495 - Tito Lárcio.
496 - Ê um erro do texto grego; é preciso corrigi-lo para Lárcio. Trata-se de Tito Lárcio, cujo valor foi louvado no cap. X. Amyot reconheceu esse erro, em suas notas manuscritas.
497 - Foram os príncipes que fundaram a cidade de Cirene. Amyot.
498 - Estrabão, liv. XVII, pág. 1146, e Plínio, liv. VI, cap. 30, chamam-no Laturo; e encontra-se em alguns manuscritos de Plutarco, Latiro, palavra que significa uma espécie de ervilha; esse apelido, assim, equivaleria ao de Cícero.
499 - Sexto Pompeu escreve, todavia, que os homens morenos se chamavam Sullae. Amyot.
500 - Em sua carta a Dion, tomo III, pág. 312.
501 - As "Thensoe" eram carros e não liteiras.
502 - Creio que caberia traduzir "e de outra vez porque o cocheiro tomou, etc”.
503 - Deve-se traduzi r o grego: -como se por meio de coisas impossíveis e de fábulas incríveis, ele destruísse a liberdade de cada um decidir-se segundo sua razão, o que ele não faz"
504 - Alguns velhos exemplares dizem "metera", sua mãe. Amyot.
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Coriolano também foi tema de uma peça de Shakespeare. Essa imagem é da Shakespeare Gallery folio, "Coriolano, Ato V, Cena III"; gravura de James Caldwell, sobre pintura de G. Hamilton em J. & J. Boydell Publishers.
Caio Márcio Coriolano (séc. 5 e 4 a.C.) foi um general da República Romana no século 5 a.C.. Ele recebeu seu cognome toponímico, "Coriolano", por causa do excepcional valor demonstrado no cerco romano à cidade volsca de Corioli. Posteriormente foi exilado de Roma e liderou os próprios volscos em um cerco a Roma. A biografia de Coriolano faz parte de uma série de biografias escritas por Plutarco (c. 46-120), um historiador grego que viveu no Império Romano. Na série Vidas Paralelas, o autor compara vários nomes da história grega com seus equivalentes romanos. Coriolano foi comparado com Alcibíades, político de Atenas.
I. A casa dos Marcianos em Roma, pertencia ao número das patrícias, e dela saíram muitas grandes personagens, entre as quais Anco Márcio, filho da filha do rei Numa e que reinou em Roma depois de Tulo Hostílio. Pertenceram também a ela, Públio e Quinto os quais fizeram vir até o interior de Roma a maior e melhor água aí existente; Censório, assim denominado por tê-lo o povo romano eleito censor por duas vezes, baixando depois, por sua persuasão, a ordenança e a lei que daí em diante ninguém mais poderia pleitear nem exercer essa magistratura por duas vezes. Caio Márcio porém, sobre o qual presentemente pretendemos escrever, tendo ficado órfão de pai, foi criado por sua mãe viúva. Ele fez ver, por experiência, que a orfandade trazendo à criança muitos outros prejuízos não a impede contudo de tornar-se homem de bem e de excelente virtude, acima do comum. É assim, sem razão que alguns homens de natureza baixa, censuram e acusam como sendo causa de sua corrupção, a falta de cuidado dispensado a eles e a seus costumes, durante a juventude.
II. Essa mesma personagem dá testemunho à convicção de alguns, isto é, que uma natureza forte e vigorosa, quando destituída de bom alimento, produz muitos males e bens simultaneamente, da mesma forma que uma boa terra fértil, produz, em quantidade, ervas boas e más se não for bem cultivada. A força natural, a constância e perseverança de sua vontade, em tudo quanto decidia empreender, levavam-no a tentar e executar belas e grandes coisas; de outro lado porém, sua cólera impaciente e sua obstinação inflexível em não querer jamais ceder a ninguém, tornavam-no pouco acessível e inadaptado a conviver entre os homens, os quais, admirando sua firmeza impassível em jamais deixar-se vencer, nem pelo trabalho, nem pelo prazer, nem pela avareza, reconheciam nele, espontaneamente, força, temperança e justiça. Quanto ao resto todavia, não podiam aproximar-se dele, nem frequentá-lo familiarmente, como acontece entre cidadãos de uma mesma república, de tal forma suas maneiras eram desagradáveis e odiosas, em função de uma certa gravidade que lhes parecia excessivamente senhorial. Em verdade também, o melhor fruto que os homens recolhem da doçura e benignidade das Musas, isto é, do conhecimento das boas letras, é o de domarem e suavizarem a própria natureza, antes selvagem e feroz, levando-os, ao compasso da razão, a encontrar a média e a rejeitar o excessivo.
III. Ora, a esse tempo era a ação valorosa universalmente honrada e estimada em Roma, acima de todas as outras virtudes. Disso faz fé chamarem-na então «virtus», nome da própria virtude, atribuindo-se a designação do gênero comum, a uma sua espécie particular. Virtude, dessa forma, em latim, equivalia a dizer-se coragem. Márcio sendo ainda mais inclinado às armas do que qualquer outro seu contemporâneo começou logo, desde a infância, a tomá-las consigo e manejá-las. Considerando, além disso, que os armamentos exteriores e artificiais não servem quase de nada a quem não é bem munido e provido dos naturais e inatos, exercitou de tal forma seu corpo em toda sorte de trabalho e combate, que se tornou rápido na corrida, duro na luta e tão firme ao segurar, que não se encontrava homem capaz de sobrepujá-lo. Os que disputavam com ele em proezas e qualidade de coragem ao se verem superados, alegavam que ele devia sua superioridade apenas à sua força corporal e à sua resistência física, jamais vencida por nenhum exercício ou trabalho.
