Busque no site
Ver mais opções

Fontes   >    Antiguidade Geral

Ciropédia, de Xenofonte - Livro 6

621 visualizações    |    18,3 páginas   |   9801 palavras   |    0 comentário(s)

Representação moderna de Ciro o Grande.

Sobre a fonte

Ciropédia (ou A educação de Ciro) é uma biografia de Ciro, o Grande (580-530 a.C.), escrita pelo ateniense Xenofonte. A obra tem um caráter parcialmente ficcional e seu uso como fonte histórica tem sido repetidamente discutida. Xenofonte viveu entre 430-355 a.C., cerca de 100 depois da morte de Ciro. Apenas o primeiro dos seus 8 livros é, estritamente falando, a Ciropédia. O primeiro livro é dedicado à origem e educação de Ciro e à sua estada na corte do seu avô materno, o rei Medo Astíages. Os livros 2 a 7 cobrem a vida de Ciro II enquanto vassalo dos Medos. O livro 8 é um ensaio sobre o modo de Ciro governar e sobre as suas visões da monarquia.

É decidida a continuação da guerra — Preparações guerreiras — Araspas, Panteia e Abradatas — Embaixada da Índia — Desalento do exército de Ciro — Discurso de Ciro — Ciro avança à frente do exército — Preparativos para a batalha — Amizade de Panteia para com seu marido — Ciro anima as tropas.

É decidida a continuação da guerra

Passado assim o dia, cearam, e se entregaram ao repouso. No dia seguinte apareceram todos os aliados às portas de Ciaxares, que, enquanto se vestia, estava ouvindo o muito ruído, que fora faziam. Entretanto os amigos de Ciro lhe mandavam pedir que se conservasse nestas regiões. Cadúsios, hircânios, Gobrias e os sacas lhe vieram fazer a mesma súplica. Com o mesmo fim se apresentou Gadatas da parte de Histaspes. Então Ciro, que sabia que muito temia Gadatas, que ele licenciasse o exército, lhe disse sorrindo:

— É claro que foi Histaspes quem vos inspirou a idéia de virdes fazer-me essa súplica.

Gadatas levantou as mãos ao céu, jurou que não, e continuou dizendo:

— Mas eu sei que se vos retirardes minha fortuna está perdida. Por isso interroguei Histaspes acerca de vossa resolução.

— Segundo parece — respondeu Ciro — referi-me inadequadamente a Histaspes.

— Assim é — acudiu Histaspes — eu, pelo contrário, dizia a Gadatas que vós não podíeis persistir neste lugar porque vosso pai vos chamava.

— Que dizeis, Histaspes? — tornou Ciro — atrevei-vos a asseverar o que tenho tenção de fazer?

— Não — respondeu Histaspes — mas eu vejo-vos dominado do desejo de vos mostrardes aos persas, e de fazerdes a vosso pai a resenha de vossas proezas.

— Vós — instou Ciro — não desejais também voltar aos pátrios lares?

— Não — respondeu Histaspes — não voltarei à pátria sem submeter ao domínio de Gadatas o Império da Assíria.

Enquanto assim se entretinham com tom de seriedade, apareceu Ciaxares magnificamente vestido, e sentou-se sobre seu trono; e reunidos todos que deviam assistir ao conselho, houve silêncio, e Ciaxares falou assim:

— Aliados, visto que me acho presente, e sou mais velho que Ciro, compete-me tomar primeiramente a palavra: creio que o principal objeto de discussão é se se deve continuar a guerra, ou despedir o exército. Emita cada um seu parecer.

O príncipe da Hircânia foi o primeiro a levantar-se e disse:

— Parecem-me desnecessárias todas as discussões quando os próprios sucessos estão indigitando o caminho que se deve seguir. Todos nós sabemos que reunidos hostilizamos os adversários sem grande prejuízo nosso; e que separados nós uns dos outros, eles nos faziam o mal que queriam.

— Que havemos de dizer — representou o chefe dos cadúsios — a respeito de partirmos separadamente para as nossas pátrias, nós, que mesmo com as armas na mão não podemos sem risco afastar-nos de vós; nós que como sabeis, tivemos de sentir as funestas conseqüências de um bem pouco prolongado afastamento?

Depois tomou a palavra Artabazo, aquele que em outro tempo dissera ser parente de Ciro:

— A minha opinião, Ciaxares, difere muito da dos oradores que me precederam. Dizem estes que é mister ficar aqui para continuar a guerra; mas eu declaro que era lá na pátria que nós estávamos em guerra. Quantas vezes atormentado e pronto a acudir não corria eu em defesa de nossas herdades roubadas, e de nossos castelos ameaçados? E tudo isto fazia eu à minha custa. Agora ocupo as fortalezas dos inimigos, já os não temo, como e bebo a expensas suas. Concluo, pois, que esta sociedade em que vivemos não deve dissolver-se, visto que nos achamos aqui em um interminável festim, enquanto que em nossa terra vivíamos continuamente em guerra.

— Ó aliados — disse Gobrias — até agora não tenho senão que elogiar a fidelidade de Ciro, que exatamente tem cumprido suas promessas. Mas se ele se retira destas regiões, o rei da Assíria respirará, e além de ficar impune das injúrias que fez a vós e a mim, outra vez me infligirá o castigo de eu ter entrado em vossa aliança.

Então tomou Ciro a palavra e falou assim:

