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Depois de relatar as vidas do grego Lisandro (?-395 a.C.) e do romano Sila (138-78 a.C.), Plutarco traça aqui uma comparação dessas duas personalidades do mundo antigo. Esse texto faz parte da série de biografias escritas por Plutarco (c. 46-120), um historiador grego que viveu no Império Romano. Na série Vidas Paralelas, o autor compara vários nomes da história grega com seus equivalentes romanos.
I. Agora que já descrevemos a vida de Sila, passemos a estabelecer um paralelo entre ela e a de Lisandro, Têm ambos de comum o fato de não deverem a eles próprios o começo de sua ascensão; mas quanto a Lisandro, há isto de particular e próprio: todas as funções que exerceu lhe foram conferidas pela vontade livre de seus concidadãos, não tendo ele as arrancado através da força e nem aumentando seus poderes pela violação das leis; pois, como diz o provérbio comum,
Onde o ódio reina e a discórdia,
Aos piores cabe a autoridade.
Foi o que se viu em Roma no tempo de Sila: estando o povo corrompido e o governo enfermo, surgiram de todos os lados tiranos que oprimiram a cidade. Não é, pois, de surpreender que Sila tenha usurpado a autoridade soberana numa época em que se viam um Gláucias, um Saturnino expulsarem os Metelo da cidade e os filhos dos cônsules serem degolados nas próprias assembleias do povo, numa época em que os soldados eram comprados, a força obtida a troça de ouro e de prata, as leis estabelecidas à ferro e fogo;. sendo reduzidos ao silêncio; pela violência os que a isso se opunham.
II. Não é que eu queira censurar o homem que, no meio de tal desordem, conseguiu apoderarse do poder supremo; mas não acredito que aquele que soube tornar-se o primeiro numa cidade tão depravada fosse o cidadão mais honesto. Lisandro, a quem a cidade de Esparta, tão sábia então e tão bem policiada, confiava os negócios mais importantes e as mais altas dignidades, era certamente o melhor e o primeiro dos cidadãos. Assim, vemos os espartanos lhe conferirem por várias vezes a autoridade que ele sempre lhes restituía, e isto porque conservava sempre a virtude, causa da verdadeira superioridade. Sila, ao contrário, nomeado uma primeira vez general do exército, reteve durante dez anos a autoridade militar, nomeando-se a si mesmo ora cônsul, ora ditador, não passando de um tirano.
III. É verdade que Lisandro, como já dissemos, procurou modificar em Esparta a forma de governo. Mas ele se utilizava de meios mais suaves, mais de acordo com a lei do que os de Sila: era a voz da persuasão e não a das armas. Ele não se propunha, como Sila, tudo derrubar ao mesmo tempo; queria apenas dar uma melhor forma à instituição dos reis. Com efeito, parecia mais natural e mais justo que, numa cidade, cuja virtude, e não sobre o resto da Grécia, coubesse ao mais virtuoso dos cidadãos honestos a autoridade suprema. O bom caçador não procura o filho de um bom cão, mas um bom cão; do mesmo modo, um guerreiro avisado não procura o descendente de um cavalo, mas o próprio cavalo. Do mesmo modo, um estadista cometeria um grande erro se procurasse saber de quem era filho o rei que pretendesse colocar no trono, e não o que era, em si mesmo, esse rei. Os próprios espartanos não privaram da coroa tantos de seus reis porque, em vez de possuírem as virtudes reais, eram homens viciosos e de nenhum mérito? O vício não é menos vergonhoso pelo fato de estar unido à nobreza; e a virtude tira o seu brilho, não do nascimento, mas dela própria.
IV. Cometeram ambos injustiças, um em benefício de amigos, outro em detrimento dos próprios amigos. Convém-se em que Lisandro tornou-se culpado das maiores faltas, ao favorecer aqueles que estimava, e em que foi para torná-los reis ou tiranos que se maculou com tantos crimes. Mas Sila quis, por inveja, tirar de Pompeu o exército que tinha sob suas ordens; e a Dolabela o comando da esquadra que ele próprio lhe havia confiado. Mandou degolar, aos seus olhos, Lucrécio Ofela, que pleiteava o consulado pelos grandes serviços que havia prestado; e, sacrificando, assim, seus melhores amigos, ele levava o terror a todos os espíritos.