IV. A primeira guerra na qual tomou parte, quando ainda muito jovem, foi contra Tarquinio, cognominado o Soberbo, o qual, tendo sido rei de Roma, fora depois expulso em razão de sua arrogância. Depois de tentar seu retorno através de muitas batalhas nas quais fora sempre batido, Tarquinio desenvolveu finalmente, seu último e total es forço, apoiado pelos latinos e muitos outros povos da Itália. Com um grande e poderoso exército empreenderam esses povos restaurar o rei em seu estado, não tanto para lhe ser agradável, como para diminuir e rebaixar as forças dos romanos, a quem temiam e invejavam por seu crescimento. Nessa batalha onde se verificaram muitas mudanças pró e contra um e outro lado, combatendo Márcio ante os olhos do próprio ditador, viu um romano atirado ao chão bem perto dele.
Márcio não o abandonou, mas lançando-se à sua frente para cobri-lo, matou com as próprias mãos o inimigo que se atirava sobre ele. Depois da batalha ganha, o ditador não deixou no esquecimento um tão belo ato e coroou a Márcio em primeiro lugar, com um chapéu de ramos de carvalho, porque é costume dos romanos, honrarem com essa coroa a quem salva a vida de um concidadão. O costume decorre ou de ter a lei pretendido honrar o carvalho em consideração ao povo arcadiano, chamado outrora, comedor de glandes pelo oráculo de Apolo, ou porque é fácil à gente de guerra encontrar por toda a parte ramos de carvalho, ou porque se tenha julgado conveniente, como homenagem a quem salvava a vida de um cidadão, a dádiva de uma coroa da árvore especialmente dedicada e consagrada a Júpiter, salvador e protetor das cidades. Cabe notar, além disso, que o carvalho, entre as árvores selvagens, é a que ostenta o mais belo fruto, sendo a mais forte entre as cultivadas e domésticas. Considere-se também que os homens, a princípio, colhiam a glande como seu pão e o mel como sua bebida, e mais ainda, o carvalho lhes dava também como alimento, boa parte dos animais e pássaros, produzindo o visgo necessário para apanhá-los. Conta-se que nessa batalha apareceram Castor e Pólux, os quais, depois do combate foram vistos repentinamente na praça, com os cabelos empapados de suor, dando de primeira mão a notícia da vitória, no local onde há atualmente um templo edificado em sua honra, junto a uma fonte. É por isso, ainda hoje consagrado a Castor e Pólux o dia dessa vitória que se. verificou a quinze de julho.
V. Acontece frequentemente que quando a honra e a reputação vêm, antes do tempo, favorecer os jovens de natureza não muito elevada, se estanca e sacia a sede e ambição de glória, fácil demais para acalmar. As primeiras honras, ao contrário, não fazem mais que aguçar o apetite de quem tem o coração firme e verdadeiramente grande. São elas como os ventos que os impulsionam a empreender e a querer realizar todas as coisas altas e louváveis.
Estes não desejam a paga dos seus atos passados, mas antes parece que dão penhor e arras de suas ações futuras, com vergonha de abandonar sua glória e de não a ir sempre aumentando mais e mais, por atos semelhantes de virtude. Existindo em Márcio essa paixão, ele se esforçava por vencer-se a si mesmo agindo sempre bem e querendo dar todos os dias, alguma nova prova de seu valor, ia realizando proezas e mais proezas e acumulando despojos sobre despojos. Os novos capitães em consequência, disputavam com os precedentes, sobre quem melhor o homenagearia, dando mais honroso testemunho de sua virtude. Tendo-se os romanos, por esse tempo, envolvido em muitas guerras e batalhas, Márcio participou de todas elas e não houve uma, de onde não voltasse sem algum prêmio de honra. E assim como para os outros, era a glória a finalidade do seu amor pela virtude, para ele, a finalidade do seu amor pela glória, era a satisfação que com ela produzia à sua mãe. Porque nada havia que Márcio apreciasse mais, nem que o tornasse tão feliz levando-o a sentir-se mais lisonjeado, do que fazer sua mãe ouvi-lo engrandecido e louvado por todo o mundo, quando voltava sempre coroado, ao abraçá-lo de retorno, com lágrimas de alegria nos olhos. Conta-se que Epaminondas confessou sentir uma paixão semelhante, reputando como sua principal e maior honra, aquela na qual seus pais ainda vivos, tinham contemplado a vitória por ele obtida na planície de Leuctres, Epaminondas teve essa felicidade de ter pai e mãe vivos na ocasião, participando de sua alegria e prosperidade. Márcio porém, considerando dever cumulativamente à sua mãe o que devia também a seu pai se ainda existisse, não se contentou apenas em satisfazê-la e honrá-la, mas a seu empenho e súplica, casou-se e teve filhos, sem contudo jamais separar-se dela.
VI. Quando Márcio já atingira grande autoridade e reputação em Roma por motivo de sua virtude, aconteceu que o senado, sustentando o partido dos ricos, entrou em grande dissensão com a plebe. Sentia-se esta tratada de forma excessivamente dura, oprimida pelos usurários que lhe tinham emprestado dinheiro. Quem possuía alguns poucos haveres era privado deles pelos credores, que os faziam arrecadar por falta de pagamento da usura, levando-os a leilão.
Os que nada tinham eram pessoalmente detidos, sendo suas pessoas tratad as como escravas, embora mostrassem cicatrizes e feridas recebidas em muitas batalhas das quais haviam participado, a serviço e em defesa da república. Entre essas guerras fora a última travada contra os sabinos, a quem haviam combatido mediante promessa feita pelos ricos de tratá-los mais humanamente no futuro, tendo-se responsabilizado por isso o príncipe do senado Marcos Valério, com autorização do conselho. Depois, porém, de terem cumprido bem o seu dever desbaratando os inimigos, vendo os plebeus que não os tratavam em nada, melhor nem mais humanamente e que o senado ensurdecia, demonstrando não lembrar-se das promessas feitas e os deixava serem levados como escravos por seus credores, permitindo que fossem despojados de todos os seus bens, começaram então, a amotinar-se abertamente, gerando más e perigosas sedições no interior da cidade.