— Intrépidos companheiros, bem presente tenho que o licenciamento do exército é capaz de enervar a nossa parcialidade, e vigorar a dos inimigos. Os que foram despojados de suas armas em breve fabricarão outras; e outros cavalos obterão os que perderam os seus; e os inimigos mortos serão substituídos pela mocidade que vai crescendo. Desta maneira não é para admirar que eles dentro em pouco nos incomodem de novo. E por que razão aconselhei eu a Ciaxares que pusesse em discussão se se devia ou não despedir as tropas? Porque receio o futuro; porque antevejo que no estado em que estamos não podemos resistir os inimigos que vêm marchando contra nós. O inverno está a chegar, e se nós temos onde nos abriguemos, disso carecem os soldados, os serventes e os cavalos. Enquanto a víveres, por onde transitamos nós os colhemos, e onde não chegaram as nossas armas o inimigo temeroso os recolheu nas fortalezas. Desta forma estão eles de posse das vitualhas, e nós não temos onde procurá-las. Portanto, quem tão valente e robusto pode cheio de fome e de frio encarar os adversários? Se apesar destas razões, persistimos em continuar a guerra, eu digo que mais vale despedir voluntariamente as tropas, do que sermos violentados a isso pelo aperto das circunstâncias. Para continuar a guerra, cumpre tomar aos inimigos e levantar por nossa conta o maior número de praças que for possível. Assim terão maior cópia de víveres os que souberem colhê-los e guardá-los; e vexados serão os que não tiverem lugares fortificados. A nossa atual situação é como a dos navegantes no meio do oceano, os quais, por mais que naveguem, tanto senhorio têm sobre o que lhes falta percorrer. Senhores de praças fortes, nós ficamos de posse pacífica do território inimigo. Se alguém dentre vós receia ser destacado para guarnecer as praças, que demoram longe do solo pátrio, desterre de seu peito tal temor; porque nós, que estamos separados de nossos lares, nos incumbiremos dessas guarnições. Vós possuis e cultivais os terrenos das fronteiras da Assíria. Se nós conseguirmos conservar as praças lá na presença dos contrários, vós, que estais longe, vivereis em paz profunda, porque eles, segundo creio, não hão de deixar o perigo próximo para vos vir atacar.

Acabado este discurso, todos, inclusive Ciaxares, se levantaram para dizer que estavam prontos a abraçar os conselhos do orador.

Preparações guerreiras

Gadatas e Gobrias afirmaram logo que com licença dos aliados edificariam cada um seu castelo, para benefício de todos. Vendo tão grande uniformidade de opiniões, Ciro continuou a oração:

— Se subscreveis ao meu alvitre, é mister, quanto antes, entender na construção de máquinas para bater as muralhas dos inimigos, e assalariar arquitetos para a ereção dos castelos.

Depois disto, Ciaxares, Gadatas, Gobrias, Tigranes, e o próprio Ciro, prometeram que se empenhariam cada um deles na construção de uma máquina. Tomadas estas medidas, tratou-se de procurar arquitetos, de arranjar materiais de construção; e a intendência das obras foi confiada a homens tidos como capazes de tal administração. Antevendo a demora destes trabalhos, foi acampar em um lugar que reputava muito sadio, e acessível aos transportes dos objetos necessários, e mandou fortificar os pontos mais fracos, para aqui se poder estar em segurança, mesmo quando andasse longe o grosso do exército. Demais, informado pelos que conheciam aqueles territórios dos sítios mais cômodos para os soldados, ele por aqui os conduzia, para lhes fornecer vitualhas em abundância, para os tornar mais sadios e robustos com o exercício, e para não perderem o hábito de ocupar seus respectivos postos durante as marchas.

No meio destes preparativos, desertores e prisioneiros babilônicos afirmaram que o rei da Assíria partira para a Lídia com grande porção de talentos de ouro e prata, muitas alfaias e outras riquezas. Geralmente se conjetura vá que ele, cheio de medo, ia depositar seus tesouros em lugar seguro; mas Ciro, convencido de que ia suscitar contra ele novos inimigos, preparou-se animosamente para novos conflitos. Completou a cavalaria persa com cavalos dos prisioneiros e com os que os aliados lhe ofereciam. Ciro tudo aceitava, fosse uma boa armadura ou um bom cavalo.

Também preparou carros dos que tinham tomado aos inimigos e de outros; mas aboliu o método dos antigos troianos e dos modernos cireneus. De outros não usaram até esse tempo os medos, os assírios, os árabes, todos os asiáticos. Notou Ciro que os soldados mais valentes, andando sobre os carros, apenas empregados nos arremesses, nada conservavam para obter os troféus da vitória. Trezentos carros ocupavam trezentos combatentes, mil e duzentos cavalos, e trezentos aurigas, sempre pessoas de confiança, e que nenhum dano causavam aos adversários. Abolido este uso de carros, Ciro inventou outros mais acomodados para a guerra, com rodas fortes para não quebrarem facilmente, e com longos eixos para não inclinar e cair. O lugar em que o auriga se sentava era de grossa madeira, a modo de uma torre, que lhe não passava dos cotovelos, para poder governar os cavalos. Não falando nos olhos, trazia o auriga o corpo todo coberto com a armadura. Foices de ferro de dois côvados de comprimento guarneciam os eixos pela parte de fora das rodas e pela parte de dentro, para ferir os inimigos que atacassem os carros. Desta espécie de carros, invenção de Ciro, ainda hoje se usa nos domínios do rei. Ciro também tinha grande número de camelos, uns fornecidos por seus aliados, outros tomados aos contrários. Assim se dava execução aos preparativos guerreiros.

Desejoso de enviar um espia à Lídia, para saber em que se ocupava o assírio, julgou que mui idôneo para esta missão era Araspas, que guardava a bela cativa.

Araspas, Panteia e Abradatas

Vou contar o que tinha acontecido a Araspas. Penetrado de amor por aquela mulher, viu-se constrangido a solicitá-la para lhe dar uma demonstração de seus sentimentos. Ela rejeitou tais solicitações, conservou-se leal ao seu marido, a quem muito amava, posto que estivesse ausente, e não se queixou a Ciro, receando semear a discórdia entre amigos. Pensando que não devia desistir da empresa, Araspas a ameaçou, fazendo-lhe entender que empregaria a violência, se não quisesse ceder a suas instâncias. Então a mulher não oculta mais nada, e envia um eunuco a Ciro, para lhe declarar tudo. Ciro, ao ouvir a narração do eunuco, não pôde conter o riso, porque Araspas lhe afirmara ser mais forte que o amor, e logo expediu Artabazo com o eunuco, para lhe dizer que não violentasse uma mulher de tal categoria, mas que lhe não proibia os meios de convencê-la. Chegando junto de Araspas, Artabazo o insultou, chamou-lhe ímpio, injusto e incontinente, e disse que aquela mulher era um depósito sagrado. Araspas derramou lágrimas de dor, cobriu-se de vergonha, e cheio de medo receava que Ciro o mandasse punir. Sabendo disto, Ciro mandou chamá-lo à sua presença, e a sós lhe disse:

— Araspas, vejo-vos cheio de medo e coberto de vergonha. Fechai o coração a vossos sentimentos. Tenho ouvido dizer que os próprios deuses, e os homens havidos por mais sensatos, não têm podido eximir-se ao império do amor: eu mesmo não tenho fortaleza para me mostrar indiferente na presença das belas. Mas a mim me deveis reputar autor dos vossos infortúnios, por vos ter encerrado com um invencível inimigo.