V. Na inclinação de ambos pela voluptuosidade e pelas riquezas vemos num, o bom governante, e no outro o tirano. Lisandro, apesar de gozar de um tão grande poderio e de uma autoridade tão absoluta, não se deixou arrastar a excessos de intemperança e de devassidão comuns entre os jovens; ao contrário, parece ter evitado, tanto quanto qualquer outra pessoa a aplicação deste provérbio:
Em casa, leão; fora, raposa.
A sua vida, com efeito, foi sempre comedida, bem ordenada e digna, realmente, de um espartano. Sila abandonou-se sempre aos prazeres, sem que fosse contido, na juventude, pela pobreza, e na velhice pelas fraquezas da idade. Proporcionava aos seus concidadãos belas prescrições sobre o casamento e a continência; mas, ao mesmo tempo, como conta Salústio, levava uma vida de adultérios e de amores os mais infames. Esgotou de tal modo o tesouro público, e tornou Roma tão pobre, que foi obrigado a vender às cidades amigas e aliadas dos romanos a sua independência e o direito de governar a si mesmos, mediante suas próprias leis. Entrementes, confiscava e vendia em leilão, diariamente, os bens das famílias mais ricas e poderosas. E as suas prodigalidades sem limites beneficiavam sobretudo os seus aduladores. E que medida, que norma de economia, poder-se-ia supor que observasse nestas liberalidades privadas, quando, em público, e cercado pelo povo, era visto adjudicar por preços vis, a um amigo, os bens de uma família opulenta que pusera em leilão? Tendo um dos presentes feito um lanço, logo anunciado em voz alta pelo pregoeiro, ele indignou-se e disse: "Cidadãos, constitui para mim um insulto pretender impedir que eu venda segundo a minha própria vontade despojos que me pertencem", Lisandro, ao contrário, ao enviar para Esparta os valores da presa capturada ao inimigo, a ela juntou os donativos que havia recebido particularmente. Não é que louve esta remessa de dinheiro, pois ela talvez causou mais mal a Esparta, com a introdução de ouro e prata, do que a Roma o desperdício de suas riquezas, promovido por Sila; quero somente mostrar a pouca estima de Lisandro pelas riquezas.
VI. Tiveram ambos, em relação à sua cidade, uma conduta singular. Sila, não obstante a sua devassidão e a sua incontinência nas despesas, levou seus concidadãos a uma vida regrada; Lisandro, ao contrário, encheu sua cidade de vícios que não possuía. Assim, mostraram-se ambos inconsequentes. Um foi menos bom que suas próprias leis; o outro tornou seus concidadãos menos bons do que ele próprio, fazendo-os contrair necessidades quê havia sabido evitar. Eis o que havia a dizer quanto às questões civis e políticas.
VII. Se considerarmos agora as suas expedições militares, os seus combates e feitos, a quantidade de seus troféus e o vulto dos perigos que correram, veremos que Lísandro não poderá ser comparado a Sila. Ele saiu vencedor de apenas duas batalhas navais, às quais se pode acrescentar a tomada de Atenas, feito pouco difícil em si mesmo, mas que lhe valeu grande reputação. Houve talvez infelicidade no que lhe aconteceu na Beócia e perto de Haliarto; mas constituiu uma grande imprudência o não ter esperado as tropas do rei que vinham de Plateia, e o ter investido, num momento inoportuno, em virtude de um movimento de cólera e ambição, contra as muralhas de uma cidade, para ser vergonhosamente derrotado por tropas da pior categoria, no primeiro ataque que desfecharam. Ele morreu na jornada de Leuctres, não como Cleômbroto, que, vivamente perseguido pelo inimigo, sucumbiu após obstinada resistência; e não como Ciro, e nem como Epaminondas, que recebeu o golpe mortal ao reconduzir para junto do inimigo suas tropas que haviam recuado e assegurar-lhes a vitória. Todos estes grandes homens morreram como convinha a reis e capitães; mas Lisandro morreu sem glória, como um simples soldado, como um aventureiro; e sua morte atesta a sabedoria dos antigos espartanos, que não quiseram bater-se contra muralhas, das quais o homem mais valente pode ser morto pelo último dos soldados, e mesmo por uma criança, uma mulher, do mesmo modo como Aquiles foi morto por Paris, às portas de Troia.
