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Ciropédia, de Xenofonte - Livro 8

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Representação moderna de Ciro o Grande.

Sobre a fonte

Ciropédia (ou A educação de Ciro) é uma biografia de Ciro, o Grande (580-530 a.C.), escrita pelo ateniense Xenofonte. A obra tem um caráter parcialmente ficcional e seu uso como fonte histórica tem sido repetidamente discutida. Xenofonte viveu entre 430-355 a.C., cerca de 100 depois da morte de Ciro. Apenas o primeiro dos seus 8 livros é, estritamente falando, a Ciropédia. O primeiro livro é dedicado à origem e educação de Ciro e à sua estada na corte do seu avô materno, o rei Medo Astíages. Os livros 2 a 7 cobrem a vida de Ciro II enquanto vassalo dos Medos. O livro 8 é um ensaio sobre o modo de Ciro governar e sobre as suas visões da monarquia.

Discurso de Crisantas — Exercícios a que Ciro acostumava os que eram chamados ao comando — Meios empregados por Ciro para se fazer amar — Magnificência de Ciro — Ciro premia suas tropas — Ordem com que o exército de Ciro acampava e decampava — Ciro torna à pátria — Discurso de Cambises — Casamento de Ciro — Ciro manda sátrapas para as províncias — Limites do Império de Ciro — Discurso de Ciro antes de sua morte — Quadro comparativo dos costumes dos persas do tempo de Ciro e do tempo do autor.

Discurso de Crisantas

Tendo Ciro acabado de falar, Crisantas levantou-se e disse:

— Amigos meus, não é hoje, nem nesta ocasião somente, que tenho reconhecido que um bom príncipe não difere de um bom pai. O pai trabalha para estabelecer solidamente a fortuna de seus filhos; do mesmo modo Ciro, pelos conselhos que acaba de dar-nos, mostra curar de nos garantir uma felicidade duradoura. Mas como me parece que ele tocou mui rapidamente certos pontos, suprirei o que faltou, a favor dos que não estão suficientemente instruídos. Peço-vos que considereis se tropas indisciplinadas tomaram jamais, ou defenderam as praças de seus aliados, ou obtiveram alguma vitória. Refleti se um exército é mais facilmente derrotado, do que quando cada um cuida da segurança particular; se tropas desobedientes foram jamais bem sucedidas. Sem obediência, que cidades seriam bem governadas, que casas bem administradas, que navio chegaria ao porto de seu destino? E não é à submissão às ordens do nosso general que nós devemos os bens de que gozamos? A submissão fazia que fôssemos com ardor de dia e de noite aonde éramos chamados; que tudo cedesse à carga de nossos batalhões, e que as ordens de nosso chefe fossem pontualmente executadas. Ora, se a obediência é necessária para adquirir, sabei que não o é menos para conservar.

Antigamente muitos dentre nós tinham senhores, e não tinham ninguém a quem mandassem: hoje nossos negócios acham-se em tal estado, que também nós temos escravos, uns mais, outros menos. Queremos que eles nos sejam sujeitos; não é justo que o sejamos também a nossos superiores? Com esta diferença, porém, que os escravos servem por força seus senhores, e nós, se queremos agir como homens livres, devemos fazer espontaneamente o que reputamos mais digno de louvor. Olhai para os países governados por muitos magistrados, e vereis que aquele em que os cidadãos são mais obedientes é o que está menos exposto a sofrer a lei do vencedor. Sede, pois, assíduos à porta do palácio de Ciro; façamos tudo que pode garantir a posse dos bens que nos importa conservar; estejamos sempre prontos a executar as ordens de Ciro; saibamos que ele nada pode fazer para si, que não redunde em proveito nosso, porque nossos interesses são comuns, e temos os mesmos inimigos que combater.

Exercícios a que Ciro acostumava os que eram chamados ao comando

Depois deste discurso de Crisantas, muitos dos circunstantes, persas e aliados, levantaram-se, aprovando em alta voz o que acabavam de ouvir. Assentou-se que os grandes fossem todos os dias à porta de Ciro, para receber suas ordens, e que aí estivessem até que ele os despedisse. O que então se assentou, ainda é praticado na Ásia, na corte do rei, pelos principais senhores; os habitantes das províncias igualmente se dirigem à porta dos governadores. Até aqui temos visto que o fim de todas as instituições de Ciro era consolidar seu poder e o dos persas; por isso foram constantemente sustentadas por seus sucessores, não falando daquelas variações que sofrem todos os estabelecimentos humanos. No tempo dos príncipes virtuosos, observam-se as leis com exação; elas são violadas no tempo dos maus príncipes. Os senhores iam, pois, todos os dias à porta de Ciro com seus cavalos e suas armas, segundo a praxe adotada pelos bravos que tinham contribuído para a destruição do Império da Assíria.

Ciro criou diferentes oficiais, a quem confiou diversos misteres, a cobrança dos tributos, o pagamento das despesas, a inspeção das obras públicas, a guarda do tesouro, o aprovisionamento da sua casa. Outros foram nomeados para vigiar somente o tratamento dos cavalos e dos cães. A respeito dos que ele escolhia para sustentáculos de seu poder, Ciro não cometeu a ninguém o cuidado de velar sobre eles, persuadido de que esta função lhe pertencia especialmente. Sabia que nas batalhas era com estes homens a seu lado que ele havia de pelejar e de arrostar os maiores perigos; que era de sua classe que ele havia de tirar taxiarcas de pé e de cavalo, generais capazes de comandar em sua ausência, governadores de cidades e províncias, e até embaixadores; porquanto considerava como objeto essencial, levar a cabo suas empresas sem empregar a força. Ora, presumia que seus negócios iriam mal, se os primeiros empregados não estivessem em estado de desempenhar suas funções; e que iriam bem, se esses empregados fossem tais quais deviam ser. Resolveu-se, pois, a entregar-se também a esta superintendência: pensava que isto seria para ele novo motivo para se entreter na prática da virtude, persuadido de que era impossível excitar os outros a ela, não dando ele o exemplo.

Penetrado destas verdades, Ciro entendia que para velar sobre os grandes, a primeira coisa necessária era o descanso; mas via, de um lado, que as despesas necessárias em um Império tão vasto como o seu, lhe não deixava desprezar as finanças; de outro lado, que se quisesse velar por si mesmo sobre elas, não lhe sobejaria, por causa da extensão de seus domínios, um só momento para se ocupar de um objeto de que dependia a salvação do Império. Buscando o meio de poder ao mesmo tempo administrar bem as finanças e ter descanso, lembrou-se de seguir a ordem que se observa nos corpos militares. Os decadarcas vigiam suas decúrias, e são vigiados pelos logagos, estes pelos quiliarcas, que também o são pelos miriarcas; de maneira que no mais numeroso exército ninguém há que não reconheça um superior; e quando o general quer pô-lo em movimento, basta intimar suas ordens aos miriarcas. Sobre este modelo Ciro formou seu plano de administração; assim tudo se regulava, conferindo ele com poucas pessoas, e ficava-lhe mais tempo livre do que a um chefe de família, ou ao comandante de um navio. Estabelecida esta nova ordem, intimou seus amigos para que se conformassem com ela, e assim os fez participantes do mesmo descanso que tinha obtido para si.

Desde logo tratou de tornar os homens, a quem se tinha associado, tais quais ele os desejava. Se algum dentre eles era bastante rico para não precisar de trabalhar, e não comparecia à sua porta, perguntava-lhe a razão disso. Presumia ele que os que aqui vinham com assiduidade, estando continuamente debaixo de seus olhos, e tendo pessoas virtuosas por testemunhas de seu procedimento, não ousariam praticar nenhuma ação vergonhosa ou criminosa; e que a ausência dos outros tinha por motivo a devassidão, alguns maus intentes, ou a negligência.

