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Comparação entre Demóstenes e Cícero, de Plutarco

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Depois de relatar as vidas do grego Demóstenes (384-322 a.C.) e do romano Cícero (106-43 a.C.), Plutarco traça aqui uma comparação dessas duas personalidades do mundo antigo. Esse texto faz parte da série de biografias escritas por Plutarco (c. 46-120), um historiador grego que viveu no Império Romano. Na série Vidas Paralelas, o autor compara vários nomes da história grega com seus equivalentes romanos.

I. Eis o que chegou ao nosso conhecimento, com relação aos feitos notáveis e dignos de memória que ficaram escritos sobre Cícero e Demóstenes. Deixando afinal de lado a comparação sobre a semelhança ou dissemelhança da eloquência que existe em suas orações, parece-me que bem posso dizer que Demóstenes empregou inteiramente tudo o que ele tinha de senso e de ciência, quer natural, quer adquirida na arte da retórica e que ele sobrepujou em força e virtude de eloquência a todos os que no seu tempo se entregaram a oratória e à advocacia: e, em gravidade e magnificência de estilo, a todos os que escrevem, somente para se mostrar ou por mera ostentação: e em diligência delicada e artifício a todos os sofistas e mestres de retórica. Cícero, ao invés, era homem universal, possuindo várias ciências, pois tinha estudado diversas espécies de letras, como se pode conhecer, pois ele deixou vários livros filosóficos que são de sua criação, escritos à maneira dos filósofos acadêmicos: e pode-se ver ainda em diversos discursos que escreveu em algumas causas para deles se servir nos julgamentos e que ele procurava as ocasiões para mostrar de passagem que tinha conhecimento das belas letras.

II. Pode-se ainda ver, através do seu estilo, alguma sombra do seu natural; o estilo de Demóstenes nada tem de alacridade, de divertido, de ornamento, mas é sempre conciso e nada tem que não acosse e não oprima propositadamente e revela não somente a lâmpada, como dizia gracejando Píteas, mas um apreciador de bom vinho, um grande trabalho e juntamente azedume e austeridade de natureza. Cícero, porém, frequentemente usava do gracejo, aproximando-se do jocoso e até do escarnecedor: e em suas perorações, mudando coisas de importância em gracejo e riso, quando vinham a propósito, ele se esquecia muitas vezes da atitude que bem convinha a um personagem de gravidade e dignidade como ele: assim sucedeu na defesa de Célio{1478} quando ele disse que se não deveria julgar estranho, se num grande acumulo de riquezas e de delícias ele se permitia um certo desafogo e que era uma loucura não usar dos prazeres lícitos e permitidos, considerando-se mesmo que filósofos houvera dos mais célebres, que haviam posto a suprema felicidade do" homem na voluptuosidade; narra-se ainda que,’ tendo Marcos Catão acusado Murena, Cícero, sendo cônsul, defendeu-o em seu discurso, apostrofou, gracejando, toda a seita dos filósofos estoicos, por causa de Catão, pelas estranhas opiniões que eles têm e que se chamam de paradoxos, de modo que todos os assistentes se puseram a rir alto e abertamente, até os mesmos juízes e Catão, também sorrindo, disse aos que estavam perto dele: "Temos um cônsul grande mofador e grande gracejador, senhores!" Mas, mesmo sem isso, parece que Cícero sempre gostou muito de rir e de gracejar, de modo que seu próprio rosto, logo se percebia, mostrava uma natureza alegre, jovial e divertida: o semblante de Demóstenes, ao invés, indicava sempre atividade, uma tristeza sonhadora e pensativa, que jamais o abandonava, de maneira que seus inimigos, como ele mesmo o diz, o tinham por enfadonho e perverso.

III. Além disso, em seus trabalhos vê-se que um fala sobriamente em louvor de si mesmo, de modo que a gente não se poderia ofender e nunca, a não ser quando necessário, para o interesse de alguma coisa importante; em suma, muito reservado e modesto, no falar de si mesmo; e, ao contrário, as contínuas repetições de uma mesma coisa, de que usava Cícero por qualquer motivo, em suas orações, mostravam uma excessiva ambição de glória, quando ele clamava incessantemente:

Cede a força armada à prudência, o louro do triunfo à eloquência.

Ainda mais: ele não louvava somente seus atos e seus feitos, mas também os discursos que ele escrevera ou proferira como se tivesse de se exibir diante de um Sócrates ou um Anaximenes, mestres da escola de retórica, e não em orientar e dirigir um povo romano: combatente firme, armado pesadamente, para esperar o inimigo em campo aberto. Pois é necessário que um governante de Estado político adquira autoridade pela eloquência: mas aspirar à glória do seu belo falar, ou o que é pior, mendigá-la, é um ato de ânimo muito baixo: e portanto nesta parte, é necessário confessar que Demóstenes é mais grave e mais magnânimo como ele mesmo o dizia, que toda a sua eloquência não era senão um hábito adquirido pelo longo exercício, a qual tinha ainda necessidade de ouvintes, que o quisessem escutar pacientemente e que reputava tolos e impertinentes, como deveras o são aqueles que com isso se querem gloriar.