— Vós sois sempre o mesmo — disse Araspas — brando e clemente para com as fragilidades humanas, enquanto os outros homens não cessam de apoquentar-me. Depois que se espalhou o rumor de minha infelicidade, meus inimigos exultam de prazer, meus amigos me aconselham que fuja daqui, para evitar que castigueis meu grande delito.

Ciro tornou:

— Sabeis, pois, Araspas, que a favor desse mesmo rumor podeis ser-me muito prestadio, e fazer aos aliados um serviço relevante.

— Oxalá — replicou Araspas — que eu ainda vos possa ser uma vez útil.

Ciro continuou:

— Se quereis passar para o campo dos inimigos, fingindo que fugis de mim, creio que eles vos acreditarão.

— Por Júpiter — instou Araspas — meus amigos espalharão que tal é o motivo que tenho para ir unir-me aos contrários.

Ciro prosseguiu:

— Vós voltareis instruído das resoluções dos adversários; pois eu estou persuadido que eles vos darão parte de todas as suas deliberações e intentes, por ser tal a confiança que vos hão de prestar, que não ocultarão uma só coisa das que desejamos saber.

— Eu vou pôr-me a caminho — disse Araspas — sendo um grande penhor de minha fidelidade para com os inimigos, o fugir na ocasião em que devia experimentar os efeitos de vossa ira.

Ciro foi continuando:

— E podeis suportar a ausência da gentil Panteia?

— Eu tenho — respondeu ele — duas almas, evidentemente. Tal é a filosofia que agora me ensinou aquele injusto mestre, o amor. Pois uma só alma não podia ser boa e má ao mesmo tempo, nem podia ao mesmo tempo amar o honesto e o torpe, nem querer e não querer uma coisa no mesmo momento. Mas, claro é que temos duas almas: quando a boa impera, são honestas as inclinações; quando a má, são desonestas; e agora que minha alma boa obteve vossa amizade, tem ela um domínio absoluto.

Ciro foi por diante:

— Se estais resoluto a partir para o campo dos inimigos, comportai-vos como vou dizer-vos, para melhor captardes a confiança dos contrários. Participai-lhes o que por aqui se passa, mas de maneira que essa participação só sirva para estorvar a execução de seus projetos, o que conseguireis se disserdes que nos preparamos para invadir seus territórios. O medo de ver arruinados seus bens não os deixarão congregar-se. Deixai-vos por lá estar quanto tempo puderdes. Dai-nos parte dos movimentos dos adversários, quando muito próximos andarem de nós. Mesmo lhe podeis aconselhar que formem o exército em batalha, quando julgardes melhor ocasião. Na volta informar-nos-eis a tal respeito; mas eles guardarão a mesma forma, por temerem a súbita confusão ocasionada por qualquer mudança.

Araspas partiu na companhia de criados muito fiéis, tendo dito a algumas pessoas como pensava desempenhar a sua missão.

Assim que foi informada da partida de Araspas, Panteia enviou a Ciro um mensageiro, que nestes termos lhe falou:

— Não vos cause desprazer a retirada de Araspas para o campo dos inimigos. Com licença vossa eu mandarei chamar meu marido, que aqui se apresentará com todas as forças que puder congregar; e prometo-vos que nele achareis um amigo muito mais fiel que Araspas. O pai do atual rei era amigo de meu esposo, mas seu filho tentou dividir-nos. Portanto eu sei que meu marido, conhecendo sua petulância, de boamente abandonará suas bandeiras para vir alistar-se debaixo das de um capitão como vós sois.

Obtida a concessão, Panteia expediu o mensageiro. Abradatas, logo que conheceu os sinais de sua esposa, e soube tudo mais que havia, de boa vontade partiu com dois mil cavalos para o acampamento de Ciro; e apenas chegou ao lugar por onde andavam os exploradores dos persas, mandou dizer quem era. Ciro imediatamente o fez conduzir ao aposento de sua mulher. Logo que se avistaram, os dois cônjuges se abraçaram, como era natural em um caso tão inesperado. Depois dos primeiros abraços, Panteia falou a seu marido dos bons costumes e temperança de Ciro, e da caridade com que a havia tratado.

— Que hei-de eu fazer — exclamou Abradatas — para dar provas de nosso reconhecimento para com Ciro?

— Que haveis vós de fazer — respondeu Panteia — senão mostrar-vos para com ele dominado dos mesmos sentimentos que ele mostrou para convosco?

Depois foi Abradatas ter com Ciro, e assim que o viu, pegou-lhe da destra, e disse:

— Para pagar-vos, Ciro, os benefícios que nos tendes feito, eu não posso mais do que oferecer-me como vosso amigo, vosso servo e vosso aliado, e ser auxiliador acérrimo em todos os vossos trabalhos.

— Aceito os vossos oferecimentos — respondeu Ciro. Hoje concedo-vos que vades cear com vossa mulher: mas daqui em diante é mister que estejais na minha companhia com vossos amigos e com os meus.

Passado algum tempo, vendo Ciro empenhado no preparativo dos carros falcatos e dos cavalos e cavaleiros armados de lorigas, Abradatas quis fornecer-lhe cem carros tirados de sua cavalaria, semelhantes aos dos persas, e ele se preparou para comandá-los, montado em um carro de quatro temões puxado por oito cavalos. De suas jóias mandou Panteia fazer para ele uma couraça, um capacete e um braçal, tudo de ouro; e mandou ajaezar os cavalos com arreios de bronze. Nestas coisas Abradatas se entretinha. Ciro, vendo o carro de quatro temões, pensou que se poderia construir um com oito temões, puxado por oito juntas de bois, para conduzir certas máquinas em forma de torres, de altura de dezoito pés incluindo as rodas. Estava ele persuadido que estas máquinas, situadas por detrás dos combatentes, seriam para estes grande auxílio, e grande dano para os inimigos. Nelas tinha mandado fazer parapeitos e ameias: cada uma era guarnecida por vinte homens. Pronto tudo que dizia respeito às torres, Ciro ensaiou e viu que oito juntas puxavam mais facilmente por uma torre com vinte homens, do que uma só junta por um carro de bagagens, cujo peso ordinário é de vinte e cinco talentos. Estas torres, apesar de feitas de madeira da grossura da dos teatros trágicos, contendo vinte homens e armas, davam a cada junta uma carga menor de quinze talentos. Notando de quão fácil transporte eram estas máquinas, determinou que fizessem parte de seu exército, pensando que procurar as vantagens na guerra era buscar a salvação e a felicidade, além de ser uma coisa justa.