VIII. Ao contrário, quem poderia narrar todas as batalhas lidadas por Sila, todas as vitórias que alcançou, todos os milhares de inimigos que fez tombar? Ocupou por duas vezes a própria cidade de Roma; tornou-se senhor do Pireu, não pela fome, como Lisandro, mas após vários combates, em consequência dos quais Arquelau foi expulso da terra firme, reduzindo-o à posse de suas forças marítimas. Osgenerais que ambos tiveram de combater apre" sentam ainda, entre eles, uma grande, diferença. Seria algo mais que uma brincadeira o combate naval no qual Lisandro venceu Antíoco, que não era senão o piloto de Alcibíades. E que mérito existe em ludibriar Fílocles, este arengador do povo ateniense? Pois ele era
Homem obscuro, cuja língua ferina
Era pior que o gume de uma espada.
Eram homens que Mitrídates não compararia sequer com seus moços de estrebaria, nem Mário com seus lictores. Entretanto, para não citar aqui todos os príncipes, todos os cônsules, todos os generais, todos os tribunos que Sila teve de combater, quem, dentre os romanos, foi mais temível do que Mário? Que rei mais poderoso do que Mítrídates? E, entre os capitães italianos, teria havido algum mais belicoso que Lampônio ou Telesino? Sila expulsou o primeiro de Roma, subjugou o segundo e matou os dois outros.
IX. Mas o que me parece estar acima de tudo o que disse até aqui é que Lisandro, em suas ações, foi poderosamente secundado pela sua pátria. Sila, ao contrário, foi banido da sua, oprimida por uma facção inimiga; e enquanto expulsavam sua mulher de Roma, sua casa era incendiada e seus amigos eram degolados, combatia na Beócia contra uma multidão de inimigos e expunha-se pela sua pátria aos maiores perigos, saindo vitorioso dos combates para a honra de seu povo. Mitrídates em vão lhe ofereceu sua aliança e o auxílio de um poderoso exército contra seus inimigos. Sila não se mostrou para com ele nem mais tratável nem mais condescendente; não se dignou sequer a corresponder-lhe à saudação ou dirigir-lhe a palavra antes de ouvi-lo declarar, alto e bom som, que renunciava à Ásia, que entregaria seus navios e que restituiria a Bitínia e a Capadócia aos seus reis legítimos. Essa é, no meu parecer, a mais bela das ações de Sila. Graças a uma extraordinária grandeza de alma, ele, afastando conveniências pessoais, deu preferência ao interesse público. Como estes cães corajosos que jamais abandonam sua presa, nenhuma concessão fazia ao inimigo antes de ele confessasse vencido; somente depois cuidava de vingar os seus próprios agravos.
X. Temos, finalmente, a conduta de Sila e Lisandro em relação a Atenas, que é de. grande importância para julgar a diferença do, caráter de ambos. O primeiro, após ocupar essa cidade, durante a guerra que lhe movia para sustentar o poderio e à autoridade de Mitrídates, manteve-lhe a liberdade e as leis. O segundo, sem qualquer sentimento de piedade pela cidade que acabava de perder a sua preeminência gloriosa sobre a Grécia, privada de seu governo popular, substituindo-o pela tirania mais injusta e cruel. Parece-me, que depois deste paralelo, não nos afastaremos muito da verdade dizendo que Sila praticou ações maiores e Lisandro erros menores; que este merece o prêmio da temperança e da sabedoria, enquanto que aquele o do valor e o da capacidade para a guerra.