiros de Abradatas eram seus familiares e seus comensais. Os outros aurigas, assim que viram os egípcios em esquadrão cerrado, voltaram os carros que iam fugindo, e os foram perseguindo.

Os egípcios, que por causa de suas densas fileiras não podiam afastar-se para abrir caminho à passagem dos carros de Abradatas, eram uns lançados por terra, outros esmagados; e o mesmo acontecia às armas, aos cavalos e às rodas: as foices cortavam tudo que apanhavam, armas e corpos. Nesta indizível confusão, os carros em que iam Abradatas e seus companheiros foram de encontro aos montões de cadáveres e de outros objetos, e tremendo com força lançaram à terra os combatentes, os quais, apesar das vivas demonstrações de valor, foram mortos. Os persas, que os acompanhavam, tiraram ainda grande partido da desordem que reinava entre os egípcios, e fizeram grande carnificina; mas os que estavam intactos, que eram ainda em grande número, avançaram contra os persas; e então se brandiram fortemente as lanças, os arremessões e as espadas dos dois partidos; mas o grande número dos egípcios e as armas de que usavam deram a estes a superioridade. As lanças, semelhantes às de que ainda hoje usam, eram fortes e compridas; seus escudos cobrem-lhes o corpo muito melhor do que as couraças e os escudos de vime, e suspensos dos ombros servem-lhes para rechaçar o inimigo. Os persas com escudos de vime não puderam sustentar a impetuosidade de tais adversários, e, largando terreno palmo a palmo, davam e recebiam feridas, até que ficaram abrigados pelas máquinas. Então das torres foi despedido um chuveiro de setas sobre os egípcios, e os persas da retaguarda não consentiram que os arqueiros e acontistas continuassem a recuar; mas alçando as espadas, os obrigaram a fazer seu dever. Então foi horrorosa a matança, medonho o estrépito das armas de todas as espécies, grandíssimo o alarido dos pelejadores, uns chamando por seus camaradas, outros fazendo recíprocas exortações, outros invocando os deuses.

Neste comenos aparece Ciro perseguindo os que se apresentavam diante dele, e vendo que os persas largavam terreno, sentiu certo abalo; e advertindo que a maneira mais fácil de obstar ao progresso dos adversários era cortar-lhes a retaguarda, assim o resolveu. Manda que o sigam, cai sobre os contrários desprevenidos, e faz grande carniceria. Foi então que os egípcios gritaram que tinham inimigos pela retaguarda, e já bastante feridos assim mesmo lhes fizeram face. Infantaria e cavalaria combatiam promiscuamente. Um egípcio, que ficara atropelado debaixo do cavalo de Ciro, feriu-lhe o ventre com a espada; e o bruto, sentindo-se ferido, agitou-se e sacudiu o cavaleiro. Então se viu quanto vale ser um capitão amado por seus soldados. Um clamor geral se levantou, e todos arremetem com igual impetuosidade, repelem e são repelidos, ferem e são feridos. Um dos satélites de Ciro desce de seu cavalo e faz subir seu príncipe. Já montado, viu que a derrota lavrava por toda parte entre os egípcios. A este tempo era chegado Histaspes com a cavalaria dos persas, e também Crisantas. Ciro não consentiu que eles atacassem a falange dos egípcios; mas ordenou-lhes que a incomodassem de longe com setas e arremessões.

Voltando ao lugar onde estavam as máquinas, Ciro subiu a uma das torres, de onde quis observar se ainda alguma companhia de inimigos se empenhava na luta, e viu o campo coalhado de cavalos, homens e carros, soldadesca inimiga vencida e fugindo, soldadesca sua vitoriosa e perseguindo. Só os egípcios não largavam terreno; os quais, falidos de recursos, formaram um círculo, e cobertos com seus escudos, só as armas se lhes viam. Assim se conservavam expostos a todas as hostilidades, sem fazer o menor movimento. Ciro, admirando tanta coragem, e sentindo sua morte, mandou cessar a luta.

Ciro expediu um arauto, que perguntou aos egípcios se queriam antes morrer por causa da traição dos seus aliados do que salvarem a vida, conservando a fama de valorosos. Os egípcios responderam:

— Como é possível que salvemos a vida e conservemos a fama de valorosos?

— Porque fostes os únicos — tornou Ciro — que vimos resistir até ao último extremo.

— Sob que condições nos é a vida garantida?

— Não atraiçoardes os aliados, entregar-nos as armas, e mostrar-vos amigos dos que vos quiseram poupar a vida, estando na sua mão fazer-vos morrer.

— Se assim fizermos, que destino nos quereis dar?

— Quero que entre nós se estabeleça um mútuo comércio de bons serviços.

— Que bons serviços hão de ser?

— Dar-vos-ei maior soldo do que venceis agora, enquanto durar a guerra. Vindo a paz, aos que quiserem ficar em meu país darei terras, cidades, mulheres e escravos.

Ao ouvirem estas propostas, os egípcios pediram que os eximissem de dirigir suas armas contra Creso, por ser o único dos aliados de quem não tinham razão de queixa. O pacto foi celebrado. Os descendentes dos egípcios que então ficaram vivendo nestas regiões, ainda hoje se conservavam fiéis ao rei. Ciro deu-lhes para sua morada cidades na alta Ásia, que ainda hoje se chamam cidades dos egípcios, e perto do mar as cidades Cilene e Cime, ainda hoje habitadas por egípcios. Celebrado o pacto, o exército de Ciro partiu mesmo de noite, e foi acampar em Timbrara.

Dos inimigos, foram os egípcios que mais célebres se tornaram nesta batalha. Do exército de Ciro foi a cavalaria persa que mais glória alcançou; de maneira que ainda hoje está em moda a armadura então por Ciro inventada. Distinguiram-se os carros falcatos, de sorte que também ainda hoje usam deles os reis da Pérsia. Enquanto aos camelos, só serviram para aterrar os cavalos, não fizeram nem receberam nenhum estrago, porque os cavalos não se aproximavam. Assim, não obstante parecer que foram úteis, hoje nenhum guerreiro gasta tempo em os criar para os acostumar aos exercícios bélicos. Outra vez voltaram a fazer seu antigo serviço andando nas bagagens.