VII. Advertidos os inimigos do que acontecia, entraram em armas pelo território romano, queimando e pilhando tudo por onde passavam. Para remediar ao perigo, fizeram os magistrados convocar ao som de trombeta, todos quantos estivessem em idade de pegar em armas para virem alistar-se para a guerra. Ninguém, entretanto, obedeceu ao comando. As opiniões dos principais homens detentores da autoridade na direção dos negócios, se dividiram então. Foram uns de parecer que era razoável afrouxar e ceder um pouco à exigência da plebe, relaxando-se parcialmente a severidade excessiva das leis. Outros, entre os quais Márcio, sustentavam o contrário, alegando não ser o pior de tudo isso, a perda de dinheiro que viriam a sofrer os emprestadores mas sim que se estava diante de um princípio de desobediência, e de uma tentativa insolente e audaciosa do populacho desejoso de abolir as leis e lançar tudo na confusão. O senado portanto, se fosse prudente, devia prover à extinção imediata dessa tentativa, sufocando-a no nascedouro.
VIII. O senado reuniu-se várias vezes em poucos dias para decidir sobre o assunto sem todavia tomar resolução nenhuma. Vendo isso, os pobres acompanhados da arraia miúda, juntaram-se em bando e atribuindo-se coragem uns aos outros, abandonaram a cidade, indo estabelecer-se sobre uma colina denominada hoje o Monte Sagrado, junto ao rio Teverone, Não praticavam violência nem nenhuma outra demonstração de revolta a não ser a de irem gritando que de longa data, os ricos já os tinham expulso da cidade, e que por toda a Itália eles encontrariam ar e água e local para se fazerem enterrar, enquanto, mantendo-se em Roma. Eles nada tinham a ganhar a não ser ferimentos e morte nas contínuas guerras e batalhas que sustentavam em defesa da opulência d os abastados. O senado aturdido com a sua partida, enviou-lhes, como parlamentares os anciãos mais populares e amáveis de seu meio, entre os quais se encontrava Menênio Agripa. Depois de muitas razões debatidas com franqueza, e de muitas súplicas do senado cordialmente transmitidas ao povo, Menênio encerrou sua arenga com uma fábula bastante expressiva, dizendo-lhes: «Todos os membros do corpo humano se rebelaram certo dia, contra o ventre. Acusavam-no e se queixavam de que ele só se mantinha acomodado no meio do corpo sem fazer nada, nem contribuir com seu trabalho para a manutenção comum, enquanto todas as demais partes desenvolviam grandes esforços e prestavam laboriosos serviços para prover ao seu apetite. O ventre entretanto zombou da loucura dos demais, porque «embora seja verdade, dizia ele, que eu receba em primeiro lugar todas as iguarias e o alimento necessário ao corpo humano, devolvo depois e distribuo tudo entre todos». «Assim, concluiu Menênio, senhores cidadãos romanos, o senado alega junto a vós uma razão semelhante. Os negócios bem digeridos ali, com o exame minucioso dos conselhos sobre o que é útil e conveniente à coisa pública, são causa dos proveitos e bens recebidos por cada um de vós».
IX. Essas observações aplacaram a plebe mediante a outorga, por parte do senado, da eleição anual de cinco magistrados hoje denominados tribunos do povo, com o encargo de apoiar e defender os pobres a quem se queria espezinhar e oprimir. Foram então eleitos como primeiros tribunos, aqueles que haviam sido autores e condutores dessa sedição, Júnio Bruto e Sicino Veluto. Mal a cidade foi reconduzida à união e à concórdia, o povo retomou armas incontinente, revelando seu anseio de mostrar-se melhor do que nunca, obedecendo atenciosamente aos magistrados, naquilo que lhes era ordernado para a guerra. E Márcio, muito embora insatisfeito de ver acrescida a força popular visto que isso acontecia em prejuízo e diminuição da nobreza, e não obstante perceber que os outros nobres e patrícios sentiam o mesmo, exortou-os todavia «a não mostrar-se menos devotados do que a plebe em tomar armas e combater pela república, Cabia-lhes dar a conhecer de fato, que eles não superavam tanto os plebeus em riqueza e poder, como em valor e coragem.»
X. Ora, havia no país dos volscos contra quem, a esse tempo os romanos sustentavam guerra, uma cidade capital e de autoridade suprema denominada Coriolos, cujo sítio foi estabelecido pelo cônsul Comínio. Os outros volscos, temendo, que ela viesse a ser tomada de assalto, reuniram-se de todos os lados para socorrê-la. Tencionavam dar batalha aos romanos diante da própria cidade onde podiam atacá-los de dois lados. Percebendo sua intenção, o cônsul Comínio, dividiu também em dois seu exército e com uma parte dele foi, em pessoa, ao encontro dos que vinham do lado de fora, deixando no acampamento a outra parte, sob o comando de Tito Lártio495, um dos homens mais corajosos existentes entre os romanos, para fazer frente a quem pretendesse organizar uma sortida partindo da cidade. Os coriolanos, em consequência, dando pouca importância aos que tinham permanecido no cerco de sua cidade, saíram contra eles e levando a melhor logo de princípio, repeliram os romanos até o interior do seu campo fortificado, onde se encontrava Márcio. Lançou-se este para fora, com pouca gente, fez em pedaços o primeiro grupo de inimigos a quem se dirigiu, e deteve abruptamente o ímpeto dos demais, agrupando de novo e chamando em alta voz para o combate, os romanos em fuga. Ele era exatamente como Catão ideava o homem de guerra: não somente rude e duro nos golpes, mas também tremendo ao inimigo pelo som da voz e pelo seu aspecto terrível. Reuniu-se assim imediatamente boa tropa de romanos em torno dele, provocando tamanho terror nos adversários que estes recuaram. Márcio todavia, não contente com o resultado, perseguiu-os e os expulsou em fuga precipitada, até para dentro de suas portas. Ao ver aí que os romanos recuavam em virtude do grande número de dardos e flechas lançados sobre ele de cima das muralhas, sem que houvesse nenhum cm ousadia de pensar sequer, em lançar-se de envolta com os fugitivos no interior da cidade, cheia de gente de guerra bem armada, Márcio os encorajou por ato e palavras, gritando-lhes que a sorte abrira as portas mais em favor dos perseguidores do que dos perseguidos. Não houve entretanto, assim mesmo, quase ninguém que ousasse segui-lo. O próprio Márcio, porém, lançou-se através da massa de inimigos e fazendo caminho até a porta entrou na cidade de mistura com os fugitivos, sem que a princípio ninguém tivesse a ousadia de fazer voltar face nem deter-se para resisti-lo. Márcio entretanto, olhando em torno de si, percebeu que entrara com ele pouca gente sua para socorrê-lo, e vendo-se envolvido de todos os lados pelos inimigos que se reagrupavam para cair sobre ele, praticou então, como está escrito, proezas incríveis tanto em golpes, como em agilidade, disposição pessoal e ousadia valorosa, rompendo e derrubando todos aqueles sobre os quais se atirava, conseguindo afugentar alguns até os mais retirados bairros da cidade e levar outros, de medo, a render-se e a lançar suas armas em terra diante dele. Lártio que estava do lado externo, teve por isso, o tempo suficiente para conduzir os romanos com segurança até o interior da praça.