Embaixada da Índia — Desalento do exército de Ciro

Por este tempo chegaram com dinheiro embaixadores da Índia com esta mensagem da parte de seu rei:

— Ciro, eu folgo em que me comuniqueis vossas necessidades. Quero contrair convosco relações de hospitalidade. Aí vos envio uma soma de dinheiro; se mais precisardes, participai-mo. Meus embaixadores têm ordem para obedecer a vossos mandados.

— Eu vos ordeno, pois, — respondeu Ciro — que alguns de vós fiquem aqui guardando este dinheiro, e vivam com as maiores comodidades; e que três passem para o campo dos inimigos, fingindo propor-lhes aliança com o vosso rei; mas para observardes o que por lá se diz e faz, e anunciá-lo a mim e ao rei da Índia. Se idoneamente desempenhardes esta comissão, meu reconhecimento para convosco será ainda maior do que o que vos devo pelos tesouros que me trazeis. Os meus exploradores, que por lá andam vestidos com o trajo de escravos, não podem ver e anunciar senão o que é de todos sabido. Porém homens de vossa qualidade poderão até penetrar em seus segredos.

Os índios com gosto escutaram Ciro, que benignamente os agasalhou; e, no dia seguinte partiram, prometendo voltar breve, com todas as informações que pudessem colher dos inimigos.

Ciro tinha disposto para a guerra todas as coisas magnificamente, como homem de altos projetos. Não contente em executar o que os aliados tinham decidido, Ciro semeava a emulação entre os amigos, de maneira que cada um queria apresentar-se o mais bem armado, o mais hábil cavaleiro, o mais destro seteiro, o mais distinto arqueiro, e o mais sofredor do trabalho. Conseguia este fim, levando-os à caça, e condecorando os que mais se assinalavam. Quando via que os capitães se esmeravam em melhorar a disciplina de seus soldados, os animava com prêmios e louvores. Quando fazia algum sacrifício, instituía jogos dos exercícios da guerra, e conferia grandes prêmios aos vencedores. Desta forma imperava entre as tropas a alegria. Ciro tinha tudo pronto para renovar as hostilidades, exceto as máquinas. Os cavaleiros persas chegavam já a dez mil: os carros falcatos, fornecidos por Ciro, preenchiam o número de cem: os que o súsio Abradatas tentou fazer semelhantes aos de Ciro, chegavam também a cem; a cem chegavam igualmente os carros medos, aos quais Ciro aconselhara Ciaxares que mudasse a antiga forma de carros troianos e líbicos. Em cada camelo montavam dois arqueiros. Desta sorte, os soldados pela maior parte já se julgavam vitoriosos, e tinham em pouca conta o poder dos inimigos.

Tais eram os sentimentos que dominavam as tropas quando chegaram os índios que Ciro tinha enviado ao campo dos inimigos, e disseram:

— Creso foi nomeado general-chefe dos exércitos, e assentou-se entre os reis aliados que cada um viria com todas as suas forças, e com somas avultadas, para alistar quantos soldados pudessem, e para dadivar quem julgassem a propósito. Já estão assalariadas numerosas coortes de trácios armados de longas espadas; já vêm navegando cento e vinte mil egípcios, armados de escudos que lhes chegam aos pés, de compridas lanças e de espadas; já também sobre o mar vem um exército de cíprios. Já compareceram todos os cilícios, os habitantes de ambas as Frígias, os licaônios, os paflagônios, os árabes e os fenícios; os assírios vêm sob o comando do rei de Babilônia: os jônios, os eólios e quase todos os gregos da Ásia, foram obrigados a acompanhar Creso. Creso mandou contrair aliança com Lacedemônia. O ponto de reunião é junto do rio Pactolo, e daqui hão de marchar para Tibarra; e anunciou-se que concorressem a este lugar os que tivessem víveres para vender.

Estas notícias eram confirmadas pelos prisioneiros. Ciro curava de aprisionar alguns inimigos, para receber tais informações, e enviava vários espias em trajo de escravos, que se inculcavam por desertores. Aquelas notícias puseram em inquietação o exército de Ciro. Já os soldados andavam mais silenciosos do que costumavam; a alegria emigrou do coração de muitos: reuniam-se em magotes, faziam perguntas e conjeturas. Percebendo que o medo ia se difundindo entre a soldadesca, Ciro convocou os chefes do exército e todos aqueles cujo descoroçoamento podia ser tão funesto como útil o entusiasmo; e passou ordem aos guardas para não vedarem a entrada a qualquer soldado que quisesse ouvir o discurso. Reunidos os capitães, Ciro falou assim:

— Aliados, eu vos convoquei por notar o temor que vos incutiram as notícias que chegaram dos inimigos. Causa-me espanto que vos amedronteis por se dizer que os adversários se estão congregando; e não vos animeis, vendo que somos agora muito mais numerosos, e possuidores, graças à providência, de maiores recursos do que quando os debelamos. Deuses! Em que estado ficaria vossa coragem se agora chegasse a notícia de que um exército como o nosso marchava contra vós. Ouviríeis dizer: — “As tropas que já uma vez nos venceram, de novo avançam, animadas com a primeira vitória; o exército, que derrotou os nossos arqueiros e seteiros, de novo avança muito mais numeroso; sua infantaria destroçou então os nossos peões, agora a cavalaria vem destroçar os nossos cavaleiros; e não é com arcos nem setas, mas com robustíssimas lanças, que eles pelejam: os carros, que agora trazem, não são feitos para facilmente fugir como antes; os cavalos, que por eles puxam, vêm cobertos de saia de malha; os aurigas, sentados sobre torres de madeira, trazem sobre a cabeça um capacete, e uma loriga cobrindo a parte do corpo que fica acima da torre. Os eixos dos carros são guarnecidos de foices de ferro, para poderem imediatamente cortar as fileiras dos contrários. Demais, trazem camelos com gente armada em cima, dos quais basta um para espantar cem cavalos. Enfim, com as torres favorecem os seus, e com os tiros que delas fazem, não vos deixam combater em raso campo”. — Ora se dissessem isto a respeito dos inimigos, que faríeis, vós que estais tão penetrados de pavor só por ouvir dizer que Creso foi nomeado general, Creso, que se mostrou tanto mais covarde que os sírios, que estes fugiram depois de vencidos, e Creso, presenciando esta derrota, fugiu em vez de acudir aos aliados? Além disso, temos a notícia de que os contrários não se reputam capazes de nos resistir; assalariaram estrangeiros, persuadidos que defenderiam sua causa mais valorosamente do que eles próprios. Mas, finalmente, os que julgarem esperançosa a situação dos adversários e desesperada a nossa, podem ir engrossar seus batalhões; porque sua ausência ser-nos-á mais proveitosa do que sua presença.