Tomada de Sardes — Diálogo entre Ciro e Creso

As tropas de Ciro cearam, e postadas as precisas sentinelas, entregaram-se ao repouso. Creso fugiu incontinenti para Sardes com seu exército, e os exércitos das outras nações puseram-se durante a noite em caminho para suas pátrias com a maior velocidade. Ao clarear o dia, Ciro dirigiu-se logo sobre Sardes, e chegado que foi aos muros desta cidade, dispôs as máquinas e as escadas como para um assalto; e na noite imediata fez subir pela parte mais escarpada da muralha alguns caldeus e persas, guiados por um persa que fora escravo de um dos guardas da cidadela e tinha aprendido o caminho daí para o rio.

Espalhada a notícia da tomada da cidadela, todos os lídios que guarneciam as muralhas fugiram para onde puderam. Ao alvorecer da manhã Ciro entrou na cidade, e ordenou que nenhum soldado abandonasse seu posto. Creso, encerrado no palácio, chamava Ciro em altas vozes. Ciro deixou uma guarda no palácio de Creso, dirigindo-se à cidadela, notou que a parte da guarnição que se compunham de persas estava exercendo as suas funções, e dos caldeus viu somente as armas. Eles tinham ido saquear as habitações. Ciro chamou os capitães dos caldeus, e falou nestes termos:

— Separai-vos desde já de meu exército. Eu não consentirei que tenham maior quinhão os soldados que faltam aos seus deveres. Sabei que eu tinha determinado fazer-vos os mais ricos de todos os caldeus, a vós que me tendes acompanhado nesta expedição. Agora, não vos cause admiração se fordes encontrados em vossa retirada por inimigos superiores em forças.

Ao ouvirem estas palavras, os caldeus ficaram possuídos de susto, e pediram a Ciro que reprimisse sua cólera, que eles lhe entregavam tudo que haviam saqueado.

— Eu não preciso de nada disso — respondeu Ciro. Se quereis acalmar minha cólera, entregai tudo que saqueastes aos soldados que não saíram da cidadela; porque tudo irá bem se todo o exército souber que os soldados que guardam seus postos são os que têm maior recompensa.

Assim foi executado. Ciro assentou o campo na parte da cidade que julgou mais oportuna para isso, e mandou que jantassem sem largar as armas.

Depois disto, Ciro mandou vir Creso à sua presença. Creso, assim que o viu, exclamou:

— Eu vos saúdo, senhor. Tal é o nome que a fortuna quis que daqui em diante vós tivésseis e eu vos aplicasse.

— Eu também vos saúdo, Creso — disse Ciro — visto que ambos somos homens. Querer-me-eis dar um conselho?

— Oxalá — tornou Creso — que eu possa ser-vos útil; isso seria trabalhar também para a minha utilidade.

— Ouvi, pois — redargüiu Ciro. — Meus soldados têm andado expostos às fadigas e aos perigos, e agora que se vêem de posse da cidade mais rica da Ásia, excetuando Babilônia, é de justiça que sejam contemplados. Sei que não poderei contar por muito tempo com sua obediência se eles não virem o fruto de seus trabalhos. Não quero entregar a cidade à pilhagem, porque ficaria destruída, e neste caso são os maus os que mais aproveitam.

Ouvindo isto, Creso disse:

— Consenti que eu participe a alguns dos aliados de minha seleção que eu alcancei de vós não haver saque, e não lhes serem tirados os filhos e as esposas; e eu prometo que com a melhor vontade os lídios, homens e mulheres, virão oferecer-vos tudo que há de precioso em Sardes; e para o ano vereis esta cidade outra vez abundando em riquezas; mas se a entregásseis ao saque, também pereceriam as artes, fonte de riquezas. A vós, depois de verdes as preciosidades que vos oferecem, fica-vos o arbítrio de pensardes acerca da pilhagem. Primeiro que tudo mandai buscar os meus tesouros àqueles em cujas mãos os depositei.

Aprovados os conselhos de Creso, Ciro disse-lhe:

— Declarai-me para que serviram as respostas do oráculo de Delfos; porque me consta que sempre venerastes muito a Apolo e seguistes sempre os seus preceitos.

— Oxalá que assim fora — respondeu Creso; mas eu desde o princípio ofendi o Deus.

— Como foi isso? — redargüiu Ciro; estou admirado.

Creso respondeu neste teor:

— Andando eu para consultar Apolo sobre o que devia fazer, primeiramente quis saber se podia confiar-me em seus oráculos. Então aconteceu-me com o Deus o que costuma acontecer com os homens honrados, os quais não consagram sua amizade a quem não têm neles confiança. Conhecendo meu errado comportamento, e achando-me muito longe de Delfos, mandei perguntar-lhe se eu teria filhos. Ao princípio não me deu resposta. Então enviei-lhe muitas dádivas de ouro e prata, sacrifiquei-lhe muitas vítimas, e assim aplacado respondeu-me que eu havia de ter filhos, mas nenhum me deu alegria: um é mudo, outro, dotado de egrégias qualidades, morreu na flor dos anos. Acabrunhado pela sorte desastrosa de meus filhos, outra vez mandei a Delfos perguntar o que devia fazer para viver feliz os dias que me restavam de vida. A resposta foi: — Conhecei-vos, Creso, e vivereis feliz. — Alegrei-me com este vaticínio, por imaginar que desejava minha ventura quem a fazia depender de coisa tão fácil. Na verdade eu ponderava que conhecer os outros seria ou não possível; mas que conhecer-se a si seria sempre facílimo. Desde este tempo, enquanto vivi em paz, a morte de meu filho era o único motivo que tinha para me queixar da fortuna; mas depois que o rei da Assíria me persuadiu a militar contra vós, a todos os perigos me expus; mas de todos me livrei, porque tanto que me reconheci incapaz de vos fazer guerra, quis Deus que eu e minhas tropas nos retirássemos incólumes. Agora, porém, enfatuado com minhas riquezas, com os empenhes dos que me queriam eleger para seu chefe, com os presentes que continuamente me enviavam, com as lisonjas dos que me diziam que se eu quisesse ser general todos me obedeceriam, e eu viria a ser o maior dos mortais; com tudo isto enfatuado, quando todas as nações vizinhas me nomearam general-chefe da expedição, aceitei o generalato, crendo que desta maneira tocava o apogeu da glória. Então me conheci; porque julgava ser capaz de vos fazer guerra, sendo vós descendente dos deuses, estirpe de sangue real, e cultivador das virtudes desde os primeiros anos, e tendo eu por primeiro ascendente real um homem que, segundo ouço dizer, era escravo quando subiu ao trono. Por desconhecer estas coisas sou com razão castigado. Mas agora, Ciro, que me conheço, crês que Apolo falou verdade quando disse que eu havia de ser feliz quando me conhecesse? Faço-vos esta pergunta porque me parece que podeis responder-me oportunamente.