Digamos, pois, primeiramente, o que ele fazia para obrigar estes mesmos a se apresentarem. Ordenava a um de seus mais íntimos amigos que fosse apoderar-se de seus bens, não dizendo senão que se apoderava do que lhe pertencia. Os que eram assim despojados vinham queixar-se: Ciro, durante muito tempo, fingia não ter vagar para ouvi-los, e depois de os ouvir adiava muito o exame da questão. Esperava assim acostumá-los a vir cortejá-lo assiduamente, tornando-se menos odioso do que obrigando-os por meio do castigo. Tal foi o único meio por ele empregado para fazê-los entrar em seus deveres. Ainda punha em prática outros meios, como encarregar das comissões mais fáceis e mais lucrativas os que freqüentavam o palácio, e não conceder nenhuma graça aos que não compareciam. O meio mais poderoso, mas que Ciro não empregava senão contra os refratários aos precedentes, era despojá-los efetivamente de todos os seus bens, e dá-los a outros com cujos serviços podia mais contar: e deste modo punha um amigo útil no lugar de um mau amigo.

Tal era o procedimento de Ciro para com os que não compareciam. Enquanto aos que se apresentavam regularmente, ele pensava que, sendo seu chefe, os exercitava infalivelmente na prática das ações virtuosas, se também seu comportamento lhes oferecesse exemplos de virtude. Concordava em que as leis escritas podem concorrer para melhorar os homens; mas dizia que um bom príncipe era uma lei vidente, que ao mesmo tempo observa e ordena, e pune a desobediência.

Segundo estes princípios, Ciro começou pelo culto divino, de que se ocupou com muito zelo; porque tinha chegado ao mais alto grau de prosperidade. Instituiu magos, e ele mesmo, desde o romper da aurora adorava os deuses, e oferecia sacrifícios aos que eram designados pelos magos, instituição seguida sem interrupção por seus sucessores. Os persas imitaram o zelo religioso de Ciro, na esperança de se tornarem mais felizes, tomando para modelo um homem que ao mesmo tempo era seu chefe e o mais feliz dos homens. Demais, pensavam que procedendo assim lhe agradariam. De sua parte, Ciro considerava a piedade deles como um penhor da sua seguridade, do mesmo modo que os navegadores se julgam mais seguros na companhia de pessoas de bem do que na de ímpios. Estava persuadido que quanto mais temessem os deuses os que o rodeavam, menos culpados se fariam para com os outros, e para com ele, que os havia enchido de benefícios. Esperava que mostrando-se rígido observador da justiça, e cuidadoso em obviar ao mau tratamento de algum de seus amigos ou aliados, acostumá-los-ia a abster-se de qualquer lucro ilícito. Persuadia-se de que lhes inspiraria melhor o pudor, se respeitasse todos, para que ninguém praticasse ações que o ferissem; sabia que os homens são naturalmente mais dispostos a respeitar não só seus superiores, mas também seus iguais, quando estes se respeitam e não faltam aos seus dever es; e que quanto mais modesta é uma mulher, mais veneração inspira.

Para manter a subordinação, Ciro galardoava com mais liberalidade a obediência pronta do que as ações brilhantes e perigosas: nunca se arredou desta prática. Fazia nascer nos outros a virtude da temperança, apresentando-lhes a sua para modelo. Com efeito, quando aquele que pode impunemente ser violento ou injusto, sabe moderar-se, os menos poderosos não ousam cometer abertamente nem violências nem injustiças. Fazia diferença entre pudor e temperança: o homem que tem pudor receia praticar à vista de todos uma ação vergonhosa; o homem temperante nem mesmo secretamente a pratica. Julgava que daria uma grande lição de moderação, fazendo ver que os prazeres não o desviavam de seus deveres. Com este procedimento conseguiu que em sua corte as classes inferiores tratassem seus chefes com deferência e respeito, e que uns e outros se tratassem mutuamente com toda honestidade. Aí não se ouviam nem os ímpetos da cólera, nem os risos da alegria imoderada: tudo se passava com decência. Era assim que os persas viviam no palácio de Ciro: tais eram os exemplos que eles tinham à vista!

Para acostumar aos exercícios militares os que precisavam destes exercícios, levava-os à caça, porque considerava este passatempo como uma preparação para a guerra, principalmente para a cavalaria. A necessidade de perseguir um animal que foge obriga o cavaleiro a firmar-se sobre o cavalo em todas as espécies de terrenos, ao mesmo tempo que o desejo de fazer valer sua destreza o torna ágil.

Ciro pensava que um príncipe não é digno de governar se não é mais perfeito do que seus súditos. Ao mesmo tempo que exercitava os seus, também se exercitava mais assiduamente que nenhum deles na temperança, nas manobras militares e em todas as partes da arte da guerra. Com efeito, não os levava à caça senão quando os negócios o deixavam sair da cidade. Esta contínua aplicação lhe havia granjeado grande superioridade em todos os exercícios: e soube fazer com que os seus alcançassem a mesma superioridade, tanto por seus exemplos como pelo cuidado de premiar os que mostravam mais nobre ardor, já distribuindo-lhes postos distintos ou concedendo-lhes honrosos privilégios. Disto nascia grande emulação;, todos aspiravam a merecer sua estima.

Uma das máximas de Ciro era que um príncipe, para captar a afeição de seus súditos, não deve contentar-se de excedê-los em virtudes, mas deve também usar de artifício. Vestiu-se à maneira dos medos, e fez com que os grandes o imitassem; porque o trajo de que usam os medos tem a dupla vantagem de ocultar os defeitos do corpo e dar aos homens uma aparência mais elegante. Aprovava que os persas pintassem os olhos e o rosto, para torná-los mais animados. Recomendava-lhes que não escarrassem nem se assoassem na presença de alguém; e que nunca voltassem a cabeça para olhar para outro objeto. Tudo isto lhe parecia próprio para tornar respeitáveis os chefes.

Meios empregados por Ciro para se fazer amar

Tais eram os exercícios e o aparato faustoso, a que Ciro acostumava os que ele chamava ao comando; enquanto aos que ele destinava à servidão, longe de os excitar a abraçar a vida laboriosa dos homens livres, nem mesmo lhes concedia o uso das armas; mas curava de que lhes não faltasse o necessário durante os exercícios de seus senhores. Nas viagens mandava conduzi-los, como rebanhos, para lugares em que pudessem matar a sede: à hora da comida parava, para lhes dar de comer. Esta bondade, que evidentemente não tendia senão a perpetuar sua escravidão, fez com que eles, do mesmo modo que os grandes, lhe dessem o nome de pai. Eis como Ciro consolidou o vasto Império dos persas. Vendo que entre os povos que ele acabava de submeter havia homens distintos, ligados entre si por estreitos laços de amizade; que muitos tinham às suas ordens corpos de cavalaria e infantaria; que alguns juntavam à nobreza de sentimentos os talentos necessários para comandar; e que eles vinham muitas vezes visitá-lo, o que era inevitável, porquanto também os empregava em seu serviço; pensou que teriam muitas ocasiões de lhe serem nocivos. Refletindo sobre os meios de se pôr a coberto de suas tentativas, entendeu que não era conveniente desarmá-los, o que seria fazer-lhes uma injúria, de onde podia proceder a ruína do Império; e que não admiti-los no palácio era testemunhar-lhes abertamente sua desconfiança; e concluiu que o partido mais seguro era fazer com que eles lhe fossem mais afeiçoados do que eram entre si. Vou mostrar como o conseguiu.

Ciro atendeu principalmente a não deixar escapar nenhuma ocasião em que pudesse mostrar a liberalidade de seu coração. Como sabia que é difícil amar os que parecem odiar-nos e querer bem a quem nos quer mal, também julgava que era impossível que os que se consideram estimados aborreçam aqueles de quem têm recebido provas de afeição. Enquanto sua situação o não deixou ser liberal, acudia às necessidades deles, congratulava-os de suas felicidades e pranteava seus infortúnios; e logo que pôde ser generoso, ordenou que a mesa fosse sempre coberta de iguarias, semelhantes às que costumava ter, e que chegassem para grande número de convidados. Mandava iguarias de sua mesa aos seus guardas que se haviam distinguido por sua vigilância, zelo, ou outras ações louváveis.

O mesmo praticava com seus criados que melhor o serviam. Demais, mandava trazer à sua presença toda a carne que lhes estava destinada, e se queria honrar algum de seus amigos, mandava-lhe um prato de sua mesa. Ainda hoje os persas têm muito respeito aos que recebem alguma coisa da mesa do rei, porque esta distinção lhes faz presumir que eles gozam de sua privança. Mas não é somente pelas razões apontadas que as iguarias mandadas da mesa do rei dão tanto prazer aos que as recebem; é também porque são mais bem cozinhadas.