XI. Tomada assim a cidade, a maior parte dos soldados se lançou imediatamente à pilhagem, transportando e recolhendo os despojos conquistados. Márcio, porém, irritou-se com o maior azedume contra sua atitude, bradando-lhes que não tinha propósito eles se preocuparem com o saque, correndo daqui para ali à procura de enriquecimento e procurando meios de escapar ao choque e ao perigo sob o pretexto de acumular a presa de guerra, enquanto o cônsul e os seus concidadãos estavam, talvez, empenhados em combate contra os inimigos. Não obstante todas as suas razões, houve bem poucos, que lhe prestaram ouvidos. Tomando então consigo aqueles que, voluntariamente, se ofereceram para segui-lo, Márcio saiu da cidade e tomou o caminho do setor onde supôs encontrar-se o resto do exército. Exortava e suplicava reiteradamente pelo caminho, aos companheiros para não deixarem fraquejar o coração e, levantando muitas vezes as mãos para os céus, rogava aos deuses para lhe concederem a graça de chegar a tempo de participar da batalha e arriscar a vida em defesa de seus concidadãos. Ora, era então costume dos romanos, quando se colocavam em formação de batalha, e estavam prestes a tomar nos braços os escudos e a cingir-se por cima das vestes, fazer ao mesmo tempo, seu testamento,’ não por escrito, mas indicando aquele a quem desejavam constituir herdeiro, em presença de três ou quatro testemunhas. Márcio chegou justamente no momento em que os soldados iam tomar essa providência com os inimigos à vista e já bem próximos. Quando o perceberam assim, todo sujo de sangue e empapado de suor, com pequeno acompanhamento, apoderou-se de alguns a confusão e o espanto. Logo porém que o viram correr de rosto alegre para o cônsul e tocar-lhe na mão, narrando-lhe como fora conquistada a cidade de Coriolos, vendo também como o cônsul Comínio o beijava e abraçava, não houve mais ninguém que não recobrasse coragem, uns por terem ouvido minuciosamente a narrativa do sucedido nessa feliz jornada, e os demais por imaginá-la, à distância, à vista dos seus gestos. Começaram todos então a gritar ao cônsul que fizesse romper a marcha sem mais detença, dando início à carga.
XII. Márcio perguntou a Comínio, qual era a organização da linha inimiga e onde se encontravam as suas melhores tropas. O cônsul respondeu-lhe supor que os contingentes colocados na frente da formação adversária, eram compostos de antiatas, considerados os mais belicosos, não cedendo em audácia a nenhuma outra tropa da hoste inimiga. «Rogo-te então, replicou Márcio, e requeiro, que me coloques exatamente frente a eles.» O cônsul aquiesceu, louvando-lhe muito a boa vontade. Márcio, mal os dois exércitos se viram prestes a entre chocar-se, lançou-se para a frente, distanciando-se bastante de sua tropa, e carregou com tal fúria os que vinham a seu encontro que eles não puderam resistir por muito tempo. A linha de batalha inimiga sobre a qual ele veio a dar, foi imediatamente rompida, entre abrindo-se.
Os inimigos de ambos os lados entretanto voltaram-se uns sobre os outros, para envolvê-lo e fechá-lo no meio deles. Temendo esse resultado o cônsul enviou imediatamente ao local, os melhores combatentes mantidos a seu lado. Houve assim um duro choque em torno de Márcio e, em pouco tempo muitos homens tombaram mortos no lugar. Os romanos fizeram finalmente um esforço tão grande que conseguiram forçar e quebrar os inimigos. Depois de seu rompimento começaram a expulsá-los, rogando a Márcio que consentisse em retirar-se para o acampamento, pois ele já não podia mais, de tal forma se via vencido pelo trabalho e pelas feridas recebidas. Márcio porém, respondeu-lhes «que não cabia aos vitoriosos render-se nem deixar fraquejar o coração», e avançou pessoalmente contra os fugitivos, até que o exército dos inimigos foi completamente destroçado, com grande número de mortos e prisioneiros.
XIII. No dia seguinte dirigiu-se ao cônsul, em companhia dos outros romanos. O cônsul então, sobre um tribunal, presente todo o exército, rendeu as graças cabíveis aos deuses por tão grande e glorioso êxito e dirigiu em seguida sua palavra a Márcio, cuja virtude louvou e exaltou com o maior relevo, tanto pelo que ele próprio vira, como pela narrativa de Márcio496. Disse-lhe enfim, que de todos os cavalos capturados bem como de todos os demais bens apressados e obtido s em grande quantidade, escolhesse ele dez de cada espécie, à sua vontade, antes da distribuição geral. E além disso, em testemunho de que nesse dia ele tinha conquistado o prêmio por atos de valor, sobre todos os demais, deu-lhe ainda um magnífico cavalo inteiramente armado e aparelhado. Todos os assistentes louvaram e aprovaram calorosamente a decisão. Márcio, porém, dando um passo à frente, declarou que recebia de bom grado o presente do cavalo, muito satisfeito de que seu capitão se revelasse assim tão contente com ele, elogiando-o dessa forma. Quanto ao resto, porém, mais semelhante a um pagamento mercenário do que recompensa honrosa, ele não o queria, contentando-se em receber apenas a sua parte igual à dos demais. «Mas, disse ele, peço-te ainda uma graça, rogando-te seja-me ela concedida. Tenho entre os volscos um hóspede e antigo amigo, homem de bem e de honra, agora prisioneiro. Ele que foi antes rico e opulento em sua casa, é hoje pobre cativo entre mãos inimigas. D e todos os males e desgraças que o cercam no presente, basta-me podê-lo isentar, de uma coisa apenas: que ele não seja vendido como escravo.»