Ciro respondeu:

— Sou eu, Creso, quem vos pede um conselho a este respeito. Pensando em vossa felicidade pretérita, tenho compaixão de vós, e vos dou já a posse e o gozo de vossa esposa, de vossas filhas (porque sei que as tendes) de vossos amigos, de vossos domésticos, e de vossa costumada mesa. Só vos proíbo os combates e as guerras.

— Por Júpiter — exclamou Creso — não busqueis outra resposta acerca de minha felicidade. O gozo do que vós acabais de mencionar me fará passar a vida que em geral se diz ser a mais venturosa, e que segundo penso o é efetivamente.

Ciro perguntou:

— Mas quem há que desfrute essa vida venturosa?

Creso respondeu:

— Minha mulher, que desfruta como eu todos os bens e todas as delícias, mas sem participar dos cuidados da guerra e das pelejas. E visto que procurais para mim a ventura que eu procurava para aquela que eu mais estimava no mundo, parece-me que Apolo é credor de maiores dádivas.

Ciro admirava a serenidade de espírito que Creso exprimia em suas palavras. E daqui em diante sempre o trouxe consigo em todas as suas expedições, ou porque julgasse útil sua companhia, ou para se livrar das inquietações que ele podia suscitar-lhe.

Morte trágica da princesa Panteia

Depois disto entregaram-se ao sono. No seguinte dia, Ciro convocou seus amigos e os capitães de exército; a uns ordenou que recebessem os tesouros de Creso, e a outros que desses tesouros primeiramente tirassem para os deuses a parte prescrita pelos magos; e encaixotado o resto, o pusessem sobre carros, e distribuindo estes à sorte, os conduzissem por onde a marcha era dirigida, para ter nas ocasiões com que premiar os beneméritos. Estas ordens foram executadas.

Ciro chamou alguns de seus satélites, que presentes se achavam, e fez esta pergunta:

— Algum de vós viu Abradatas? Causa-me admiração que ele, que amiúde nos freqüentava, agora não apareça.

— Senhor — respondeu um — Abradatas já não existe, morreu no campo de batalha quando arremessava seu carro contra os egípcios. Os outros, excetuando os companheiros de Abradatas, voltaram costas, segundo se conta, assim que ouviram os esquadrões egípcios. Corre a notícia que sua mulher pusera o cadáver sobre o carro em que costumava andar, e se transportara às margens do Pactolo, e enquanto seus eunucos e criados estão abrindo em um alto uma cova para enterrá-lo, ela, sentada no chão, sustenta sobre os joelhos a cabeça do cadáver, e o enfeita com seus próprios ornatos.

Ao ouvir estas notícias Ciro bateu com a mão sobre a coxa, e montando a cavalo; acompanhado de mil cavaleiros, encaminhou-se ao lugar onde se passava tão triste cena. Recomendou a Gadatas e Gobrias que o seguissem com as decorações fúnebres que pudessem alcançar, para amortalhar um amigo leal e valoroso, e aos que tinham ali manadas de bois, cavalos, ou rebanhos de qualquer casta de gado, as levassem ao lugar onde soubessem que ele estava, para sacrificar aos manes de Abradatas.

Assim que viu a princesa sentada no chão e o defunto estendido, Ciro derramou lágrimas, e exclamou:

— Ó alma boa e fiel, assim te separaste de nós.

E pegando na mão do cadáver, esta se desuniu ao corpo. Um egípcio a tinha mutilado com sua espada.

Isto exacerbou a aflição de Ciro. Panteia levantava gritos de dor, e pegando na amputada mão, a tornou a unir ao corpo, e disse:

— Todas as partes do cadáver se acham neste mesmo estado. Mas para que o contemplais! Certamente eu tenho a culpa de lhe ter acontecido isto; mas talvez vós não sejais menos culpado. Eu, louca, incessantemente lhe aconselhava que trabalhasse por se tornar credor de vossa amizade, e ele não curava de outra coisa mais do que prestar-vos eminentes serviços. Morreu, é verdade, sem nota de infâmia, e eu, que lhe dei a morte com minhas exortações, ainda estou sentada com vida.

Ciro, que vertia lágrimas em silêncio, levantou então a voz, e exclamou:

— Panteia, vosso marido teve um fim glorioso, morreu nos braços da vitória. Vesti-o com estas lúgubres decorações. (Gobrias e Gadatas já estavam presentes). Todas as honras lhe serão tributadas; ser-lhe-á erguido um mausoléu digno de vós e ser-lhe-ão imoladas as vítimas que convém a um homem virtuoso. Vós não ficareis solitária, vossa sabedoria e virtude me obrigam a honrar-vos em tudo, e vos farei conduzir para onde quiserdes. Não tendes mais que declarar para onde quereis ser transportada.

— Não desconfieis — respondeu Panteia — que eu vos não indique o lugar para onde quero ser guiada.

Ciro retirou-se, lamentando a sorte de Panteia, viúva de tal varão, e a sorte deste varão, condenado a não ver mais tal esposa. Panteia ordenou aos eunucos que estivessem ausentes, enquanto chorava com desafogo; e à sua ama disse que se deixasse estar e lhe ordenou que depois de sua morte a envolvesse a ela e a seu esposo na mesma mortalha. A ama fez diligência por dissuadi-la de seu intento; mas como não pudesse consegui-lo, e a visse indignada, sentou-se chorando. Panteia puxa por um punhal, com que há muito tempo andava prevenida, e se atravessa com ele, firmando a cabeça sobre o peito do cadáver de seu marido. Assim acabou os dias a bela Panteia. A ama arrancou gritos de aflição, e amortalhou ambos, como lhe fora ordenado.