Não devo passar em silêncio os outros meios que Ciro destramente empregava para se fazer amar. Se ele teve a vantagem de ser o mais rico dos homens, também excedeu todos em liberalidade; e esta virtude passou para seus sucessores. Com efeito, que príncipe enriquece mais seus amigos do que o rei da Pérsia? Que outro príncipe veste com mais magnificência a gente de sua comitiva e distribui, como ele, braceletes, colares, cavalos e freios de ouro, ornatos de que na Pérsia se não pode usar sem serem dados pelo rei? Que outro soberano mereceu, pelos benefícios que fez, que seus súditos o preferissem a seus irmãos, pais e filhos? E voltando a Ciro, que outro conquistador foi, desde sua morte, honrado com o título de pai pelos mesmos povos conquistados? Título que, decerto, denuncia que ele foi antes um benfeitor do que um espoliador.

Também sabemos que foi por meio de liberalidades e honrosas distinções que ele ganhou a afeição desses homens que se chama os ouvidos e os olhos do rei. Sua generosidade para com os que lhe traziam notícias importantes, excitava os outros a observar tudo que julgavam poder mais interessar-lhe, o que deu lugar a dizer-se que o rei da Pérsia tem muitos olhos e muitos ouvidos.

Não admira que, possuindo tantas riquezas, fosse tão liberal; mas o que se não pode assaz admirar, é que, sendo rei, quisesse exceder a todos os seus amigos no cumprimento dos deveres de amizade. Conta-se que ele costumava dizer que o comportamento do bom rei não difere do comportamento do bom pastor; que assim como o pastor não tira lucro de seus rebanhos senão quando lhes procura o bem-estar de que são susceptíveis, também o rei não é bem servido por seus vassalos senão quando concorre para a sua felicidade. Surpreender-nos-á que com tais sentimentos ele ambicionasse distinguir-se entre todos pela beneficência?

A este respeito referirei a bela lição que Ciro um dia deu a Creso. Diz-se que este príncipe lhe representava que, dando com tanta profusão, empobreceria, enquanto que podia acumular em seu palácio tantas riquezas, como ninguém jamais possuíra.

— Quanto ouro — lhe perguntou Ciro — pensais vós que eu hoje teria, se o tivesse acumulado desde que sou rei?

Creso fixou uma soma enorme.

— Pois bem — replicou Ciro — mandai com Histaspes, que aqui está, um homem de vossa confiança; vós, Histaspes, ide ter com meus amigos; fazei-lhes saber que preciso de dinheiro, e dizei a cada um deles que me forneça quanto puder.

Escreveu cartas e encarregou Histaspes de as ir entregar. Nestas cartas, ele pedia que o portador fosse recebido como um de seus amigos. Histaspes, voltando com o enviado de Creso, que trazia as respostas, disse a Ciro:

— Senhor, podeis daqui em diante contar-me entre vossos mais ricos vassalos; vossas cartas me granjearam inumeráveis dádivas.

— Eis aqui, — disse Ciro a Creso — uma soma com que posso contar: considerai o que meus amigos me ofereceram, e calculai a quanto subirão as somas de que eu poderia dispor no caso de precisar delas.

Creso fez o cálculo e viu que excedia muito as que ele teria podido juntar se fosse menos liberal.

— Vede — tornou Ciro — que não sou tão pobre como vós pensáveis; queríeis que para engrossar meu tesouro, me expusesse ao ódio público, e pagasse a quem o guardasse? Meus amigos são os meus tesouros; são uma guarda mais segura do que uma guarda de mercenários. Sabei que eu não tenho pela maior das felicidades o possuir grandes bens unicamente para os guardar; se a felicidade fosse isso, nada igualaria a dos soldados que guarnecem uma cidade, os quais guardam tudo que nela se encerra. As riquezas não tornam feliz senão aqueles que depois de tê-las adquirido por meios justos, usam delas generosamente.

Assim discorria Ciro, e seu comportamento correspondia ao seu modo de discorrer.

Sua vigilância estendia-se a tudo. Tinha notado que os homens, enquanto passam bem, tratam de obter tudo que serve no estado de saúde, deixando de prover-se do que é útil no caso de moléstia. Querendo obviar a este inconveniente, chamou para junto de si médicos hábeis. Quando ouvia falar de instrumentos úteis, de alimentos, de remédios, fazia logo provisões deles. Se algum daqueles por quem se interessava particularmente, adoecia, mandava ministrar-lhe todos os socorros necessários. Se o doente recobrava a saúde, Ciro agradecia aos médicos. Tais eram, além de outros muitos, os meios que ele empregava para conseguir o primeiro lugar entre aqueles de cuja amizade desejava gozar.

Magnificência de Ciro

Contemos agora com que aparato Ciro saiu de seu palácio a primeira vez. Na véspera da cerimônia mandou chamar os chefes, assim dos persas como dos aliados, e lhes deu vestimentas à moda dos medos. Fazendo esta distribuição, disse-lhes que queria ir com eles visitar os campos consagrados aos imortais, e aqui oferecer sacrifícios.

— Amanhã — acrescentou ele — antes de nascer o sol, encaminhai-vos às portas de meu palácio e postai-vos na ordem que Feraulas vos indicar. Quando eu sair, seguir-me-eis ao lugar que tiver sido designado.

Depois de ter distribuído aos principais chefes os mais belos vestuários, mandou trazer muitos outros das mais brilhantes cores, e os distribuiu por todos os capitães, dizendo-lhes:

— Paramentai vossos amigos, como eu vos acabo de paramentar.

— E vós, senhor — lhe disse um deles — quando haveis de tratar vossos paramentos?

— O cuidado, que tenho de vós — respondeu ele — não é para mim um belo paramento?

Os chefes retiraram-se, mandaram chamar seus amigos e lhes distribuíram vestimentas.

No dia seguinte, antes de amanhecer, tudo estava preparado. Estava de cada lado da rua uma ala de soldados. Um corpo de doríforos estava postado diante do palácio, dois mil de cada lado. Os soldados de cavalaria tinham-se dirigido ao mesmo lugar, e se haviam apeado, escondendo as mãos debaixo de suas capas, o que ainda se pratica quando se está em presença do rei. Os persas estavam à direita do caminho, os aliados à esquerda; os carros estavam também postos dos dois lados em número igual. Abertas as portas do palácio, saíram primeiramente quatro touros soberbos, que haviam de ser imolados a Júpiter e às outras divindades designadas pelos magos. Depois dos touros vinham os cavalos destinados a serem sacrificados ao Sol; depois um carro branco de temão dourado, enfeitado com flores, consagrado a Júpiter. Seguia-se outro carro branco também ornado de flores, consagrado ao Sol; enfim, um terceiro, cujos cavalos iam cobertos de xairéis, e atrás dele iam homens, que levavam fogo em um grande vaso.

Enfim Ciro apareceu sobre um coche, vestido de púrpura, e com uma tiara na cabeça; e logo todos se prostraram e o adoraram. Logo que o coche saiu do palácio, os quatro mil doríforos se puseram em marcha, dois mil de cada lado. Três mil eunucos ricamente vestidos, e armados de dardos, o seguiam a cavalo; depois iam duzentos cavalos levados à mão, enfeitados com freios de ouro, e cobertos de xairéis riscados. Seguiam-se dois mil piqueiros, atrás dos quais ia, debaixo do comando de Crisantas, o corpo mais antigo da cavalaria persa, composto de dez mil homens; depois deste primeiro corpo, ia outro de dez mil cavaleiros persas, comandados por Histaspes, depois um terceiro capitaneado por Gadatas. Em seguida iam os cavaleiros medos, os armênios, os cadúsios, os sacas. Atrás da cavalaria iam os carros, dirigidos pelo persa Artabatas.