XIV. Ouvidas essas palavras de Márcio, levantou-se um grande alarido em toda assistência, sendo mais numerosos os que admiraram o seu ascetismo, vendo-o tão pouco influenciado pela cobiça, do que os demais que haviam proclamado sua coragem. Mesmo quem alimentava contra ele um pouco de inveja e ciúme, vendo-o assim tão prestigiado e louvado, considerou-o tanto mais digno da exaltação de seu valor, quanto menos ele o aceitava. Foi assim mais amada essa sua virtude de menosprezar tantos bens, do que a outra, em razão da qual lhe eram esses bens deferidos, como a pessoa digna deles. Porque é mais louvável o bom uso dos bens de fortuna, do que o das armas, e provoca ainda maior respeito não apetecê-los, do que usá-los bem. Depois, porém, que a agitação e o clamor da assembleia se acalmou um’ pouco, tomou a palavra o cônsul Comínio para dizer: «Não podemos, senhores, constranger Márcio a aceitar os presentes que lhe oferecemos se não é de seu agrado recebê-los. Vamos entretanto dar-lhe um, tão adequado a seu belo feito, que ele. não o poderá recusar: ordenamos assim, doravante, que ele seja denominado Coriolano, se é que seu ato de valor já não lhe atribuiu esse nome antes de nós.»
XV. Depois desse dia ele adotou sempre esse terceiro nome de Coriolano, de onde se verifica que o primeiro nome. atribuído aos romanos, como Caio, era o próprio; o segundo como Márcio, era o nome de família e de estirpe; o terceiro era um apelido que se dava ou por um ato, ou por algum acidente notável, ou por qualquer marca da face ou forma do corpo, ou ainda por alguma virtude. Os gregos, da mesma forma, impunham também antigamente apelidos aos príncipes, derivados ou de algum ato memorável, como quando chamavam alguém Sóter e Calínicos, isto é, salvador e vitorioso; ou de alguma marca aparente no rosto ou no corpo, como Fiscon e Gripos, isto é, barrigudo ou obeso e nariz aquilino; ou de qualquer virtude, como Evergetes e Filadelfo, isto é, benfeitor e amigo dos irmãos; ou da sorte, como Eudemo, isto é, feliz, assim como se apelidou o segundo dos Batos497. Houve também reis a quem se atribuiu por cognome o sentido de alguma zombaria, como a um dos Antígonos, apelidado Doson, isto é, o que há de dar, porque ele prometia sempre sem jamais cumprir. Um dos Ptolomeus foi também chamado498 Lamiro, isto é, engraçado e palrador. E desse costume de impor nomes enfeixando uma alusão satírica, usaram os romanos mais do que ninguém, como fizeram com um Metelo, cognominado Diademato, isto é, o diademado, porque mantivera, por muito tempo, uma faixa em torno da cabeça, por causa de uma úlcera na testa.
Houve outro, da mesma família, chamado Céler, isto é, rápido, porque, bem poucos dias após a morte do pai, fez exibir ao povo combates de gladiadores que causaram admiração pela celeridade dos preparativos. Receberam outros, apelidos tirados de algum acidente do seu nascimento, como ainda hoje chamam Próculo a quem nasce enquanto o pai está ausente em viagem distante, e Póstumo a quem nasce após a morte do pai. Quando de dois irmãos gêmeos, morre um e o outro sobrevive, o sobrevivente é chamado Vopisco. Os romanos muitas vezes também, impõem apelidos tomados de alguma marca ou acidente do corpo, como Sylla, isto é, cara vermelha;499 Rufo, ruivo; Caeco, cego; Cláudio, coxo, levando, com muita razão, os homens a não considerarem como censuráveis ou vergonhosos a perda da vista ou outros acidentes fortuitos semelhantes, suscetíveis de acontecer a qualquer um. Os acidentados se acostumam assim, a responder francamente, como se fossem seus verdadeiros nomes, quando são chamados por esses apelidos. Discurso mais amplo sobre a matéria, entretanto, seria mais adequado a outro tratado.
XVI. Terminada essa guerra, os aduladores da plebe, suscitaram, em seguida, um novo levante, sem que houvesse motivo nem matéria justa de queixa. A segunda revolta contra os nobres e patrícios teve por fundamento os males e desgraças que se haviam seguido necessariamente às discórdias e sedições passadas, porque a maior parte do território de Roma permanecera sem cultivo e semeadura, e não se tivera tempo de fazer vir o trigo de outras regiões, por causa da guerra. Uma extrema carestia resultou de tudo isso. Percebendo então, os demagogos que conquistavam as boas graças da arraia miúda ao falar na falta de trigo existente e na carência de dinheiro sofrida pela plebe, a qual não poderia comprar o trigo ainda que o houvesse, começaram a disseminar rumores falsos e imputações caluniosas contra os nobres. Diziam que, para vingar-se do pobre povo, eles tinham deliberadamente procurado e influído no advento dessa grande carestia.