Informado do que tinha sucedido, Ciro consternado corre a ver se ainda podia acudir. Os eunucos, que eram três, suicidaram-se no mesmo lugar para onde Panteia os tinha mandado, apenas foram informados de sua morte. Conta-se que ainda hoje existem os túmulos levantados aos dois cônjuges e aos eunucos. No alto de uma coluna estão escritos em caracteres sírios os nomes dos dois esposos e mais abaixo estão três colunas com esta inscrição: “Dos eunucos”. Ao aproximar-se, Ciro admirou o comportamento de Panteia, e retrocedeu possuído de tristeza. Depois, solenizou seus funerais, e mandou, segundo dizem, inaugurar um magnífico mausoléu.

Expedição à Cária — Expedição à Frígia

Na Cária, país coberto de praças fortes, houve por este tempo uma revolução e ambos os partidos pediram socorro a Ciro. Ciro, que persistia em Sardes, entendendo na construção de máquinas e arietes para derribar os muros dos que não quisessem obedecer, enviou à Cária com um exército Adúsio, homem não minguado de prudência nem de coragem, e muito jovial. Os cilícios e os cíprios mui prontamente se uniram a esta expedição. Por este motivo não foram governados por sátrapas persas, mas regidos por príncipes de sua nação. Somente pagavam um tributo, e forneciam tropas, quando eram precisas.

Adúsio chegou à Cária à testa do exército, e logo se lhe apresentaram enviados de ambas as parcialidades, prontificando-se a recebê-lo em suas cidades com a condição de hostilizar os contrários. Adúsio procedia do mesmo modo com as duas facções: a cada uma dizia que tinha mais justiça que a contrária e que era mister ocultar-lhe estas relações de amizade, que com ela mantinha, para poder apanhá-la desprevenida. Pedia que se celebrasse um juramento recíproco e sincero, pelo qual os cários afirmassem recebê-lo em seus muros para bem de Ciro e dos persas, e ele entrasse aí para bem dos que o recebessem. Assinados estes artigos por Adúsio e pelos dois partidos, mas nenhum destes sabendo o que seus contrários praticavam, o general persa entrou nas praças e nelas se estabeleceu.

Assim que amanheceu, sentado no meio do exército, convocou os chefes de ambas as facções; os quais, olhando uns para os outros, se agastavam pensando ter sido iludidos. Adúsio falou-lhes nestes termos:

— Eu jurei que havia de entrar em vossas cidades somente para benefício dos que me recebessem. Neste pressuposto, se eu hostilizasse a qualquer dos partidos, creio que minha entrada seria em prejuízo dos cários. Mas se eu vos der a paz, e a ambos conceder que cultivem a terra em segurança, julgo ter vindo aqui para vosso bem. De hoje em diante é preciso que haja entre vós um comércio recíproco de amizade: lavrai o campo sem terror e ligai-vos por vínculos de parentesco. O que não concorrer para a realização destes princípios terá por inimigo a Ciro e a nós.

Então abriram-se as portas das cidades; as estradas viam-se coalhadas de viandantes, que iam dar os recíprocos parabéns, os campos viam-se cobertos de colonos, faziam festas em comum, tudo respirava paz e alegria. Entretanto chegaram enviados de Ciro, que perguntavam se havia necessidade de tropas e de máquinas. Adúsio respondeu que o exército de seu comando já podia ser empregado em outra expedição; e pôs-se em marcha, guarnecidas as praças fortes. Os cários pediram-lhe que ficasse, e como ele não anuísse, mandaram pedir a Ciro que o nomeasse sátrapa daquela província.

Durante estes acontecimentos, Ciro tinha enviado Histaspes com um exército à Frígia do Helesponto; e à chegada de Adúsio, ordenou a este general que se fosse unir com Histaspes, para que mais depressa os inimigos se rendessem com a notícia da chegada de outro exército. Os gregos do litoral obtiveram à força de dádivas não receber tropas bárbaras em suas cidades, e somente pagaram um tributo, e forneciam tropas, quando Ciro mandava. O rei da Frígia, porém, preparava-se para defender suas fortalezas, e assim o declarou; mas desamparado por seus principais generais, lançou-se nos braços de Histaspes, e entregou-se à mercê de Ciro. Histaspes deixou bem guarnecidas as praças fortes, e partiu com o resto de suas forças e com grande número de cavaleiros frígios e peltastas. Ciro tinha ordenado a Adúsio que feita sua junção com Histaspes, trouxesse armados os frígios que quisessem abraçar sua parcialidade, tirasse os cavalos e as armas aos que oferecessem alguma resistência e obrigasse estes a seguir o exército com fundas. Tudo foi executado.

Ciro deixou em Sardes boa guarnição de infantaria, e partiu na companhia de Creso, com grande número de carros, de muitos e variados objetos. Creso apresentou a Ciro por escrito uma exata relação do que os carros levavam, e disse:

— Com esta relação sabereis quem entrega pontualmente tudo que foi confiado à sua guarda, e quem não.

— É elogiável vossa cautela — respondeu Ciro — mas como esses, a quem foram confiadas estas riquezas, são dignos de possuí-las, se extraviarem alguma roubaram-se a si mesmos.

Ditas estas palavras, entregou a relação a seus amigos e aos oficiais do exército, para saberem quais dos depositários das riquezas entregavam tudo por inteiro, e quais não. Também o acompanhavam alguns lídios, que ele via que folgavam com a elegância das armas, dos cavalos e dos carros, e que se desvelavam por lhe prestar serviços. A estes consentiu que viessem armados. Aos que marchavam contra vontade, tirou-lhes os cavalos, os quais foram distribuídos pelos persas que militavam com ele pela primeira vez; e queimadas as armas, obrigou-os a trazer fundas. Igualmente constrangeu a exercitarem-se em manejar a funda todos os soldados vencidos que vinham desarmados; porque pensava que esta era a arma mais própria para escravos. Os fundeiros, unidos às demais tropas, muitas vezes prestam valiosos serviços; mas sós, ainda que todos juntos, não resistem a um pequeno número de soldados armados para combater de perto.

Tomada de Babilônia

Em sua marcha para Babilônia, Ciro venceu os povos da grande Frígia, os capadócios e os árabes. Com as armas destes povos armou quarenta mil persas, forneceu aos aliados muitos cavalos dos vencidos, e apareceu à vista de Babilônia com uma cavalaria numerosa, muitos arqueiros e acontistas e fundeiros sem número.