Ciro acabou de falar e o persa Crisantas principiou:

— Ó Ciro, não vos admireis que alguns de nós ficassem tristes com aquelas notícias; mas olhai que não era por temor, mas por certa inquietação. Assim como ninguém pode ficar satisfeito, quando, indo com vontade de jantar, souber que é obrigado a fazer alguma coisa antes; assim também nós, já pensando que estávamos a lançar a mão sobre as riquezas dos inimigos, assim ao ouvirmos que ainda nos faltava fazer alguma coisa antes, ficamos tristes, não por medo que de nós se apoderasse, mas pelo desejo que tínhamos de que essa coisa se tivesse já feito. Mas visto que temos de combater não só na Síria, onde há muito trigo, gado, palmeiras carregadas de fruto, mas também na Lídia, abundante de vinhos, figos e azeite, e banhada pelo mar, que lhe traz mais riquezas do que se tem visto, não nos inquietamos, mas cheios de confiança desejamos ir quanto antes apossar-nos dessa fortuna dos lídios.

Assim falou Crisantas, e todos os aliados aplaudiram seu discurso.

Discurso de Ciro

— Bravos — continuou Ciro — meu parecer é que vamos desde já contra os inimigos, para chegarmos primeiro, se pudermos, ao lugar onde eles têm suas provisões: quanto mais presteza pusermos em nossa marcha, mais certeza teremos em os apanharmos desprevenidos. Se alguém conhece um meio mais seguro e mais fácil, exponha-o.

Muitos afirmaram que era conveniente partir contra os adversários; não houve oposição, e então Ciro recitou o seguinte discurso:

— Aliados; nossas almas, nossos corpos, nossas armas, estão prontas, graças aos céus, para entrar em ação; e agora é preciso aprontar as vitualhas para nós e para as cavalgaduras, para uma marcha de vinte dias pelo menos; porque penso que havemos de andar mais de quinze dias sem encontrar onde colhê-las, por já terem sido colhidas por nós e pelos inimigos. É necessário prover-nos de bastante pão, porque sem ele não é possível combater nem viver. Enquanto a vinho, leve cada um somente o que for suficiente para nos irmos habituando a beber água; pois tendo nós que atravessar um terreno quase estéril de vinhas, por grande que fosse a provisão que fizéssemos daquele licor, seria sempre diminuta. Mas para não sermos incomodados pela privação súbita de vinho, convém fazer o que vos vou dizer. Comecemos já a beber alguma água sobre a comida. Esta mudança não será muito sensível. Os que se nutrem de farinha, costumam diluí-la em água: tudo o que se coze é preparado com grande quantidade de água. Beberemos uma pequena porção de vinho depois de cada refeição, e não passaremos mal. Esta mesma porção irá sendo progressivamente diminuída, até chegarmos a beber somente água. Todas as compleições suportarão sem prejuízo esta mudança gradual. Isto nos é ensinado pela própria divindade, quando do inverno nos conduz paulatinamente ao pino do verão, e do verão ao pino do inverno. Sejamos seus imitadores na consecução deste fim.

Não transportemos leitos para neles dormirmos, transportemos o seu peso em víveres, porque a abundância destes nunca é inútil, e na falta de leitos não tendes que recear noites incômodas: e se assim acontecer, fazei recair a culpa sobre mim. Andar bem vestido aproveita sempre na saúde e na doença. Devemos fazer provisão de condimentos e acres e salgados, porque desafiam o apetite e conservam-se mais facilmente. Quando chegarmos aos lugares onde haja trigo, importa provermo-nos de moinhos portáteis para triturá-lo, por serem estes os mais leves de todos os instrumentos para fazer pão. Não nos esqueçamos de levar medicamentos, porque pouco carregam e são de considerável proveito, quando preciso. Também devo falar de correames, porque por meio deles suspendem os homens e os cavalos o que sobre si trazem: gastados ou quebrados, não havendo com que substituí-los, é mister ficar ocioso. Os que aprenderam a polir lanças é bem que tragam o instrumento próprio, e também uma lima, porque quem aguça a lança, aguça ao mesmo tempo a coragem; pois é vergonha dar provas de covardia, tendo açacalado o ferro da lança. Convém transportar boa porção de madeira para carros e carretas. Quando há muito que fazer, é forçoso que alguma coisa falte. Além dos materiais é preciso levar os instrumentos mais necessários; porque não há operários por toda parte, e um pequeno número deles não basta para os trabalhos de cada dia. Cada carreta levará um sacho e um enxadão, cada besta de carga uma enxada e uma foice. Estes instrumentos são úteis a cada um em particular, e muitas vezes têm utilidade geral.

Vós, capitães dos soldados pesadamente armados, examinai se eles têm os víveres de que precisam: não deixemos de curar do que é necessário; isso seria não cuidar de nós mesmos. Vós, chefes de bagagens, examinai se as cargas estão dispostas como eu mandei; e obrigai a pontualmente executar minhas ordens. Vós, comandantes dos gastadores, que tendes o catálogo dos seteiros, arqueiros e fundeiros, por mim reformados, deveis obrigar nesta expedição os seteiros a usar de um machado próprio para cortar madeira, os arqueiros de um sacho, os fundeiros de um enxadão. Todos estes marcharão adiante das bagagens, divididos em turmas, para, quando convier preparar a estrada, entrardes logo em ação, e para eu saber que lugar ocupais quando quiser de vós algum serviço. Levareis também no exército operários, que trabalhem em bronze, carpinteiros de carros e sapateiros, todos na idade de pegar em armas, e com os respectivos instrumentos, a fim de não se padecer falta do que pertence àqueles ofícios. Estes constituirão um corpo separado, e marcar-se-lhes-á um lugar onde poderão trabalhar para quem lhes quiser pagar seus artefatos. Se alguns vendedores quiserem acompanhar o exército, hão de conservar seus víveres durante os dias acima mencionados. Se algum for encontrado a vender, tudo lhe será confiscado; mas decorridos aqueles dias, podem vender como quiser. O que levar maior cópia de mantimentos será pelos aliados e por mim premiado e honrado. Se algum deles carecer de fundos para fazer suas compras, traga consigo pessoas que o conheçam e me afiancem que parte com o exército; eu o ajudarei como puder. Eis o que eu tinha que dizer. Se algum de vós considera que outras coisas possamos fazer também úteis, advirta-me. Ide pois preparar-vos, enquanto eu vou oferecer um sacrifício pela nossa partida; e terminadas estas cerimônias avisarei. É necessário que cada um dos soldados, provido de tudo que ordenei, compareça junto de seus oficiais, no lugar marcado; e vós, oficiais, formai vossas companhias e comparecei junto a mim para ocupardes vossos postos.