IV. Isto ambos têm igualdade comum, o fato de gozar de grande crédito e de grande autoridade em falar ao povo, e em conseguir o que desejavam, de sorte que os generais e os guerreiros tiveram necessidade da sua eloquência, como Chares, Diopites e Leostenes, se serviram do auxílio de Demóstenes; Pompeu e o jovem César, de Cícero, como o mesmo César declara nos Comentários que escreveu a Agripa e a Mecenas. O que mais prova, porém, e mais revela a natureza do homem, como se diz, e como é verdade, é o desregramento e a autoridade de um magistrado, a qual movimenta tudo o que há de paixão no fundo do coração de um homem, e põe em evidência todos os vícios secretos que aí estão escondidos: Demóstenes não a teve, nem jamais deu disso alguma demonstração, pois nunca foi magistrado de grande autoridade e dignidade: pois não comandou, como general, o exército, que ele mesmo tinha encaminhado contra Felipe: Cícero, ao invés, foi mandado como questor à Sicília, pro cônsul à Cilicia e à Capadócia, num tempo em que a avareza e a cobiça de possuir era tão desenfreada, que os generais e os governadores, que eram envia dos para reger as províncias, considerando que era covardia roubar, arrebatavam abertamente e à força, pois naquele tempo isso não era considerado um mal, mas quem o fazia moderadamente ainda era estimado; ele, ao contrário, mostrou um grande desprezo pelo dinheiro, e deu provas da grande humanidade, doçura e temperança que nele havia. Em Roma ele foi eleito cônsul, na aparência, mas, de verdade, era ditador, com autoridade soberana e poder sobre todas as coisas, contra Catilina e seus cúmplices e o oráculo de Platão deu testemunho da verdade, quando disse: "Que as cidades teriam chegado ao fim de suas misérias e de sua infelicidade, quando, por determinação boa e divina, grande poder unido à sabedoria e justiça, se encontrassem no mesmo indivíduo".

V. Censura-se a Demóstenes o ter mercantilizado sua eloquência, afirmando-se que ele escreveu secretamente um discurso para Fórmio e um outro para Apolodoro, numa mesma causa, na qual eles eram contrários: afirmou-se que ele recebeu dinheiro do rei da Pérsia e de fato foi acusado e condenado por causa do dinheiro que tinha recebido de Harpalo. E se se afirmasse que não dizem a verdade os que escreveram e que são vários, pelo menos é impossível de refutar-se este ponto: que Demóstenes não foi homem de ânimo muito forte para recusar presentes, que os reis lhe ofereciam, rogando-lhe que os aceitasse, pela honra, que lhe faziam e para lhes ser agradável: também não era ato digno de um homem que emprestava com usura naval, a mais excessiva de todas. E, ao contrário, como já dissemos, é certo que Cícero recusou os presentes que os sicilianos lhe ofereceram durante o tempo em que foi questor e o rei dos capadócios, quando ele era procônsul da Cilicia e ainda os que lhe ofereceram seus amigos, insistindo que aceitasse grandes somas de dinheiro, quando ele saiu de Roma, para o exílio.

VI. O exílio de um foi vergonhoso e infame, considerando-se que ele foi afastado por sentença comum como ladrão, o do outro foi tão glorioso como nenhum outro ato que ele houvesse praticado, pois fora expulso por ter salvo a sua pátria de homens nocivos; por isso, daquele não se falou mais, depois que ele partiu: para este o senado, ao invés, mudou as vestes e pôs luto; determinou que não confirmaria com a sua autoridade decreto algum, antes que a repatriação de Cícero não tivesse sido decretada pelos votos do povo. É verdade que Cícero passou na ociosidade o tempo de seu exílio, nada fazendo na Macedônia: Demóstenes, ao invés, durante seu exílio, levou a efeito um dos principais atos de todo o tempo em que se ocupou dos negócios públicos, pois ele percorreu várias cidades, auxiliado os embaixadores dos gregos e rejeitando os dos macedônios: nisso ele se mostrou bem melhor cidadão que não Temístocles ou Alcibíades em semelhante conjuntura. E, logo que ele foi repatriado, se pôs de novo a seguir o mesmo caminho que tinha trilhado antes, continuou a fazer guerra a Antípater e aos da Macedônia: e Lélio em pleno senado injuriou a Cícero por ter ele ficado em silêncio, sem nada dizer, quando o jovem César pediu que lhe fosse dado obter o consulado, contra todas as leis, numa idade em que não tinha ele ainda nem um fio de barba: e Bruto mesmo censura-o por carta, de que tinha ele criado e alimentado uma tirania mais grave e maior do que a que os havia arruinado.

VII. E finalmente a morte de Cícero foi miserável: ver-se um pobre velho, ao qual os servidores, pela afeição que lhe dedicavam, afastavam da própria casa, procurando por todos os meios de fazê-lo escapar e evitar a morte, que lhe vinha ao encontro, um pouco antes do seu tempo natural e depois ainda vê-lo, velho como era, de maneira tão dolorosa ter decepada a cabeça: Demóstenes, embora se tenha rebaixado um pouco quando suplicou àquele que o viera prender, quer tivesse preparado o veneno de antemão, quer o tivesse sempre guardado consigo, tendo-o usado depois, como ele o usou, não pode deixar de ser grandemente louvável{1479}.Pois, visto que já não era grato ao deus Netuno, que ele gozasse da imunidade do seu altar, recorreu ele, por assim dizer, a alguém, maior, isto é, à morte e partiu, esquivando-se das mãos e das armas dos satélites de um tirano e zombando da crueldade de Antípater.

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