Chegado à vista de Babilônia, cercou a cidade e foi reconhecê-la com seus amigos e os principais dos aliados. Observadas as muralhas, dispunha-se a retirar-se com o exército, quando saiu da cidade um desertor, que lhe disse que os babilônios tencionavam atacá-lo em sua retirada, porque, observado do alto das muralhas, o exército parecia fraco. Isto não causava admiração, porque sendo muito extensas as muralhas, não era possível postarem-se a muitos de fundo.

Com esta notícia, Ciro, postado no centro do exército com seus satélites, mandou que a infantaria pesada se estendesse por uma e por outra parte, e fosse colocar-se por detrás da parte do exército que não fazia movimentos, de sorte que as duas pontas viessem reunir-se no centro, onde ele se achava. Desta forma Ciro infundiu confiança não só aos que não se tinham movido, vendo estes dobradas suas fileiras, mas também aos que se moveram, porque ficaram menos perto dos inimigos.

Reunidas as duas pontas, o exército fez alto. Os soldados estavam com mais coragem, uns animados por ficarem cobertos pela retaguarda, outros com a presença dos que adiante lhes ficavam. Com esta evolução os soldados mais valorosos ficavam nas primeiras e últimas fileiras, no centro os menos intrépidos. Esta disposição facilitava a peleja e impedia a fuga: e quanto mais se condensava o exército, mais se acercava do general a cavalaria e a infantaria leve, que estavam postadas nas alas. Assim formadas, as tropas se puseram em marcha, retrogradando enquanto estiveram ao alcance das setas. Depois voltaram, e, avançados alguns passos, viraram outra vez, olhando para a cidade. À medida que se iam afastando, faziam estas manobras menos a miúdo, e logo que se julgaram a coberto do perigo, marcharam sem interrupção, até que chegaram às suas tendas.

Acampadas as tropas, Ciro convocou os principais oficiais, e disse:

— Aliados, observada a cidade por todas as partes, reconheci que ninguém ousará empreender tomá-la de assalto, atentas a fortaleza e altura das muralhas. Mas como os babilônios não se atrevem a vir medir conosco suas armas, quanto mais avultado for seu número mais facilmente os venceremos pela fome. Se não propondes outra opinião, a minha é bloquear a cidade.

Crisantas perguntou:

— O rio que corre por meio da cidade não é mais largo que dois estádios?

— É verdade — respondeu Gobrias — e mais fundo que a altura de dois homens; de maneira que o rio é para a cidade um ponto de defesa maior do que os mesmos muros.

— Crisantas — tornou Ciro — deixemos o que é superior às nossas forças, e vamos desde já ocupar-nos da fabricação de um fosso muito largo e profundo, para poder ser guardado por uma guarnição mui pequena.

Traçadas em roda das muralhas as linhas de circunvalação, e deixado da parte do meio terreno suficiente para a construção de grandes torres, Ciro entendeu na escavação de uma extensíssima sapa, mandando lançar a terra para o lado dos trabalhadores. Primeiro construiu nas margens do rio torres sobre vigas de palmeira, que não tinham menos do que cem pés de comprimento (ainda as há maiores), porque esta madeira verga debaixo do peso, à maneira dos burros. Ciro queria fazer ver aos babilônios que se dispunha para um longo sítio, e que, quando o rio comunicasse com a sapa, as torres não desabariam. Também levantou outras muitas torres sobre a terra tirada do fosso, para poder haver grande número de corpos de guarda. Tudo isto era posto em execução. Os sitiados escarneciam do cerco, porque tinham víveres para mais de vinte anos. Informado disto, Ciro distribuiu o exército em doze divisões, para cada uma destas fazer a guarnição de um mês. Os babilônios zombaram ainda mais desta medida, imaginando que os frígios, os lídios, os árabes e os capadócios, sendo mais aderentes ao seu partido do que ao dos persas, desertariam.

O fosso estava aberto. Sabendo que em Babilônia havia uma festa em que todos os babilônios passavam toda a noite em lauto banquete, Ciro, assim que a noite espalhou seu escuro manto, fez, à força de braços, comunicar o rio com o fosso. A água correu para este durante a noite, e o rio ficou vadeável. Nestas conjunturas, Ciro ordenou aos quiliarcas persas, tanto de infantaria como de cavalaria, que comparecessem com suas forças divididas em dois batalhões, e mandou que os aliados seguissem os persas na forma costumada. Entraram no rio alguns infantes e cavaleiros, para examinar se o leito do rio podia ser pisado sem perigo, e, com a resposta afirmativa, Ciro convocou os oficiais de infantaria e cavalaria e falou-lhes nestes termos:

— Amigos, o rio nos franqueia a entrada na cidade: entremos nela confiadamente, lembrando-nos que esses mesmos contra quem agora vamos, já nós vencemos, quando militavam juntamente com seus aliados, sempre alerta, não perturbados pelos excessos da gula, armados e em ordem de batalha. Agora estão muitos entregues ao sono, muitos entregues ao vinho e nenhum em ordem de peleja. Quando nos virem dentro da cidade, o terror ainda lhes atará muito mais os braços. Se algum de vós pensa nos perigos que correm os que entram em uma cidade inimiga, por causa dos tiros que podem fazer de todos os edifícios, esteja certo que isto é agora a nosso favor, porque se os babilônios subirem às casas para daí nos maltratarem, teremos por nosso lado o deus Vulcano. As madeiras muito combustíveis dos pórticos, as portas de palmeira untadas de betume, em que o fogo facilimamente pegará com o grande número de tições, pez e estopa que levamos, produzirão em um instante uma formidável conflagração. Desta maneira, ou hão de fugir imediatamente das casas, ou hão de morrer queimados. Eia, pois, armemo-nos, e eu irei adiante, querendo Deus. Gadatas e Gobrias, sede nossos guias, porque conheceis os caminhos. Assim que vos virdes dentro da cidade, encaminhai-vos em direitura ao palácio dos reis.

— Não será de admirar — diziam os que acompanhavam Gobrias — se acharmos abertas as portas do palácio, porque parece que toda a cidade tem estado esta noite mergulhada nas delícias de um suntuoso festim; mas talvez encontremos adiante das portas uma guarda, que sempre aqui costuma ser postada.

— Não desprezemos nenhuma advertência — tornou Ciro — e vamos quanto antes apanhá-los desprevenidos.