XVII. Aconteceu além disso, entrementes, que vieram embaixadores da cidade de Velitras, os quais ofereceram a sua cidade ao povo romano, e rogaram lhe fossem enviados novos habitantes para repovoá-la, porque a peste fora ali tão cruel, fazendo morrer tanta gente, que não restara na cidade a décima parte do povo antes existente. Pensaram então os mais sensatos que essa necessidade de Velitras vinha bem a propósito, considerando ser necessário, numa tão grande escassez de víveres, descarregar, um pouco, a cidade de Roma de sua população muito numerosa. Pensavam também amortecer pelo mesmo meio, esse novo levante, limpando a cidade dos indivíduos mais sediciosos e rebeldes, exatamente como se tratasse de maus humores, causadores da doença. Os cônsules organizaram então uma lista dos que pretendiam enviar a Velitras, para aí se fixarem em forma de colônia, e fizeram, ao mesmo tempo, um levantamento dos demais que permaneciam em Roma, para marchar contra os volscos, esperando apaziguar por meio da guerra exterior, as lutas e dissensões intestinas. Supunham que ao se encontrarem todos em armas no mesmo acampamento, diante das mesmas expectativas, arriscando-se aos mesmos perigos, pobres e ricos, plebeus e nobres, se entenderiam uns com os outros de forma mais pacífica e amigável. Sicino e Bruto porém, dois oradores populares, se opuseram a um e outro plano, bradando que os nobres, ao executá-los, cobriam a mais desumana crueldade do mundo, sob o nome agradável e sonoro de colônia. Enviavam, na verdade, seus pobres concidadãos a uma cidade infectada de miasmas e pestilencial, cheia de corpos mortos não enterrados, para residir sob a guarda de um deus estranho que até mesmo aos seus perseguira tão cruelmente. Era como precipitá-los em um abismo de maldição. E como se ainda não lhes bastasse deixar morrer de fome, alguns dos seus infelizes compatriotas e abandonar outros à peste, suscitavam, além disso, uma guerra voluntária para não poupar de nenhuma espécie de miséria de mal o pobre povo romano só porque se cansara de servir aos ricos.
XVIII. A plebe encharcada de tais propósitos, não queria comparecer quando a chamavam da parte dos cônsules para a conscrição de guerra. Revelava também grande repulsa pela nova colônia, de forma que o senado já não sabia como resolver a dificuldade. Márcio porém, com a sua alta reputação já adquirida e sua firmeza viril, estimado e honrado além disso pelos maiores da cidade, resolveu fazer frente e resistir abertamente aos aduladores da plebe. O repovoamento de Velitras, tinha sido finalmente conseguido, obrigando-se a partir aqueles a quem a sorte indicara para transferir-se para aquela cidade, mediante graves penas a quem desobedecesse. Quanto à guerra porém, não queria o povo obedecer de forma alguma.
Márcio, em consequência, tomando consigo os seus dependentes e mais a quem conseguiu induzir com boas palavras, foi correr todo o território dos antiatas onde encontrou muito trigo, recolhendo grande presa, tanto em gado como em prisioneiros, que conduziu a Roma sem reter coisa alguma para si. Trouxe, outrossim, de volta à cidade, sãos e salvos a todos quantos levara consigo, ricos e carregados de despojos. Os demais que haviam permanecido em Roma, arrependeram-se, então, de não tê-lo seguido, e, concebendo inveja contra quem saíra tão bem do empreendimento, voltaram também sua malquerença contra Márcio, despeitados de ver avançar assim diariamente sua reputação e prestígio, considerando que isso acontecia em detrimento do poder popular.
XIX. Coriolano, pouco tempo depois, veio a pleitear o consulado. Já cedia a comuna a seu pedido, com vergonha de repelir e afastar a primeira personagem da cidade em nobreza de sangue e valor pessoal e que, além disso, lhe tinha prestado tantos e tão grandes serviços. Era então costume em Roma que os pretendentes a qualquer magistratura ou ofício público, se mantivessem na praça por alguns dias, vestidos somente com roupa simples, sem nada por baixo, para solicitar e requerer a seus concidadãos que os tivessem como recomendados quando chegasse o dia da eleição. Agiam assim, ou para comover ao máximo o povo, ao solicitar-lhe o apoio na humildade dessa indumentária, ou para poder mostrar as cicatrizes dos ferimentos recebidos nas guerras em favor da república, como marcas e testemunhas incontestáveis do seu valor. Não cabe supor fosse por medo e suspeita de que a arraia miúda se deixasse corromper por distribuição de dinheiro pelos candidatos, que se obrigava a estes a virem assim à praça, vestidos com essa simplicidade, sem cintura e sem roupa de baixo, para a disputa eleitoral. Só muito tarde e muito tempo depois, é que interveio nas eleições das magistraturas a compra e venda, adquirindo-se os votos e sufrágios dos eleitores a poder de dinheiro. Depois, porém, que essa corrupção começou nas eleições dos cargos públicos, foi-se disseminando de mão em mão, até alcançar a sentença dos juízes e o trabalho da gente de guerra. Essa mesma corrupção foi finalmente causa de transformar-se a república em monarquia, pondo a serviço e sujeitando ao dinheiro, as próprias armas. Não me parece destituído de razão quem afirma ter sido «aquele que primeiro ofereceu banquetes e distribuiu dinheiro à plebe, quem, ao mesmo tempo, lhe tirou a autoridade e arruinou a república.» Esse mal porém infiltrou-se em Roma, pouco a pouco e progrediu secretamente, sem ser percebido durante muito tempo. Não se sabe quem tenha sido o primeiro a comprar e corromper aí a votação popular e as sentenças dos juízes. Em Atenas todavia, quem antes de todos deu dinheiro a estes magistrados para suborná-los, foi Anito, filho de Antemião, mais ou menos no período final da guerra do Peloponeso, quando acusado de traição pela entrega do forte de Pila. A esse tempo, a idade áurea, impoluta e íntegra, reinava ainda entre os juízes de Roma.