Assim que chegaram aos campos consagrados aos deuses, fizeram-se sacrifícios a Júpiter, ao Sol, à Terra e aos heróis protetores da Síria. Depois dos sacrifícios, Ciro marcou um espaço de cinco estádios, e mandou que os corpos de cavalaria, divididos por nações, corressem a galope. Ele mesmo correu com os persas, e ganhou a vitória. Dentre os medos foi vencedor Artabazo, a quem Ciro tinha dado um cavalo; dos sírios foi seu chefe Gadatas, dos armênios foi Tigranes, dos hircânios foi o filho de seu comandante, dos sacas foi um simples cavaleiro, cujo cavalo se adiantou aos outros quase pela metade da arena; dentre os cadúsios foi Ratenes que teve o prêmio. Ciro mandou que todos os carros corressem na planície, depois do que distribuíram-se os prêmios, que foram bois e certo número de taças. Acabados os jogos tornaram para a cidade.

Querendo Ciro celebrar sua vitória, convidou seus amigos, em que ele via respeito, e mais zelo pelo aumento de sua autoridade. Também convidou o medo Artabazo, o armênio Tigranes, o chefe da cavalaria hircânia e Gobrias. Enquanto a Gadatas, como era o chefe dos eunucos, e administrador do palácio, quando havia muitos convidados, incumbia-se de pôr tudo em boa ordem, e não se punha à mesa. Em todas as outras ocasiões, Gadatas comia com o príncipe, de quem recebia demonstrações de amizade. Quando os convidados chegaram, não se sentaram ao acaso; Ciro fez sentar-se à sua esquerda, que é a parte que mais precisa de ser protegida, o que ele considerava o primeiro de seus amigos, o segundo à direita, o terceiro à esquerda, o quarto à direita e assim até ao último.

Ciro julgava útil manifestar publicamente sua estima. Com efeito, não pode haver emulação onde os homens distintos por seu mérito não alcançam preferências nem recompensas; quando, porém, os mais virtuosos são os respeitados, todos à porfia querem ser virtuosos.

Ciro premia suas tropas

Concluído o banquete, Ciro mandou que todos os aliados, que haviam voluntariamente abraçado seu partido, se retirassem para suas terras, exceto os que preferissem estabelecer-se na Assíria. Os que eram medos ou hircânios obtiveram terras e casas, que seus descendentes ainda possuem. Os que preferiram retirar-se, receberam muitas dádivas; e todos, soldados e oficiais, foram penhorados da generosidade do príncipe. Ciro mandou depois distribuir pelo seu próprio exército os tesouros tomados em Sardes, começando pelos miriarcas e pelos oficiais mais ligados à sua pessoa, que receberam à proporção de seus serviços. A distribuição do resto foi confiada aos miriarcas, para ser feita segundo a regra observada a seu respeito: cada um dos chefes dava a seus subordinados a porção que lhes tocava e assim até aos exadarcas, que fizeram a distribuição pelos seus soldados conforme o mérito de cada um; de maneira que a repartição se fez com justiça. Esta grande liberalidade deu lugar a boatos diferentes. O príncipe, diziam uns, tem grandes riquezas, visto que dá com tanta largueza. Que riquezas pode ele ter? — diziam outros; é sabido que não tem gênio para entesourar, e que gosta mais de dar do que de possuir. Ciro, informado do que se pensava e do que se dizia dele, reuniu seus amigos e todos cuja presença julgava necessária, e lhes falou assim:

— Amigos, tenho visto pessoas que querem parecer mais ricas do que são. Pensam que assim gozam de maiores considerações, mas acontece-lhes precisamente o contrário; porque todo aquele que afeta possuir grandes riquezas, e não socorre seus amigos proporcionalmente, somente ganha reputação de sórdida avareza. Outros empenham-se em ocultar suas riquezas; estes, na minha opinião, não são menos inúteis na sociedade; porque seus próprios amigos, não conhecendo sua fortuna, e enganados pela aparência, não ousam muitas vezes descobrir-lhes suas necessidades. Penso que é de homem leal fazer ver suas riquezas e servir-se delas para assinalar sua generosidade. Quero, pois, patentear tudo que possuo: dar-vos-ei conta do que não posso mostrar-vos.

Logo lhes apresentou grande número de ricos objetos, e fez menção de outros que não estavam à vista.

— Acreditai, amigos — continuou ele — que estes objetos são tanto meus, como vossos; eu os tenho a juntado, não para estragá-los, mas para ter somente com que recompensar as boas ações, e para poder socorrer aqueles dentre vós que, achando-se necessitados, recorram a mim.

Ordem com que o exército de Ciro acampava e decampava

Ciro, vendo algum tempo depois que o estado de seus negócios em Babilônia lhe permitia afastar-se daí, fez preparativos para passar à Pérsia, e partiu logo que se achou provido de tudo que julgou necessário. É aqui o lugar próprio para falar da ordem com que um exército tão numeroso acampava e levantava campo, e da presteza com que cada um ocupava o lugar que lhe pertencia. É sabido que quando o rei da Pérsia acampa, também os cortesãos o acompanham e se alojam em barracas, assim de inverno como de verão.

Ciro mandou que a entrada de sua barraca olhasse sempre para o lado do oriente, e fixou o intervalo que devia separá-la das dos doríforos. Assinalou à sua direita o alojamento dos padeiros, à esquerda dos cozinheiros; também colocou à sua direita os cavalos, e à esquerda as outras bestas de carga. Tudo mais foi regulado de maneira que cada um sabia bem o lugar e o espaço que devia ocupar. Quando se levantava o campo, cada um recolhia a bagagem de que devia tomar conta, outros a punham sobre as cavalgaduras. Os que as conduziam, caminhavam todos ao mesmo tempo para os lugares que lhes estavam designados, e também ao mesmo tempo carregavam; de modo que tanto tempo era preciso para levantar uma barraca, como para levantar todas. O mesmo acontecia a respeito dos víveres, porque cada criado tinha seu trabalho marcado. Não eram somente os padeiros e os cozinheiros, a quem ele destinava lugares cômodos para seu trabalho; os lugares destinados para as tropas foram também escolhidos conforme a qualidade das armas de que usavam; e cada corpo conhecia tão bem a posição que devia ocupar, que nunca se enganava.

Ciro pensava que, se era necessário pôr em ordem uma casa particular, para saber onde ir buscar as coisas de que há necessidade, muito mais importava na guerra ter esta estação; porque quanto mais dependem do momento as ocasiões de operar, mais perigoso é não se aproveitar delas quando se apresentam. Também sabia que os grandes sucessos procedem da celeridade em aproveitar-se do momento propício. Tais eram os motivos que o tornavam tão atento a estas disposições.

Quando acampava, armava-se logo seu pavilhão no meio do campo, por ser este o lugar menos exposto. À roda de seu pavilhão alojavam-se, segundo sua prática ordinária, seus amigos mais íntimos; imediatamente depois os cavaleiros formavam um círculo com os condutores dos carros, que, como ele entendia, deviam ocupar o lugar mais seguro porque, não podendo ter suas armas à mão, careciam de tempo para se porem em estado de defesa. Os peltastas ficavam à direita e à esquerda de seu pavilhão e da cavalaria, e os arqueiros, parte à frente, parte atrás da cavalaria.

Os hoplitas e os que usavam de grandes escudos rodeavam o acampamento à maneira de uma forte muralha, para repelir, no caso de ataque, os primeiros esforços do inimigo, e dar tempo a que a cavalaria se armasse. Os hoplitas, peltastas e arqueiros, dormiam nas fileiras, para que de um lado os hoplitas se achassem em estado de repelir o inimigo, se este tentasse surpreender o acampamento durante a noite, e de outro lado, os seteiros defendessem os hoplitas, despedindo setas contra os que se aproximassem.

As tendas dos chefes distinguiam-se por divisas particulares; e assim como alguns criados inteligentes conhecem em uma cidade as casas de muitos cidadãos, principalmente dos mais notáveis, igualmente os ajudantes de campo de Ciro conheciam também as tendas e as divisas dos principais oficiais, que se queriam falar a algum, eles não procuravam, corriam pelo caminho mais curto. Como cada nação ocupava um ponto do acampamento, via-se facilmente onde se guardava a disciplina, e onde as ordens não eram executadas. Ciro entendia que, com estas disposições, se o inimigo atacasse seu acampamento, quer de dia, quer de noite, cairia como em uma emboscada.