Ditas estas palavras, as tropas se puseram em movimento. Dos que foram encontrados pelas ruas, uns foram mortos, outros fugiram, outros levantaram gritos. Os soldados de Gobrias também gritavam como se fossem seus comensais; e tomando o caminho mais curto que puderam, chegaram ao palácio do rei, onde se reuniram às tropas de Gadatas. As portas estavam fechadas e a guarda bebia à roda de uma grande fogueira. Lançam-se sobre os babilônios, que compunham a guarda, e os tratam como inimigos. Sentido dentro do palácio o alarido e o tumulto, o rei mandou saber o que era; e já seus satélites tinham aberto as portas, quando os soldados de Gadatas se precipitaram dentro e foram seguindo os que lhes fugiam adiante, e descarregando golpes sobre eles, até que chegaram junto do rei, que estava em pé com a espada desembainhada. Morre o monarca, e todos que com ele se achavam, ainda que pretenderam uns defender-se, outros fugir. Ciro mandou a diferentes companhias de cavalaria, que correndo as ruas da cidade, matassem todos que encontrassem pelas ruas, e anunciassem em linguagem siríaca aos que não tinham saído de suas casas, que se conservassem nelas sob pena de serem mortos. Estas ordens eram executadas.

Gadatas e Gobrias fizeram sua junção com o grosso do exército, logo agradeceram aos deuses por terem castigado um rei ímpio, e beijavam as mãos e os pés de Ciro, ao mesmo tempo que de alegria derramavam copiosas lágrimas. Assim que amanheceu, e as guarnições das torres foram informadas da tomada da cidade e da morte do rei, entregaram-se. Ciro logo tomou posse delas, e lhes pôs novos presídios. Consentiu que os mortos fossem enterrados por seus parentes; e por arautos mandou publicar que todos os babilônios entregassem as armas, e que se em qualquer casa alguma se escondesse, todos morreriam. A obediência foi pontual, e Ciro as mandou depositar nas torres, para estarem prontas se fossem necessárias. Depois disto chamou os magos, e como a cidade foi tomada por força de armas, ordenou-lhes que dedicassem aos deuses as primícias dos despojes e os templos. Distribuiu as casas dos particulares e os palácios dos magnatas pelos que ele cria terem prestado mais eminentes serviços, e ouvia as reclamações dos que se julgavam lesados a este respeito. De resto, decretou que os babilônios cultivassem a terra, solvessem os tributos, e sofressem o domínio de seus novos senhores; e que os persas, os que desfrutavam as mesmas regalias que os persas, e os aliados que quisessem ficar com ele, como senhores se servissem dos babilônios.

Ciro pretende tornar-se menos acessível aos seus

Ciro, que já desejava ser em tudo tratado com as contemplações que julgava convir em a um rei, quis alcançar isto com o parecer dos amigos, para que não suscitasse a menor inveja o aparecer raras vezes em público, e com majestoso aparato. Eis o artifício que ideou. Um dia pela manhã foi ocupar um lugar, que imaginou mais oportuno, e aqui dava audiência a todos; respondia-lhes e os despedia. Espalhada esta notícia, houve grande concurso, e disputava-se sobre quem havia de ser primeiro admitido. Os guardas distinguiam uns dos outros como podiam, para lhes dar primeiramente acesso. Quando Ciro via algum de seus amigos apertado no meio da chusma, dava-lhe a mão, puxava-o para si e dizia-lhe:

— Amigos, esperai aqui enquanto a multidão se não dissipa: depois conversaremos à vontade.

Os amigos esperavam; mas a multidão ia engrossando cada vez mais, até que chegou a noite sem ele ter tido ocasião de lhes falar. Então disse Ciro:

— Amigos, é tempo de nos retirarmos. Vinde amanhã cedo, porque tenho que vos falar.

Os amigos partiram de boa vontade e a toda pressa, pois tinham passado todo o dia sem satisfazer suas necessidades. Depois descansaram. No dia seguinte Ciro apresentou-se no mesmo lugar, e a afluência foi muito maior, mesmo antes que os amigos comparecessem. Ciro, porém, formou em roda de si um círculo de lanceiros persas, e deu ordem para não deixar entrar senão seus amigos, os capitães persas e aliados; e congregados estes, recitou a seguinte oração:

— Amigos e aliados, até agora obtivemos tudo que temos pedido aos deuses; por isso não há motivo para nos queixarmos deles. Mas se o fruto dos grandes feitos é não poder viver tranqüilo, nem gozar da convivência dos amigos, eu renuncio a tal ventura. Ontem observastes que a audiência, começando pela manhã, ainda não estava à noite concluída; e hoje vedes aqui maior concorrência que ontem, que nos vem incomodar. Se eu me sujeitasse a isto, pouco fruiríamos nossa mútua companhia, e eu pouca tranqüilidade poderia desfrutar. Outra coisa que faz rir, é que sendo eu, como é natural, afeiçoado a vós, e conhecendo apenas um ou mesmo nenhum desses concorrentes, todos eles entendem que se no apertão puderem passar adiante, hão de ser admitidos primeiro que vós à audiência. Eu desejava que os que quisessem alguma coisa de mim, fossem primeiramente ter convosco, para de vós receberem a faculdade de me falarem. Talvez alguém me pergunte por que não tomei essa determinação logo desde o princípio, e me fazia acessível a todos. Eu tinha a idéia que na guerra o general deve ser informado de tudo, e deve pôr em prática os meios convenientes, sem interpor a menor delonga; e que o general que se fazia pouco visto deixava de fazer muitas coisas necessárias. Agora, porém, que está acabada uma guerra tão trabalhosa, parece-me que meu espírito deve gozar de algum refrigério. Portanto, estando eu vacilante sobre a resolução que deva tomar para segurar nossos interesses e os dos que nos releva proteger, exponha cada um de vós o que julga mais a propósito.