XX. Márcio, seguindo o costume, mostrava então pelo corpo muitas cicatrizes dos ferimentos recebidos em inúmeras batalhas, durante os dezessete anos em que tinha sido constantemente o primeiro na guerra. O fato era tão evidente que não havia entre o povo ninguém que em seu foro íntimo não tivesse vergonha de recusar um homem tão virtuoso, concordando uns e outros na necessidade de elegê-lo a qualquer preço. Quando porém chegou o dia da eleição e Márcio desceu à praça em grande pompa acompanhado de todo o senado, tendo em torno dele os mais nobres da cidade, empenhados em fazê-lo eleger com um calor jamais demonstrado em nenhum outro empreendimento, então, o amor e benevolência popular começaram a transformar-se em inveja e ódio. A plebe temia, além disso, colocar essa magistratura de supremo poder entre as mãos de uma personagem tão parcial da nobreza e com tanto prestígio e autoridade entre os patrícios, receando pudesse pretender retirar inteiramente ao povo, toda a liberdade. Márcio, nessa conjuntura, foi finalmente recusado, declarando-se cônsules dois outros candidatos. O senado sentiu-se extremamente magoado com isso, considerando o ultraje da recusa feito mais contra ele do que contra Márcio. Este porém o sentiu com o maior azedume e impaciência, deixando-se levar com muita frequência pela cólera e por uma obstinada teimosia, tomadas por corajosa altivez e magnanimidade.
Márcio não tinha a gravidade, a frieza e a doçura, temperadas pelo discernimento de boa doutrina e razão, indispensáveis a um governador de estado político. Não compreendia que a obstinação é, de todas as coisas, a que mais deve ser evitada para o homem desejoso de envolver-se no governo de uma república, onde se mantém em contacto com os homens. A contumácia, como diz Platão,500 é solitária, isto é, os que se agarram teimosamente à própria opinião, não querendo jamais acomodar-se à dos demais, ficam sós finalmente. É preciso que quem deseja viver no mundo, se torne amante da paciência, escarnecido por alguns insensatos.
XXI. Márcio também, sendo por natureza homem franco e íntegro, não cedia nunca. Agindo como quem considerava que vencer sempre e flutuar acima de todas as coisas, constitui prova de grandeza e não de tolice e debilidade, as quais, como a matéria de um tumor, brotam da ira, a parte mais fraca e apaixonada da alma, Márcio retirou-se para sua casa, tomado de rancor, despeito e cólera amarga contra o povo, seguido dos jovens fidalgos, especialmente dos mais corajosos, de espírito e coração mais elevados em virtude da nobreza de suas casas, acostumados, de longa data, a acompanhá-lo e honrá-lo. Eles se conservaram, nessa ocasião, mais chegados a Márcio do que nunca e fazendo-lhe inoportuna companhia, irritaram e inflamaram ainda mais a sua cólera. Queixavam-se, sentindo-se magoados na sua pessoa, da injustiça sofrida, porque Márcio era seu capitão e mestre que os conduzia à guerra e lhes ensinava tudo quanto se refere à disciplina militar, despertando suavemente entre eles, um calor de honra e virtuosa emulação, sem inveja ao louvor atribuído a quem agia dignamente.
XXII. Chegou, entrementes, grande quantidade de trigo a Roma, parte comprado na Itália, parte enviado de presente por Gelão, ditador de Siracusa. Houve então grande esperança de que, juntamente com a carestia de víveres, cessasse também a sedição civil. O senado foi imediatamente reunido, espalhando-se também a plebe em torno do palácio, onde se mantinha o conselho. Aguardavam a resolução senatorial, esperando que a parte do trigo adquirido por compra, seria vendida barato, enquanto a doada seria distribuída gratuitamente por cabeça. Esperavam esse resultado tendo em vista que alguns dos senadores presentes ao conselho, opinavam nesse sentido. Márcio porém, levantando-se, atacou acremente aos que desejavam agradar a comuna por esse meio. Chamou-os aduladores do povo e traidores da nobreza. Disse que eles nutriam e fomentavam contra si próprios, sementes daninhas de audácia e insolência já disseminadas entre o povo, as quais deviam ter abafado e sufocado logo ao nascer se tivessem agido com bom senso, sem permitir que a plebe se fortificasse em seu detrimento, concedendo-lhe, como o haviam feito, uma magistratura de tão grande poder e autoridade. Cabia ver que o povo já lhes era temível, conseguindo obter tudo quanto desejava, sem fazer coisa alguma contra seu agrado, vivendo já, sem obedecer aos cônsules, em absoluta licença, sem reconhecer nenhum superior com poder, de comandá-lo, a não ser os próprios chefes e criadores do seu partido, chamados por ele seus magistrados. «Aqueles, portanto, dizia ele, que aconselhavam e eram de parecer favorável às doações públicas e distribuições gratuitas de trigo pela comunidade, como era costume nas cidades gregas onde o povo desfrutava do poder mais absoluto, não faziam outra coisa senão fomentar a desobediência da plebe que, no fim de contas, resultaria na ruína total da república. Os plebeus já não pensarão que o benefício seja a recompensa dos seus serviços, visto saberem perfeitamente quantas vezes recusaram ir à guerra, embora recebendo ordem para isso; nem dos seus motins, na ocasião em que se separaram de nós, traindo e abandonando seu país; nem das calúnias disseminadas por seus aduladores, aprovadas e recebidas por eles, em oposição ao senado. Hão de pensar, certamente, que lhe damos e concedemos essa vantagem porque o tememos e adulamos. Sua desobediência, assim, irá sempre crescendo cada vez mais e eles não cessarão jamais de suscitar novas contendas e sublevações. Seria portanto grande loucura nossa, agir nesse sentido. Se formos prudentes, ao contrário, devemos arrebatar-lhes o tribunado, evidentemente destruidor da magistratura consular e fator de divisão da cidade, a qual por esse meio deixou de ser uma como antes, para se desmembrar em duas parcialidades que excitarão sempre, a discórdia e dissensão entre nós, jamais permitindo o restabelecimento de nossa união em um único corpo.»