Ciro avança à frente do exército — Preparativos para a batalha

Concluído este discurso, os ouvintes foram preparar-se para a partida e o orador foi celebrar o sacrifício, terminado o qual pôs-se à testa do exército e principiou a marcha. No primeiro dia o exército acampou a pequena distância para poderem regressar, se tivesse havido algum esquecimento ou fosse ainda preciso proverem-se de alguma coisa necessária. Ciaxares ficou com a terça parte dos medos, para não deixar desamparados os seus Estados. Ciro continuou a marcha com a maior celeridade. Caminhava na frente a cavalaria, precedida dos exploradores, que eram enviados pelos lugares mais próprios para executar sua missão. Atrás dos cavaleiros ia a bagagem, que nas planícies formava muitas colunas com as carretas e bestas de carga. Seguia-se a infantaria, de modo que se algum bagageiro se deixava atrás, os oficiais o faziam andar para diante, para não impedir a marcha. Nas estradas estreitas as bagagens iam entre os soldados de armadura pesada, de sorte que sempre era possível ocorrer a qualquer dificuldade.

As diferentes companhias caminhavam quase sempre ao lado de suas bagagens, porque assim fora ordenado, exceto quando houvesse obstáculo. Cada bagageiro levava um sinal fornecido pelo respectivo taxiarca, sinal conhecido por todos da sua companhia. Desta feição marchavam todos reunidos, cada um tendo cuidado de não deixar atrás seus camaradas; por isso não se viam obrigados a procurarem-se uns aos outros, tudo ia em segurança, e os soldados eram depressa providos do que necessitavam.

Entretanto os exploradores julgavam perceber na planície homens colhendo ferragens e lenha, viam algumas cavalgaduras já indo carregadas, outras pastando, e lá mais ao longe pareciam levantarem-se nuvens de fumo e poeira. Daqui deduziram que o exército dos inimigos andava perto, e enviaram um mensageiro a Ciro com estas notícias. Ciro mandou-lhes dizer que continuassem suas observações no mesmo lugar, e lhe participassem o que houvesse de novo. Depois destacou para a planície uma companhia de cavalos com ordem de fazer alguns prisioneiros, os quais dariam mais amplas informações.

Enquanto se punham em execução as ordens de Ciro, este mandou fazer alto, para dar lugar a que os soldados se munissem do que lhes fosse preciso, antes de se aproximar do inimigo. Ordenou que primeiro jantassem e depois se conservassem em armas, prontos a receber suas ordens. Depois que jantaram, ele convocou os chefes da cavalaria, da infantaria, dos carros, das máquinas, das bagagens e das carretas. Enquanto estes se congregavam, os que tinham ido à planície, chegaram com alguns prisioneiros, que, interrogados por Ciro, disseram ter caminhado para cá das guardas avançadas, a fim de colher lenha e ferragens, porque a presença de tão numeroso exército havia produzido escassez de tudo. Ciro perguntou-lhes:

— A que distância está o exército?

Eles responderam:

— Duas parasangas.

— Fala-se por lá muito de nós?

— Por Júpiter, muito, dizia-se que já vínheis perto.

— E por isso andavam contentes?

Ciro fazia esta pergunta por causa dos que estavam presentes. Os prisioneiros responderam a ela:

— Não, por Júpiter, pelo contrário, andam muito tristes.

— Que fazem eles agora?

— Formam-se em ordem de batalha: ontem e antes de ontem não têm feito outra coisa.

— Quem é que dá as ordens?

— É Creso, que anda acompanhado de um grego, e de um medo que diz ter desertado de vosso campo.

— Grande Júpiter — exclama Ciro — oxalá que eu possa colher esse homem às mãos, como desejo.

Ciro mandou retirar os prisioneiros, e quando se voltava para os capitães que estavam presentes, chegou uma mensagem do chefe dos exploradores, anunciando que aparecia na planície uma grande companhia de cavalos.

— Nós conjeturamos — acrescentava o mensageiro — que vêm observar o nosso exército, porque adiante marcham com velocidade trinta cavaleiros, talvez para tomarem os nossos postos. Nós somos apenas dez.

Ciro mandou a alguns dos cavaleiros, que costumava trazer consigo, que fossem animosamente emboscar-se junto daqueles lugares.

— Quando os nossos dez — acrescentou ele — abandonarem seu posto, acometei os que correrem a ocupá-lo. E para que essa grande companhia de cavalo vos não infunda terror, Histaspes, ide contra ela com mil cavalos; mas não leveis a perseguição por lugares desconhecidos, tratai da conservação daquele posto e retirai-vos. Se algum contrário correr para vós com a destra levantada, acolhei-o com benignidade.

Histaspes foi armar-se e partiu como lhe fora ordenado. Ainda não tinha chegado ao lugar de seu destino, quando encontrou com sua comitiva aquele Araspas, que havia sido expedido como explorador, o guardador da mulher súsia. Assim que o viu, Ciro levantou-se, saiu-lhe ao encontro e pegou-lhe da destra. Os que estavam presentes, não sabendo nada de sua secreta missão, ficaram espantados, até que Ciro lhes disse:

— Amigos, eis aqui um homem digno dos maiores encômios. Agora já todos podem saber os motivos de seu procedimento. Não foi nenhuma ação infame, que o compeliu a partir, nem foi por temor de minha cólera; mas foi por mim enviado para se informar do estado dos inimigos, e no-lo vir comunicar depois. Bem me lembro, Araspas, das promessas que vos fiz, e com o auxílio de todos que vedes presentes, cumpri-las-ei. É justo que todos vós pagueis um tributo de honra à longanimidade deste varão. Em benefício nosso ele se expôs a perigos, e carregou com acusações.