Tal foi a oração de Ciro. Artabazo, aquele que em outro tempo tinha dito ser parente de Ciro, pôs-se em pé, e disse:

— Agistes adequadamente, sujeitando o objeto à discussão. Em vossa puerícia desejei entrar no rol de vossos amigos; mas notando que não carecíeis de meus serviços, envergonhava-me de andar visitando-vos. Aconteceu, depois, que vos empenhastes em que eu levasse aos medos as mensagens de Ciaxares, e eu esperava que se desempenhasse idoneamente esta missão, havia de ser admitido à vossa familiaridade, e gozaria de vossa companhia o tempo que eu quisesse. Meu comportamento nesta comissão foi elogiado por vós. Depois vieram os hircânios solicitar a nossa amizade, em ocasião que muito precisávamos de aliados, e então os recebemos com os braços abertos. Quando o acampamento dos adversários caiu em nosso poder, creio que não tivestes vagar para de algum modo me contemplardes, e fechei a isto os olhos, Gadatas e Gobrias abraçaram nosso partido, o que me encheu de prazer, apesar de se tornar ainda mais difícil o gozo de vossa convivência. Em seguida fizeram-se nossos amigos os sacas e os cadúsios; e então foi mister que vós tivésseis com eles certa deferência, como eles tinham convosco. Quando chegámos ao lugar de onde havíamos partido, vendo-vos lidando com cavalos, carros e máquinas, cri que logo que estivésseis desocupado, passaríeis comigo alguns instantes. Chegou a terrível nova de que todas as nações se confederavam contra nós: eu conheci a importância da nova, e logo previ que se a fortuna nos favorecesse, eu desfrutaria diuturnamente vossa convivência. Agora vencedores em uma grande batalha, temos em nosso poder Sardes, Creso e Babilônia: tudo suporta nosso jugo. Assim Mitra me ajude, como é verdade que ontem eu não chegaria ao pé de vós se não fossem as disputas, que com muitos tive; e quando me destes a mão e me mandastes esperar, todos notavam que eu passaria todo o dia sem comer nem beber. Portanto, se é possível que os que prestaram mais valiosos serviços, tenham mais quinhão de vossa convivência, bem está: aliás, vou anunciar de vossa parte que se retirem todos, exceto nós, que desde o princípio temos sido vossos amigos.

Esta conclusão fez rir Ciro e outros muitos.

O persa Crisantas levantou-se, e falou desta maneira:

— Ciro, com razão em outro tempo éreis acessível a todos, não só pelos motivos que expusestes, mas também porque não éramos credores de nenhuma particular contemplação vossa. Nós servíamos também a nossa causa; e relevava que conciliásseis a afeição dos soldados, para que eles gostosamente se expusessem aos trabalhos e aos perigos. Agora, porém, que já se não dá o mesmo caso, e é preciso que contraiais outras amizades que julgardes oportunas, é próprio que tenhais uma habitação fixa. Pois como haveis de desfrutar vosso generalato, se vós somente fordes privado de uma habitação, que é a coisa mais sagrada, mais jucunda, mais legítima, que o homem pode possuir? E credes que nos não pejamos de vos ver suportar as intempéries da estação, habitando nós em nossas moradas, e tendo mais comodidades que vós?

O discurso de Crisantas foi aplaudido.

Ciro fortifica Babilônia

Ciro entrou no palácio e aqui lhe foram entregues os tesouros vindos de Sardes. Assim que entrou, fez sacrifícios primeiramente a Vesta, depois a Júpiter rei, e às outras divindades que os magos lhe apontavam. Depois destas cerimônias religiosas, consagrou sua atenção a outros objetos. Notando a seu respeito, que tentava governar muitos homens, e viver na mais famosa das cidades, mas cidade que lhe era extremamente infesta, julgou necessário instituir uma guarda para sua segurança; e como pensasse que em nenhuma parte se está mais exposto ao perigo do que à mesa, no banho e na cama, escolheu pessoas de confiança que o servissem nestes misteres.

Imaginava Ciro que não podia ser fiel nenhum homem que a outrem tributasse mais amizade do que àquele a quem servia, e que os que têm filhos, mulheres de seu mesmo gênio, ou outros objetos de sua afeição amorosa, dedicam-lhes principalmente sua estima; e que os eunucos, sendo privados destas inclinações, se afeiçoam muito àqueles que os podem enriquecer, livrar de insultos, e encher de honras. E julgava Ciro que ninguém era capaz de fazer mais benefícios do que ele. Além disso os eunucos, sendo tratados com desprezo pelos outros homens, precisavam de quem os protegesse; e ninguém haveria que não quisesse ter pleno ascendente sobre eles, se não fosse proibido. Que dúvida pode haver em conceder um cargo honroso a um eunuco fiel? Ciro não acreditava no que se dizia de serem menos valorosos os eunucos. Raciocinava por analogia do que via nos outros animais. Os cavalos fogosos, quando castrados, perdem a vontade de morder e a natural fogosidade, e não são menos próprios para a guerra; os touros perdem sua ferocidade e obstinação e ficam com as mesmas forças para os trabalhos; do mesmo modo os cães não tornam a desamparar seus donos e não são piores para guardar e caçar. Também os homens são mais sossegados, não obedecem menos pontualmente, não são piores cavaleiros, nem piores acontistas, nem são menos ávidos de glória; e conhece-se tanto na guerra como na caça, que a emulação assiste em sua alma. A respeito de sua lealdade, é na morte de seus senhores que eles dão os principais documentos. Ninguém mais do que eles, na adversidade de seus senhores, fornece mais notas de fidelidade. E se perdem alguma coisa das forças corporais, na guerra o ferro iguala o fraco ao forte.

Com estas idéias, Ciro começou pelos porteiros, e compôs de eunucos toda a sua guarda e notando que não era suficiente esta guarda, atendendo ao grande número de malfazejos, ponderava quais, entre os outros homens, seriam os mais fiéis, para com eles guarnecer o exterior do palácio. E observando que os persas que ficaram na pátria, passando uma vida miserável e trabalhosa, por sua pobreza, pela esterilidade do terreno, e por terem de ganhar o pão com o suor de seu rosto, quereriam de boa vontade vir exercer esta função, escolheu entre estes dez mil lanceiros, para de dia e de noite lhe guardarem o palácio, quando nele estivesse presente, quer ausente; pôs aqui uma boa guarnição, paga à custa dos babilônios, porque queria reduzi-los à pobreza e aos limites de seus deveres, e assim defraudá-los de todos os recursos.