Ciro não reduzia a arte da guerra a saber ordenar um exército com uma frente maior ou menor, formá-lo em linha, quando se achava em coluna, mudar a ordem de batalha, conforme o inimigo se apresentasse da direita, da esquerda, ou da parte detrás; entendia que não era menos essencial saber dividir as tropas quando as circunstâncias o exigiam, distribuí-las pelas posições mais vantajosas, e apressar a marcha para prevenir o inimigo. Opinava que era tudo isto que constituía um hábil general. Nas marchas variava suas ordens, segundo as conjunturas; mas nos acampamentos raras vezes alterava a disposição, de que acabámos de falar.

Ciro torna à pátria — Discurso de Cambises — Casamento de Ciro

Logo que o exército chegou à Média, Ciro disse a seu tio que lhe havia destinado um palácio em Babilônia, para aí ter, quando fosse à Assíria, uma casa sua; e ao mesmo tempo lhe ofereceu presentes de grande preço. Ciaxares os aceitou, e também lhe mandou oferecer, por sua filha, uma coroa de ouro, braceletes, um colar e uma bela capa meda. Enquanto a jovem princesa coroava Ciro, disse Ciaxares:

— É minha filha: eu vo-la dou por mulher. Vosso pai também desposou a filha de meu pai. Minha filha é aquela criança a quem continuamente fazíeis festa, aqui, em vossa mocidade; se alguém então lhe perguntava quem havia de ser seu marido, ela respondia: “Ciro”. Eu lhe dou em dote toda a Média, visto que não tenho filho varão.

— Conheço — respondeu Ciro — o valor da aliança, da pessoa e do dote. Mas antes de vos responder quero obter o consentimento de meu pai e de minha mãe.

Entretanto brindou a princesa com as dádivas que julgou serem mais de seu agrado, fez o mesmo a Ciaxares, e tornou depois à Pérsia.

Chegando à fronteira, deixou aí o grosso do exército, e encaminhou-se para a cidade com seus amigos, seguido de muito gado, tanto para os sacrifícios como para o festim que ele tencionava fazer, e trazendo muitos presentes para seu pai, sua mãe, amigos, magistrados, anciãos e homotimos. Todos os persas, homens e mulheres, participaram de sua generosidade. Os reis, seus sucessores, ainda imitam seu exemplo todas as vezes que visitam a Pérsia. Depois desta distribuição, Cambises convocou uma assembléia dos anciãos e dos principais magistrados, para a qual convidou Ciro, e recitou este discurso:

— Todos vós, meus vassalos e meus filhos, sabeis com que ternura vos amo. Esta afeição que vos dedico, a vós, persas, como vosso rei, e a vós, Ciro, como vosso pai, me induz a fazer reflexões que eu julgo relativas a vossos interesses comuns. Se laçarmos a vista para o passado, é certo que fostes vós, persas, que, formando um exército, cujo comando confiastes a Ciro, pusestes os fundamentos de sua grandeza; mas não é menos verdade que foi Ciro, que com vosso exército e com a proteção dos deuses, tornou célebre vosso nome e encheu a Ásia de vossa glória; foi ele que enriqueceu os bravos que militaram debaixo de suas ordens; foi ele que pagou a vossos soldados e os sustentou; foi ele, finalmente, que criando um corpo de cavalaria nacional, pôs os persas em estado de serem sempre superiores em campo raso. Se não perdeis de vista que estais ligados por obrigações recíprocas, vossa felicidade crescerá de dia para dia; se vós, Ciro, ébrio de vossa fortuna, quiserdes governar tiranicamente os persas, como um povo conquistado; se vós, persas, ciosos do poder de Ciro, quiserdes cerceá-los; suspendereis o curso de vossas prosperidades. Um meio de prevenir esta desgraça, e até de vos assegurar para o futuro novas vantagens, é oferecer aos deuses um sacrifício em comum, e em sua presença prometerdes, vós, Ciro, que se alguém entrar na Pérsia com mão armada, ou tentar destruir suas leis, a defendereis com todas as vossas forças; vós, persas, que se alguém quiser privar Ciro do Império, ou separar de sua obediência as nações por ele submetidas, correreis em seu auxílio à primeira ordem que receberdes. Finalmente, minha intenção é conservar este reino enquanto viver; depois de minha morte o trono pertence a Ciro. É ele que há de oferecer por vós aos deuses, quando seus negócios o chamarem à Pérsia, os sacrifícios, que hoje lhes ofereço. Quando ele se achar ausente, o melhor é confiar este sagrado ministério àquele de nossa geração que mais digno disso julgardes.

Ciro e os magistrados dos persas convieram unanimemente em seguir os conselhos de Cambises, e tomaram os deuses por testemunhas do pacto que faziam. Este pacto nunca foi violado nem pelo rei nem pelos súditos.

Logo depois Ciro saiu da Pérsia, e assim que chegou à Média, desposou, com consentimento de seu pai e de sua mãe, a filha de Ciaxares. Ainda hoje se gaba a beleza desta princesa. Dizem alguns escritores que Ciro desposou a irmã de sua mãe; mas esta noiva seria já muito velha. Acabada a solenidade das bodas, Ciro partiu com sua esposa.

Ciro manda sátrapas para as províncias — Limites do Império de Ciro

Regressando a Babilônia, Ciro pensou que seria a propósito mandar sátrapas para as províncias conquistadas, com a condição de que os governadores das praças, e os quiliarcas destacados para diferentes posições, para velar pela segurança do país, não receberiam ordens senão dele. Tomava esta precaução para que se alguns sátrapas, orgulhosos de suas riquezas e do grande número de seus vassalos, tivessem a insolência de aspirar à independência, tivessem logo na mesma região tropas contra si.

Tomada esta resolução, reuniu os principais chefes, para informar os que houvessem de ser governadores, das condições com que o governo lhes era confiado. Ciro entendia que esta resolução, publicada de antemão, lhes não seria penosa: que se para publicá-la se esperasse que eles tomassem posse do governo das praças, se agastariam, persuadidos que provinha da pouca confiança que neles se depositava. Estando reunidos, Ciro lhes falou assim:

— Amigos, deixámos guarnições e governadores nas cidades que conquistámos. Quando parti, ordenei-lhes que guardassem suas praças, e como eles seguiram exatamente minhas ordens, não tenho motivo para demiti-los; mas parece-me necessário enviar sátrapas para as províncias, para governarem os habitantes, receberem os tributos, pagarem as guarnições, e velarem pelos negócios do estado. Parece-me igualmente necessário que aqueles dentre vós que se acham estabelecidos em Babilônia, e que eu poderei mandar às províncias para alguma comissão particular, aí possuam terras e casas, para que, logo que cheguem, habitem em casas suas, e para que os tributos venham ter aí.

Ciro interrompeu o seu discurso para assinar a muitos de seus amigos casas e vassalos na maior parte das cidades conquistadas. Estes bens, situados em diferentes regiões do Império, pertencem ainda aos descendentes daqueles a quem foram dados, posto que vivam na corte ordinariamente.

— Quanto à escolha dos sátrapas para a administração das províncias — continuou Ciro — sou de opinião que se prefiram os que se reputarem mais cuidadosos em nos enviarem o que o solo produzir de melhor e mais belo, para que, sem sairmos da pátria, participemos das vantagens de todos os países, o que é muito justo, porque nós havemos de defendê-los se forem atacados.

Acabando de falar, Ciro conferiu os governos a seus amigos, com as condições anunciadas. A escolha recaiu sobre os mais capazes: Megabizo teve a Arábia; Artabatas a Capadócia; Artacamas, a grande Frígia; Crisantas, a Lídia e a Jônia; Adúsio, a Cária, que o havia pedido; Farnucho, a Eólida e a Frígia vizinha do Helesponto. A Cilícia, Chipre e Paflagônia, que haviam voluntariamente seguido o príncipe no sítio de Babilônia, não receberam governadores persas; mas ficaram tributárias. O plano, então adotado por Ciro, ainda hoje subsiste: as guarnições das praças fortes têm estado até hoje na dependência imediata do rei; é ele que nomeia seus comandantes.

Antes da partida dos sátrapas, Ciro lhes recomendou que o imitassem quanto pudessem; que formassem logo, assim dos persas como dos aliados, um corpo de cavalaria e de condutores de carros; que exigissem que os que possuíam casas e terras em seus governos, se dirigissem às portas de seus palácios, que guardassem a temperança, e se oferecessem a executar o que se lhes ordenasse; que fizessem educar as crianças debaixo de suas vistas, como ele praticava em seu palácio; que levassem muitas vezes à caça os homens feitos que freqüentassem sua corte; e que os entretivessem nos exercícios militares.