Ditas estas palavras, todos abraçaram Araspas e lhe deram a destra.

— Basta! — diz Ciro — Contai-nos agora, Araspas, o que nos interessa saber, respeitando em tudo a verdade. Não diminuí as forças dos inimigos, porque vale mais, que reputando-as grandes, as achemos pequenas, do que inversamente.

Araspas respondeu:

— Eu curei de colher as mais exatas informações: consegui até andar postando os inimigos em ordem de batalha.

— Sabeis, pois, qual é seu número e qual sua ordem de peleja.

— Sim, e até sei de que modo eles têm tenção de travar a luta.

— Dizei-me primeiro qual é sumariamente seu número.

— À exceção dos egípcios, todos, infantaria e cavalaria, estão formados a trinta de fundo e ocupam um terreno de quarenta estádios. Eu tive todo o cuidado de instruir-me desta última circunstância.

— Então os egípcios como estão formados?

— Seus miriarcas os formaram de maneira que cada miríade tem cem de frente e cem de lado. Dizem ser uso pátrio. Foi bem contra sua vontade que Creso consentiu nisto, porque ele queria que seu exército apresentasse maior frente que o vosso.

— Mas para quê?

— Está claro, para vos poderem cercar por todos os lados.

— Vejam lá não venham eles a ser cercados em vez de cercadores. Temos ouvido o que nos convinha saber. Agora vou expor o que deveis fazer. Logo que daqui sairdes, ide examinar o que diz respeito a vossos cavalos e a vossas armas; porque muitas vezes, por falta de uma coisa bem pequena, se torna inútil um homem, um cavalo, ou um carro. Amanhã pela manhã, enquanto eu estiver celebrando o sacrifício, comei, e dai de comer aos cavalos, para que, quando for tempo de entrar em ação, não estejamos em jejum. Depois disto, Araspas, colocai-vos na ala direita, como até agora tendes feito, e vós, miriarcas, conservai também os vossos postos. Na ocasião da batalha já não é tempo de mudar as parelhas de um carro. Anunciai aos taxiarcas e logagos, que ponham seus soldados a dois de fundo.

Cada logago comandava vinte e quatro soldados. Então disse um dos miriarcas:

— Ciro, parece-vos que com tão pouco fundo poderemos fazer face a tão espessos esquadrões?

Ciro respondeu nestes termos:

— Pois vós pensais que esquadrões tão densos que não possam chegar com as armas aos contrários, causam a estes alguns danos, ou são de algum proveito para os aliados? Eu quisera que os egípcios se formassem antes a dez mil de fundo do que a cem; porque assim teríamos que combater com mui pequeno número de adversários. Dando aos meus soldados a forma que tenho determinado, creio que todos entrarão em ação e poderão auxiliar-se mutuamente. Atrás dos soldados armados de couraça porei os acontistas, e atrás destes os arqueiros. Pois quem cometerá o erro de pôr à frente soldados que confessam sua incapacidade para sustentar de perto o peso de uma batalha? Mas já o podem fazer, sendo colocados atrás das tropas armadas de loriga. Uns lançando arremessos, outros despedindo setas por cima da primeira linha, incomodam o inimigo. Todo o mal que se faz aos adversários está na razão direta do alívio causado aos aliados. Na última linha porei o chamado corpo de reserva. Assim como nenhuma utilidade tem um edifício sem fortes alicerces e sem teto, também para pouco serve um exército cujas primeiras e últimas fileiras não forem compostas de soldados intrépidos. Ide pois ocupar os postos por mim determinados. Vós, chefes dos peltastas, colocai na primeira linha os vossos soldados; vós, que comandais os arqueiros, postai-vos logo em seguida; e vós, que governais o corpo de reserva, postado na última linha, ordenai a vossos subalternos que observem os movimentos dos soldados, animando os valorosos, ameaçando os covardes, e matando os desertores. Aos que vão na vanguarda pertence inspirar com palavras e exemplos confiança aos que vão atrás; e a vós, que ides na retaguarda, compete incutir aos covardes maior terror que o inimigo. Estas são as minhas ordens. Vós, Abradatas, que dirigis as máquinas, fazei com que as parelhas que conduzem as torres sigam de mui perto o exército. Vós, Daucho, comandante das bagagens, marchai contudo atrás das torres, e ordenai a vossos subalternos que castiguem rigorosamente os que avançarem fora de tempo, ou se deixarem atrás. Vós, Carducho, chefe dos carros em que vão as mulheres, colocai-vos depois das bagagens. Tudo isto assim seguido dará ao exército a aparência de muito numeroso, facilitará os meios de armar insídias aos inimigos, e se estes nos quiserem cercar, ver-se-ão constrangidos a fazer muito maior círculo: e está claro que quanto mais terreno ocuparem, mais fracos ficarão. Fazei o que vos ordeno. Vós, Artabazo e Artagersas, cada um à frente de seus mil infantes, marchai logo atrás dos carros. Vós Farnucho e Asiadates, cada um com seus mil cavalos, não vos ponhais entre o exército, mas atrás das carretas separadamente: e depois vinde ter conosco, assim como os outros oficiais. É mister que estejais preparados como se fôsseis os primeiros que devêsseis entrar na luta. Vós, comandante dos soldados que montam os camelos, marchai também atrás das carretas, e executai os mandados de Artagersas. Vós, chefes dos carros, deitai sortes, para se determinar qual de vós há de ir na vanguarda, com seus cem carros: os outros dois chefes guarnecerão os flancos, um pela direita, outro pela esquerda.

Tal foi a forma que Ciro deu ao exército.

Abradatas, rei dos súsios, disse:

— Ciro, com vosso consentimento eu irei postar-me com minha companhia no lugar que fique mesmo defronte do exército contrário.

Ciro admirou sua coragem, e dando-lhe a destra, perguntou aos outros persas, chefes dos carros, se condescendiam com a proposta de Abradatas: e como eles respondessem que lhes não estava bem, deitou sortes, e Abradatas teve o que desejava, ficando encarregado de fazer frente aos soldados egípcios. Então os oficiais se retiraram, fizeram os seus preparativos, comeram, puseram sentinelas e deitaram-se.