A guarda instituída para segurança pessoal de Ciro e a guarnição de Babilônia têm existido até hoje. Considerando como conservasse seus domínios e os acrescentasse de novas achegas, Ciro refletiu que o pequeno número dessas tropas assalariadas não era suprido por seu valor, que não excedia aos dos povos vencidos. Assim determinou conservar junto de si os valentes que o conduziram à vitória, e fazê-los persistir na cultura das virtudes. E para deixar transluzir que não era uma ordem que lhes intimava, mas querendo que eles conhecessem a importância da sua estada aqui, e os interesses de quem cultiva as virtudes, convocou os homotimos, todos aqueles cuja assistência era necessária, e todos que eram por ele reputados dignos companheiros de seus trabalhos e de sua glória, e recitou este discurso:

— Amigos e aliados, grandes graças devemos dar aos deuses por nos concederem tudo aquilo de que nos julgávamos dignos. Agora possuímos um país espaçoso e fértil, e havemos de ser sustentados por aqueles mesmos que cultivam os campos, e temos casas mobiliadas. Nenhum de vós pense que isto é possuir o alheio. É uma lei de todos os tempos, que, conquistada uma cidade, passam ao poder dos conquistadores as pessoas e os haveres dos vencidos. Portanto, não é injustamente que somos senhores; pelo contrário, todas as concessões que fizermos aos inimigos devem eles atribuir à filantropia nossa. Eu vou expor a maneira por que entendo que nos devemos comportar daqui em diante. Se nos entregássemos à negligência e voluptuosidade dos covardes (estes crêem que o trabalho é a maior das misérias e a ociosidade o maior dos prazeres) em breve viríamos a ser inúteis para nós mesmos, e perderíamos todas as nossas conquistas. Para gozar do nome de virtuoso não é bastante tê-lo sido, é mister cultivar incessantemente as virtudes. Assim como as artes perdem seu brilho quando desprezadas, e os corpos seu vigor pela relaxação, também a prudência, a temperança e a fortaleza degeneram por falta de cultura. Não nos deixemos pois engodar pelos atrativos do deleite. Mui gloriosa é a aquisição de um império, mas muito mais gloriosa é sua conservação. A aquisição é muitas vezes devida meramente a um rasgo de audácia; enquanto que sua conservação depende sempre da sabedoria, da temperança e da grande vigilância. Neste pressuposto, agora ainda é mais necessário cultivar as virtudes do que antes de nossas conquistas, convencidos de que, quanto mais rico é qualquer, mais invejas, insídias, inimizades, tem que combater, com especialidade se foi violentamente que adquiriu os tesouros e a autoridade. Convém advertir que os deuses hão de ser nossos protetores, porque os nossos sucessos não foram o resultado de uma traição; uma traição castigámos nós. Aproveitemos um meio que muito nos serve: mostremo-nos mais virtuosos do que os povos de que somos senhores, e por isso tornemo-nos dignos de governá-los. E se é forçoso consentir que os escravos experimentem a sensação do calor, do frio, da fome e da sede, empenhemo-nos em patentear nisto mesmo um comportamento mais sábio. Não instruamos na arte militar, nem entretenhamos nos exercícios bélicos aqueles que nós queremos que nos cultivem os campos e nos paguem tributos. Sejamos superiores a eles nestas matérias, na convicção de que os deuses facultaram aos homens estes meios, como órgãos da liberdade e da felicidade. Com o mesmo empenho com que lhes tirámos as armas, não larguemos das mãos as nossas, bem persuadidos de que quanto mais próximo se está delas, menor é a oposição à sua vontade. Alguém perguntará que vantagens tiramos de termos sido bem sucedidos em nossas empresas, se ainda for preciso tolerar a fome, a sede, os cuidados e os trabalhos. Notemos que a fruição de uma coisa é tanto mais deleitável, quanto mais custou a obtê-la. Os trabalhos são o condimento dos homens fortes. Se obtemos uma coisa sem dela precisar, dificultosamente lhe acharemos prazer. Se a divindade nos concedeu aquelas coisas, que principalmente os homens desejam, e temos a liberdade de tornar seu gozo mais intenso, temos sobre os indigentes as vantagens de saciar a fome com as mais opíparas iguarias, de acalmar a sede com os mais gostosos licores, e de descansar da fadiga com as maiores comodidades. Por isso digo que não devemos sair do regaço da virtude, para desfrutarmos a ventura, e não experimentarmos o maior dos desgostos; porque se é desagradável não conseguir um bem, perdê-lo depois de consegui-lo é penosíssimo. E que pretexto pode haver para sermos agora menos animosos do que fomos? Porque somos senhores? Mas é próprio que o que governa seja mais covarde do que o governado? Porque parecemos agora mais felizes do que fomos? Mas dirá alguém que a covardia é um acessório da felicidade? É nossa obrigação castigar os escravos viciosos: mas como há de punir o vício um homem vicioso? Ainda mais: assalariámos muitos soldados para segurança de nossas casas, de nossa pessoa; e quão ignominioso seria refletir que o nosso bem-estar depende deles e não de nós? Devemos saber que a virtude é a guarda constante do homem virtuoso, e que o homem enlodado no vício não deve esperar bom sucesso em nenhuma de suas empresas. Mas que é necessário fazer para cultivar e exercitar a virtude? Nada de novo vos direi. Assim como na Pérsia os homotimos passam a vida ao lado dos tribunais, também nós, que estamos aqui, sendo todos iguais, adotemos o mesmo teor de vida, e fixai em mim os olhos para observardes se cumpro meus deveres. Eu também observarei vosso procedimento, e conferirei prêmios às boas ações. Nossos filhos sejam educados nestes mesmos princípios. Com os esforços que fizermos por lhes dar ótimos exemplos, nós mesmos nos tornaremos melhores; e eles não sairão, ainda que queiram, viciosos, não vendo nem ouvindo nada que se assemelhe ao vício, e passando todo o dia no exercício das virtudes.

Mais fontes de Pérsia

Ciropédia ou A educação de Ciro, de Xenofonte - Livro 1

Ciropédia ou A educação de Ciro, de Xenofonte - Livro 8

Ciropédia ou A educação de Ciro, de Xenofonte - Livro 5

A vida de Artaxerxes II, de Plutarco

Comentários sobre a fonte

Cadastre-se ou faça login para comentar

Cadastre-se

Ainda não há comentários nessa página.

Utilizamos cookies essenciais e tecnologias semelhantes de acordo com a nossa Política de Privacidade e, ao continuar navegando, você concorda com estas condições.

Aceitar