— O que tiver — continuou ele — maior número de carros, mais numerosa cavalaria, pode estar certo de que o hei-de considerar como amigo fiel, como um firme sustentáculo do Império dos persas e do meu poder. Os cargos honrosos sejam sempre ocupados pelos mais dignos. Vossa mesa seja abundante, como a minha, para alimentar vossa família, para poderdes receber vossos amigos, e para dardes aos que se distinguirem mostras de consideração, admitindo-os a ela. Tendes parques fechados; sustentai neles caça brava. Fazei exercício antes da comida, e vossos cavalos não comam sem ter trabalhado. Com toda a força que a natureza humana comporta, eu, só, não poderia defender-vos a todos vós e vossos bens; para vos ajudar com meu valor e com o valor de meus bravos companheiros, é preciso que também vós me auxilieis com o vosso e com o de vossos bravos. Peço reflitais que não ordeno a nossos escravos nenhuma das práticas que vos prescrevi, e que nada exijo de vós que eu mesmo não pratique. Em uma palavra, exortai vossos subordinados a seguir vosso exemplo, como vos exorto a seguir o meu.

Estas disposições se têm conservado até hoje sem alteração. As guarnições e seus chefes dependem imediatamente do rei; a porta dos chefes é continuamente freqüentada; nas casas do povo, como nas dos grandes, o costume é que os lugares mais honrosos pertençam aos mais dignos. Quando o rei marcha, observa-se a mesma ordem de que falei; e apesar do grande número de negócios, um pequeno número de oficiais despacha tudo prontamente. Ciro, depois de ter instruído os novos sátrapas acerca de seu procedimento, depois de lhes ter dado tropas, os despediu, advertindo-os que se preparassem para entrar em campanha no ano seguinte, e para a revista geral, que tencionava passar aos homens, cavalos, armas e carros.

Diz-se que é a Ciro que se deve outro estabelecimento que existe na Pérsia. Todos os anos um enviado do príncipe percorre com um exército as diferentes províncias do Império: se os governadores têm necessidade de socorro, ele o presta; se são injustos ou violentos, torna-os moderados; se deixam de pagar os tributos, e de velar, quer pela segurança dos habitantes de seu governo, quer pela cultura das terras, em uma palavra, se faltam a seus deveres, o enviado remedeia o mal; se o não consegue, dá conta disso ao rei, que decide como hão de ser castigados. Este homem, chamado filho do rei, ou irmão do rei, ou o olho do rei, exerce muitas vezes as funções de inspetor.

É também a Ciro que se atribui essa invenção tão útil em um grande Império, pela qual ele era prontamente informado de tudo que se passava nas mais longínquas regiões. Depois de ter examinado o que um cavalo podia andar em um dia sem cansar, mandou que nas estradas se construíssem cavalariças com este mesmo intervalo, e que nelas se pusessem cavalos. Em cada uma devia haver um homem inteligente para receber as cartas que um correio trazia, entregá-las a outro correio e ter cuidado nos homens e cavalos que chegavam cansados. Às vezes nem mesmo a noite retarda o giro dos correios; o que caminhou de dia é substituído por outros, que têm de caminhar de noite; por isso se tem dito que os grous não andariam tanto no mesmo espaço de tempo. Se esta expressão é exagerada, pelo menos é certo que por terra não é possível viajar com maior velocidade.

Decorrido o ano, Ciro reuniu em Babilônia seu exército, que se compunha de cento e vinte mil cavaleiros, dois mil carros armados de foices, e seiscentos mil infantes. Com estas grandes forças empreendeu a famosa expedição em que subjugou todas as nações desde as fronteiras da Síria até ao mar Eritreu; daí levou suas armas até ao Egito, e o submeteu também; de maneira que os limites de seu Império eram, ao oriente o mar Eritreu, ao norte o Ponto Euxino, ao ocidente a ilha de Chipre e o Egito, ao sul a Etiópia, regiões cujas extremidades são quase inabitáveis, por causa das inundações ou da secura. Ciro fixou sua residência no centro destes diferentes países; passava os sete meses de inverno em Babilônia, cujo clima é quente, os três meses da primavera em Susa, os dois meses de estio em Ecbatana, o que fez dizer que ele gozava de uma contínua primavera.

Eram tão afeiçoados a Ciro que não havia nação ou cidade que não julgasse faltar a si mesma se deixasse de oferecer-lhe suas melhores produções, frutas, animais, obras de arte. Os particulares consideravam-se ricos quando tinham ocasião de fazer-lhe presentes; com efeito o príncipe, depois de receber deles coisas de que tinham abundância, oferecia-lhes outras, de que eles careciam.

Discurso de Ciro antes de sua morte

Assim viveu Ciro. Chegando à velhice, partiu para a Pérsia; era a sétima viagem que aí fazia depois do estabelecimento de seu Império. Havia muito tempo que seu pai e sua mãe tinham morrido. À sua chegada, fez os sacrifícios ordinários, começou a dança em honra dos deuses, segundo o costume dos persas, e foi liberal para com o povo. Depois, retirou-se a seu palácio, e, adormecendo, viu em sonho um personagem, cujo ar majestoso não era de mortal, e que se aproximou dele, dizendo:

— Preparai-vos, Ciro, dentro de pouco tempo ireis ter com os deuses.

Ciro despertou e entendeu que se aproximava o fim de sua vida. Escolheu vítimas, e, segundo o rito persa, foi fazer sacrifícios nas montanhas a Júpiter protetor de sua pátria, ao Sol e às outras divindades, dirigindo-lhes esta súplica:

— Júpiter, deus dos meus pais, Sol, e vós outros, deuses imortais, recebei este sacrifício, que põe termo à minha gloriosa carreira! Dou-vos graças pelos conselhos que de vós recebi por meio das entranhas dos animais, dos sinais celestes, dos agouros, dos presságios, sobre o que eu devia fazer ou evitar; rendo-vos graças também por nunca terdes permitido que eu desconhecesse vossa assistência, nem que eu, no curso de minhas felicidades, me esquecesse de que era homem. Peço que concedais dias felizes a meus filhos, à minha esposa, a meus amigos, à minha pátria; e a mim um fim digno de minha vida.

Depois dos sacrifícios voltou a palácio e se deitou para repousar um pouco. Seus banheiros vieram, à hora do costume, falar-lhe do banho. Ciro respondeu que queria descansar. Chegada a hora de comer, nada quis; mas como tinha sede, bebeu com prazer. Achando-se no mesmo estado nos dois dias seguintes, mandou chamar seus filhos, seus amigos e os principais magistrados, e perante eles recitou este discurso:

— Meus filhos, e também vós, meus amigos, por muitos sinais conheço que estou no fim da minha vida. Quando eu já não existir, olhai-me como um homem feliz; e em vossas ações e discursos transpire este sentimento. Em minha infância obtive todas as honras que se conferem a esta idade; constantemente gozei da mesma vantagem na adolescência e na idade madura. Sempre me pareceu que minhas forças aumentavam com os anos, de maneira que na velhice não me senti menos vigoroso do que na mocidade. Vi todas as minhas empresas coroadas de sucesso, todos os meus votos atendidos. Vi meus amigos felizes por meio de meus benefícios, meus inimigos sujeitos. Antes de mim, minha pátria era uma província obscura da Ásia; deixo-a senhora da Ásia inteira; nunca perdi uma só de minhas conquistas. Contudo, posto que minha vida foi um contínuo encadeamento de prosperidades, sempre temi que o futuro me reservasse algum revés; e esta idéia me preservou do orgulho e dos excessos de uma alegria imoderada. Neste momento, em que vou deixar de existir, tenho a consolação de ver que me sobrevivereis, vós, meus filhos, que o céu me deu. Deixo meu país florescente e meus amigos na abundância. A mais remota posteridade poderia sem injustiça não me reputar feliz? Convém, agora, que eu declare o que me há de suceder, para prevenir qualquer discórdia entre vós. Meus filhos, ambos sois por mim amados com igual ternura; quero, todavia, que a administração dos negócios e a autoridade pertençam ao mais velho, que é justamente considerado como dotado de mais experiência. Acostumado em nossa pátria comum a ver os mais novos, quer entre irmãos, quer entre concidadãos, ceder aos mais velhos a primazia, dar-lhes os lugares honrosos, deixá-los falar primeiro, ensinei-vos desde a infância a honrar as pessoas de mais idade do que vós, e também quis que fôsseis igualmente tratados pelos mais moços. A disposição que acabais de ouvir é, pois, conforme às nossas leis, antigos usos e costumes.