Amizade de Panteia para com seu marido — Ciro anima as tropas

Ao outro dia pela manhã, enquanto Ciro sacrificava, os soldados, depois de comerem e fazerem libações, se armaram com lindas túnicas, belas couraças e elegantes capacetes. Nas testas e peitos dos cavalos puseram ornatos, também nas pernas dos da cavalaria, e nas ilhargas dos ocupantes dos carros. Assim as cores do bronze e púrpura faziam brilhar todo o exército. O carro de quatro temões, puxado por oito cavalos, que pertencia a Abradatas, estava esplendidamente enfeitado. Quando Abradatas ia para vestir a couraça de linho, à maneira de seu país, Panteia lhe apresentou um capacete, uns braçais e um bracelete, tudo de ouro, uma capa talar de púrpura com franjas, e um penacho cor de jacinto. Tinha ela feito todas estas coisas sem dar parte a seu marido, servindo-lhe de molde os fatos ordinários dele. Abradatas, admirado, perguntou-lhe se se tinha desfeito de suas alfaias para fazer aquela armadura.

— Não — respondeu Panteia — ficou-me a mais rica; porque se aos outros parecerdes o que a mim pareceis, para mim sereis a mais preciosa das alfaias.

Ao mesmo tempo que proferia estas palavras, lhe vestia a armadura, e as lágrimas lhe corriam pelas faces, apesar da diligência que fazia para contê-las.

Abradatas, já antes digno de admiração por sua bela estatura, agora, com a nova armadura, ainda parecia muito mais elegante, e mostrava todas as aparências de homem livre, como se naturalmente o fosse. Tomou as rédeas das mãos do auriga, e ia já a subir ao carro, quando Panteia mandou retirar os circunstantes, e disse:

— Abradatas, se no mundo têm existido mulheres que estimem mais seus maridos do que a si próprias, creio que vós sabeis que eu sou uma delas: nem será mister demonstrá-lo, pois minhas ações têm mais força probativa do que longos discursos. Mas sem embargo desta adesão, que bem reconheceis em mim para convosco, juro pela minha amizade e pela vossa, que antes quero acompanhar-vos ao sepulcro, morrendo vós coberto de glória, do que viver convosco, cobertos ambos nós de opróbrio. Tanto nos devemos empenhar na prática de ações que nos honrem! Grandes obrigações devemos a Ciro, que, sendo eu sua cativa e escolhida para ele, nem quis usar de mim como escrava, nem como livre com um nome ignominioso: guardou-me para vós, como se eu fosse mulher de um irmão seu. Além disto, quando Araspas, o meu guarda, se retirou, eu prometi a Ciro que se me desse licença de vos enviar um mensageiro, acharia em vós um amigo mais fiel e mais útil do que Araspas.

Abradatas extasiou-se com estas expressões, e pondo a mão sobre a cabeça de sua esposa, olhou para o céu, e exclamou:

— Grande Júpiter, permiti que eu seja um marido digno de Panteia, e um amigo digno de Ciro, que nos tem tratado com tanta deferência.

Ditas estas palavras, subiu ao carro, que o auriga logo fechou. Panteia, que já não podia abraçar seu marido, beijava o carro. Este se ia afastando, e ela o ia seguindo, sem que o soubesse Abradatas, que, voltando-se para trás e vendo sua mulher, disse:

— Animai-vos, Panteia, e alegrai-vos: separemo-nos.

Então os eunucos e as criadas a conduziram ao seu carro, deitaram-na e a cobriram com um pavilhão. Depois disto todas as atenções se dirigiram para Abradatas, que, apesar de sua elegância e da de seu carro, ninguém até agora havia contemplado, enquanto Panteia esteve presente.

Acabado o sacrifício com feliz auspício, e formado o exército como tinha sido ordenado por Ciro, este mandou postar sentinelas a distâncias diversas, convocou depois os oficiais, e assim lhes falou:

— Aliados, fiéis e valorosos, os deuses nos animam com os mesmos presságios com que nos animaram na vitória. Eu quero que tenhais presentes aqueles que devem excitar vosso valor marcial. Estais muito mais exercitados na arte da guerra do que os inimigos. Todos vós tendes sido juntamente disciplinados, e viveis reunidos há mais tempo do que os adversários; todos partilhastes a vitória, enquanto que o maior número dos inimigos partilhou o destroço. Pelo que toca aos soldados das duas hostes, que ainda não combateram, os da hoste contrária sabem que têm por camaradas gente covarde, e vós tendes a certeza de pelejardes entre gente desejosa de auxiliar-vos. É natural que com a mútua confiança os soldados sustentem todos a luta com o mesmo acordo: sem ela cada um trata somente de evitar o perigo. Bravos, marchemos contra os inimigos. Temos carros armados para opor a carros desarmados, e com cavaleiros e cavalos bem armados havemos de combater de perto uma cavalaria sem armas. A infantaria é a mesma que já vencemos; e a respeito dos egípcios, suas armas são como sua forma de peleja: seus grandes escudos lhes impossibilitam os movimentos e lhes não permitem observar o que se passa a pequena distância; formados a cem de fundo, só um pequeno número poderá entrar em ação. Se tentarem romper os nossos esquadrões, será preciso que primeiro vençam a resistência dos nossos cavalos e dos que os cobrem; e dado o caso que cheguem a rompê-los, como poderão simultaneamente defender-se da cavalaria, infantaria e torres? Os soldados que guarnecem as torres prestar-nos-ão grande serviço, ferindo os inimigos e lançando o descoroçoamento entre eles. Se qualquer dentre vós necessita de alguma coisa, queira dizê-lo. Nada nos faltará com a proteção das divindades. Se alguém tem alguma coisa que dizer, pode falar: se não, ide cumprir com os deveres religiosos e depois de invocardes os deuses a quem sacrificamos, ide ocupar os vossos postos. Cada um de vós faça a seus soldados as mesmas recomendações que eu vos fiz, e para com eles se mostre digno do comando que exerce, dando provas de coragem no semblante e nas palavras.

Mais fontes sobre Pérsia
Comentários sobre a fonte

Cadastre-se ou faça login para comentar

Cadastre-se

Ainda não há comentários nessa página.
Seja o primeiro a comentar.

Utilizamos cookies essenciais e tecnologias semelhantes de acordo com a nossa Política de Privacidade e, ao continuar navegando, você concorda com estas condições.