Assim vós, Cambises, tereis a coroa: conferem-vo-la os deuses e vosso pai, no que está em seu poder. Vós, Tanaoxares, tereis o governo da Média, da Armênia e do país dos cadúsios. Deixo a vosso irmão uma autoridade mais extensa com o título de rei, mas vossa posição será mais tranqüila. Que falta para ser completa vossa felicidade? Gozareis sossegadamente de todos os bens que podem tornar os homens felizes. A ambição de executar empresas difíceis, a penosa multiplicidade de negócios, um teor de vida inimigo do repouso, um desejo inquieto de imitar minhas ações, armar ciladas e evitá-las: eis a partilha do que reinar; vós ficareis isento de todos esses cuidados, que são outros tantos obstáculos à felicidade. Vós, Cambises, não vos esqueçais jamais que não é este cetro de ouro que conservará vosso domínio: os amigos fiéis são o verdadeiro cetro dos reis, e seu mais firme apoio. Mas não penseis que os homens já nascem assim: se a fidelidade lhes fosse inata, manifestar-se-ia em tudo igualmente, como em todos se vêem as inclinações que a natureza dá à espécie humana. É preciso trabalhar para ganhar amigos fiéis; não é o temor, é a beneficência que os dá.

No caso de julgardes a propósito devolver a alguém uma parte dos cuidados que a sustentação de um Império exige, preferi vosso irmão. Se somos mais unidos a nossos concidadãos do que aos estrangeiros, aos que moram conosco debaixo do mesmo teto do que aos nossos concidadãos, como não haviam de ser ainda mais intimamente unidos os irmãos gerados do mesmo sangue, amamentados pela mesma mãe, educados na mesma casa, acarinhados pelos mesmos pais, e dando às mesmas pessoas os nomes de pai e de mãe? Não afrouxeis estes doces laços, a que os deuses ligaram os irmãos; apertai-os antes pelos atos repetidos de mútua amizade; é o meio de consolidar para sempre vossa união. É trabalhar para seus próprios interesses, ocupar-se dos de seu irmão. Quem mais do que o irmão se honrará da ilustração de seu irmão? Quem temeremos mais ofender do que aquele que tem um irmão poderoso?

Quem estará mais pronto de que vós, Cambises, para servir o vosso, e irá mais corajosamente em seu socorro, tocando-vos de tão perto sua boa ou má fortuna? Vede de quem poderíeis esperar maior reconhecimento por vossos benefícios do que da parte de um irmão? Quem, depois de vos ter chamado em seu socorro, vos auxiliaria de melhor vontade? Há outro homem que seja mais vergonhoso não amar, e mais louvável honrar? Em uma palavra, Cambises, vosso irmão é o único que pode ocupar, sem excitar inveja, o primeiro lugar junto de vós.

Peço-vos, pois, meus filhos, em nome dos deuses de nossa pátria, que vos respeiteis um ao outro, se desejais agradar-me; porque não penso que tenhais por certo que nada serei, quando tiver deixado de viver. Minha alma tem até agora estado oculta a vossos olhos; mas para as suas operações conhecíeis que ela existia. Não tendes notado de que terrores são agitados os homicidas pelas almas dos inocentes que eles mataram, e que vinganças elas tiram destes ímpios? Pensais que o culto que se tributa aos mortos se teria conservado se se julgassem suas almas destituídas de poder? Enquanto a mim, meus filhos, nunca pude persuadir-me de que a alma, que vive enquanto está unida ao corpo mortal, se aniquile, logo que dele sai, porque vejo que é ela que vivifica estes corpos destrutíveis, enquanto os habita. Nunca pude tão pouco persuadir-me de que ela perca sua faculdade de raciocinar no momento em que se separa de um corpo incapaz de raciocínio. É natural crer que a alma, então mais pura, e separada da matéria, goze plenamente de sua inteligência. Quando um homem morre, vêem-se as diferentes partes que o compunham tornarem a juntar-se aos elementos a que pertencem: só a alma escapa à vista, quer durante sua estada no corpo, quer depois que o abandona.

Sabeis que é durante o sono, imagem da morte, que a alma mais se aproxima da divindade, e que neste estado muitas vezes prevê o futuro, porque, sem dúvida, se acha então inteiramente livre. Ora, se as coisas são como eu penso, e se a alma sobrevive ao corpo, fazei para com a minha o que vos recomendo: se estou enganado, se a alma morre com o corpo, temei ao menos os deuses, que não morrem, que tudo vêem, que tudo podem, que conservam no universo essa ordem imutável, inalterável, cuja magnificência e majestade são superiores a toda expressão. Este temor vos livre de qualquer ação, de qualquer pensamento que fira a piedade ou justiça. Depois dos deuses, temei os homens e a posteridade. Como os deuses não vos ocultaram na obscuridade, todas as vossas ações serão vistas: se elas forem puras e conformes à justiça, consolidarão vossa autoridade; mas se procurardes mutuamente prejudicar-vos, perdereis todos a confiança no conceito dos outros homens. Com efeito, poderia alguém, de boa vontade, fiar-se em vós, vendo-vos injustos para com aquele que mais razões tendes para amar?

Se aprovais as instruções que vos dou, sobre o modo de vos comportardes um com o outro, segui-as; se vos parecem insuficientes, consultai a história, que é uma excelente escola. Nela vereis pais, que ternamente amaram seus filhos, e irmãos, que viveram na mais íntima união: vereis outros, que deram exemplo do procedimento oposto. Dentre homens tão diferentes escolhei para modelos os que se deram melhor com seu comportamento e sereis sábios. Parece-me que vos tenho dito o bastante. Quando eu morrer, meus filhos, não envolvais meu corpo, nem em ouro, nem em prata, nem em qualquer outra coisa; entregai-o à terra imediatamente. Que há mais agradável do que ser reunido a essa mãe comum, que produz, que nutre tudo que há de bom? Amei muitos homens, para não folgar de que bem depressa farei parte da benfeitora dos homens. Mas sinto minha alma abandonar-me; sinto-o pelos sintomas que anunciam ordinariamente nossa dissolução.

Se algum de vós deseja pegar em minha mão e contemplar em meus olhos um resto de vida, aproxime-se. Quando eu cobrir meu rosto, peço-vos, meus filhos, que meu corpo não seja visto por ninguém, nem mesmo por vós. Convidai os persas e nossos aliados a que se reúnam à roda de minha sepultura para me darem os parabéns de ficar daí em diante ao abrigo de todos os acontecimentos desagradáveis, quer eu esteja no seio da divindade, quer tenha sido aniquilado. Todos, que aí forem, recebam de vossas mãos o que se costuma distribuir no funeral de um homem feliz. Finalmente, nunca vos esqueçais que é fazendo bem a vossos amigos que vos poreis em estado de reprimir vossos inimigos. Adeus, caros filhos. Adeus, amigos, presentes e ausentes.

Acabando de falar, estendeu sua mão para todos que o rodeavam; depois cobriu o rosto e expirou.

Quadro comparativo dos costumes dos persas do tempo de Ciro e do tempo do autor

É fora de dúvida que o reino de Ciro foi o mais florescente e o mais extenso de toda a Ásia. Seus limites eram, como já disse, ao oriente o mar Eritreu, ao norte o Ponto Euxino, ao ocidente Chipre e Egito, ao sul a Etiópia. Ciro era o único soberano deste vastíssimo território: ele amava e tratava seus súditos como seus filhos; seus súditos, honravam-no como pai. Mas logo que ele cerrou as pálpebras, a discórdia separou seus dois filhos: cidades, nações inteiras, deixaram de lhes obedecer; e depressa se viu uma decadência geral. Vou justificar o que asseverei, começando pelo que diz respeito à religião.

Antigamente, quando o príncipe ou os grandes tinham dado sua palavra, quer fosse pelo juramento, quer pela simples apresentação da mão, ainda que fosse a algum criminoso, cumpriam-na inviolavelmente. Se eles tivessem sido menos fiéis no cumprimento de suas promessas, não se depositaria neles mais confiança do que hoje, que sua má fé é conhecida; e os chefes das tropas, que depois acompanharam Ciro o Moço em sua expedição, não se teriam fiado em sua palavra. É sabido que estes capitães, iludidos pela antiga opinião da boa fé dos persas, se entregaram em suas mãos, e, levados à presença do rei, foram degolados: grande número de bárbaros da mesma expedição, seduzidos igualmente por falsas promessas, morreram miseravelmente.

Os persas são ainda hoje mais perversos do que eram então. Antigamente as honras eram reservadas aos que expunham sua vida pelo serviço do rei, que submetiam uma cidade, que subjugavam uma nação, que se assinalavam por qualquer ação boa. Hoje, se alguém, imitando o exemplo de um Mitridates, que atraiçoou seu pai Ariobarzanes, ou de um Reomitres, que, postergando os mais sagrados juramentos, deixou reféns no Egito sua mulher, seus filhos e os filhos de seus amigos, cometer uma perfídia, contanto que esta reverta em proveito do príncipe, será magnificamente recompensado. Daqui nasce que todas as nações asiáticas são injustas e pérfidas por causa da influência que os costumes do povo dominante têm sempre sobre os dos povos submetidos. Eis já um ponto em que os persas de hoje são piores do que os de outro tempo.

Sua depravação não se manifesta menos em sua avareza. Já não são os criminosos somente, como era antigamente, os que são metidos nas prisões; também se prendem os inocentes, para forçá-los a comprar sua liberdade, de modo que os ricos não têm menos que temer do que os grandes delinqüentes. Não ousam opor-se aos inimigos poderosos; do que resulta que qualquer nação em guerra com os persas pode impunemente fazer correrias em seu país; justo castigo de sua impiedade para com os deuses, e das suas injustiças para com os homens; nova prova do quanto tem degenerado de suas antigas virtudes.

Passo a contar as mudanças sobrevindas em sua maneira de viver. Uma lei proibia cuspir e assoar-se: a lei tinha por fim, não, decerto, aproveitar um humor supérfluo, mas fortificá-los, acostumando-os a consumi-lo pelas fadigas e pelo suor. Eles têm com efeito conservado o uso de não cuspir nem assoar-se, mas perderam o de trabalhar.

Segundo outra lei, eles não podiam comer senão uma vez por dia, para terem mais tempo de entregar-se a seus negócios e aos exercícios corporais. Conservaram a prática de uma refeição somente, mas comem-na à hora dos que jantam mais cedo, e continuam até à hora em que se deitam os que gostam de velar mais.

Era-lhes proibido levar para a mesa grandes vasos de vinho, porque se entendia que o excesso da bebida enerva o corpo e a alma ao mesmo tempo. A proibição subsiste ainda; mas eles bebem com tão pouca moderação, que em vez de levarem os vasos, são eles próprios que são levados, por não terem força para sair direitos.

Seus antepassados, segundo uma antiga prática, não comiam nem bebiam durante as marchas, nem satisfaziam publicamente nenhuma das necessidades, que são sua conseqüência. Esta prática subsiste ainda; mas fazem marchas tão curtas, que sua abstinência nada tem que admire.

Antigamente, iam tão freqüentemente à caça, que este exercício era suficiente para os homens e para os cavalos. Depois que o rei Artaxerxes e seus cortesãos se deram ao vinho, renunciaram à caça; e se alguém, para se acostumar à fadiga, continuou a caçar com seus cavaleiros, atraiu sobre si o ódio de seus iguais, ciosos de sua vantagem sobre eles.

O uso de educar as crianças à porta do palácio tem-se conservado até hoje, mas não se lhes ensina a montar a cavalo, porque não há ocasião em que possam fazer brilhar sua destreza. A corte era uma escola, onde aprendiam a justiça, porque aí viam a equidade presidir aos juízos; hoje, pelo contrário, vêem triunfar os que dão mais dinheiro. As crianças aprendiam a conhecer as propriedades das plantas, a fim de se servirem ou se abaterem delas, conforme fossem úteis ou nocivas: hoje parece que não aprendem a distingui-las senão para saberem fazer o maior mal possível; por isso não há país em que os envenenamentos sejam mais freqüentes.

A vida dos persas é hoje muito mais voluptuosa do que era no tempo de Ciro. Se bem que desde então adotassem o trajo dos medos, seus costumes ressentiam-se ainda da educação viril que recebiam na Pérsia; hoje carecem das virtudes de seus antepassados, e conservam a moleza dos medos. Mas particularizemos mais este artigo.

Não se contentam em dormir em camas macias; os pés dos leitos descansam sobre alcatifas, que, cedendo ao peso, obstam a que se sinta a resistência do pavimento. Usam de todas as iguarias de que em outro tempo usavam, e todos os dias inventam outras novas; têm mesmo pessoas assalariadas para isso. No inverno, não se limitam a cobrir a cabeça, o corpo e os pés; cobrem de peles as mãos, e metem os dedos em espécies de estojos. No verão, a sombra dos bosques e dos rochedos não os satisfaz; recorrem à arte, para torná-la mais espessa. Gostam muito de possuir grande número de vasos preciosos, e não se envergonham de adquiri-los por meios torpes. Tão grandes são os progressos que entre eles têm feito a injustiça e a sórdida sede de ouro! Uma antiga lei lhes proibia andar a pé, e o fim dessa lei era fazer bons cavaleiros; mas eles têm mais alcatifas sobre seus cavalos do que sobre seus leitos, e curam menos de andar bem a cavalo do que de se sentarem voluptuosamente.

Pelo que diz respeito à guerra, seria possível serem hoje os mesmos que eram outrora? No tempo de seus antepassados, os grandes agregavam-se aos exércitos com certo número de cavaleiros alistados em seus domínios; e quando se tratava da defesa do país, as guarnições das praças entravam em campo mediante certo soldo. Hoje, os grandes, com o fim de lucrarem aquele soldo, transformam em cavaleiros seus porteiros, padeiros, cozinheiros, copeiros, banheiros, guarda-roupas, criados de mesa, e outros. Por conseqüência, seus exércitos, posto que numerosos, são fracos, como é fácil pensar, vendo seus inimigos percorrerem o território da Pérsia mais livremente do que eles próprios.

Ciro, para obrigar sua cavalaria a combater de perto, tinha-lhe tirado as armas de arremesso: tinha coberto os homens e os cavalos de armas defensivas e dado a cada cavaleiro uma azagaia forte. Hoje não combatem nem de longe nem de perto. A infantaria está armada, como no tempo de Ciro, de escudo, espada e machado, mas não tem coragem para se servir destas armas. Os carros falcatos já não são empregados com o fim para que Ciro os mandara construir. Por meio das recompensas e distinções, que ele dava aos condutores, excitou de tal modo sua coragem que se lançavam impetuosamente através das mais densas fileiras: os persas, hoje, fazem tão pouco caso deles, que apenas os conhecem; pensam que podem conduzir muito bem um carro sem se exercitarem nisso. Sabem, é verdade, dirigir os cavaleiros contra o inimigo; mas antes de chegarem a ele, uns deixam-se cair de propósito, outros apeiam-se para fugir, de sorte que os carros, não tendo quem os governe, muitas vezes lhes causam mais dano do que aos inimigos. Finalmente, os persas não dissimulam sua pouca habilidade na arte militar; conhecem sua inferioridade, e não ousam entrar em campo sem terem gregos em seus exércitos, quer seja a guerra entre eles quer contra os mesmos gregos. Sua máxima é nunca fazer guerra aos gregos sem serem auxiliados por tropas da mesma nação.

Parece-me ter desempenhado a missão que me propus. Provei que os persas e os povos sujeitos ao seu domínio, temem muito menos os deuses, respeitam menos seus parentes, têm menos equidade uns para com os outros, e menos valor na guerra, do que antigamente. Se alguém tiver outra opinião, examine as ações deles e verá confirmado o que eu disse.

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