XXIII. Deduzindo essas razões e outras semelhantes, Márcio inflamou admiravelmente a juventude em favor de sua opinião bem como a quase todos os homens ricos, levando-os a proclamar que ele era o único em toda a cidade, que não se dobrava diante da plebe, nem a lisonjeava. Havia apenas entre os velhos, alguns que o contradiziam, temendo os inconvenientes porventura resultantes de sua atitude, os quais realmente se evidenciaram logo em seguida. Os tribunos do povo, presentes a essa consulta do senado, quando perceberam que a opinião de Márcio prevalecia pela maioria dos votos, lançaram-se para fora por entre a multidão clamando ao povo por auxílio e pedindo-lhe que se reunisse em assembleia para socorrê-los. Provocou-se, em consequência, a reunião imediata de uma tumultuosa assembleia popular, na qual foram denunciadas publicamente as teses de Márcio, defendidas perante o senado. Rebelou-se a comuna, tão fortemente com isso, que pouco lhe faltou para correr furiosa, no mesmo instante, contra todo o senado. Os tribunos, porém, lançaram toda a culpa exclusivamente sobre Márcio e, ao mesmo tempo, mandaram intimá-lo por seus lictores a que comparecesse prontamente e em pessoa diante do povo, para aí responder pelas palavras por ele pronunciadas.
XXlV. Márcio repeliu altivamente os oficiais que lhe fizeram a intimação. Os próprios tribunos então, foram pessoalmente, acompanhados dos edis, para trazê-lo à força e puseram, de fato, a mão sobre ele. Os nobres patrícios porém, juntando-se em torno de Márcio, rechaçaram para trás os tribunos e espancaram rudemente os edis. A noite que tombara a esse tempo, apaziguou o tumulto. No dia seguinte de manhã, entretanto, vendo os cônsules, acorrer de todos os lados o povo em revolta, tiveram medo de que toda a cidade entrasse em efervescência. Reunindo então o senado apressadamente, ponderaram ser conveniente acalmar o povo com palavras brandas e amenizá-lo por meio de decretos vantajosos em seu favor. Se houvesse prudência, disseram, devia-se pensar que não era tempo de obstinação nem de disputa e choque contra a comuna, por motivo de honra. Passavam todos por época extremamente perigosa, onde era necessário governar discretamente, tomando alguma providência serena e pronta. A maior parte de senadores presentes a esse conselho, considerou esse o parecer mais são e se pôs de acordo com ele. Os cônsules, em consequência, saindo do senado, foram falar ao povo da maneira mais calma e apaziguadora que puderam. Aplacaram assim o furor popular, justificando o senado das calúnias assacadas injustamente contra ele e demonstrando mediante censura de grande moderação, as faltas cometidas pelo próprio povo. Quanto à venda do trigo, de resto, prometeram não altercar com ele na fixação de preço.
XXV. Restabelecida a calma entre os plebeus, percebia-se pelo seu silêncio e audiência pacífica, que eles cediam e recebiam com agrado a oração dos cônsules. Levantaram-se então os tribunos e disseram que à vista de ter-se o senado rendido à razão, o povo, de seu lado, cedia também em tudo quanto era justo. Não obstante, porém, era indispensável que Márcio viesse pessoalmente responder aos seguintes quesitos: «Se ele não havia sugerido e solicitado ao senado a mudança da organização atual da república, retirando-se do povo a autoridade suprema. Se chamado em justiça pelos tribunos, ele não linha desobedecido por contumácia.
Se finalmente, ele não espancara e ultrajara os edis, na praça, diante de todo o mundo. E se, agindo assim, não tinha feito o possível para suscitar uma guerra civil, induzindo os cidadãos a tomar armas uns contra os outros.» Esse inquérito destinava-se a uma destas duas finalidades: ou Márcio, contra seu natural, ver-se-ia constrangido a humilhar-se, rebaixando a altanaria e orgulho do seu coração, ou, se perseverasse em sua conduta, irritaria tão profundamente o rancor popular contra ele, que jamais seria possível reconciliá-los. Previam os tribunos como mais provável a verificação da segunda hipótese, e previam certo, tendo em vista o temperamento da personagem.
XXVI. Márcio apresentou-se como se fosse para responder às acusações assacadas contra ele e o povo se calou, dando-lhe tranquila audiência para ouvir suas razões. Mas em vez de escutar, como esperava, palavras humildes e súplicas, Márcio começou a usar não somente uma franqueza verbal de si mesmo odiosa, mais semelhante a uma acusação do que a uma defesa livre, como também revelou em seu tom de voz forte, e aspecto rebarbativo, uma segurança próxima de desprezo e da distância. O povo, cheio de azedume, irou-se profundamente contra ele e demonstrou seu despeito ao ouvi-lo falar nesse tom de desafio, não o podendo mais suportar. Sicino então, o mais violento e audacioso dos tribunos populares, depois de conferenciar em voz baixa, durante algum tempo, com os seus companheiros, proclamou alto e publicamente que Márcio fora condenado à morte pelos tribunos. Determinou, ao mesmo tempo, aos edis que o prendessem e levassem imediatamente ao castelo sobre a rocha Tarpéia, para, dali, o precipitarem.
XXVII. Quando os edis pretenderam pôr as mãos sobre Márcio em execução da ordem recebida, houve muitos entre o próprio povo, a quem o fato pareceu excessivamente violento e cruel. Os nobres entretanto não se podendo mais conter e transportados de cólera, acorreram com grandes gritos para socorrê-lo e repelindo a quem pretendia apanhá-lo, encerraram-no em seu meio, havendo alguns entre eles que estenderam as mãos juntas para a multidão implorando-lhe não insistisse em proceder tão rigorosamente. As palavras e os gritos entretanto, de nada serviam, tal era o tumulto e a desordem. Os pais e amigos dos tribunos, finalmente, tendo concluído que seria impossível levar Márcio para puni-lo, de acordo com a sua condenação, sem grande morticínio e destruição dos nobres, fizeram ver a eles e os persuadiram a não insistirem nessa execução tão extraordinária e violenta, levando à morte uma tal personagem, sem lhe mover previamente processo regular, nem guardar forma de justiça. Pediram-lhes que submetessem o julgamento ao voto e sufrágio do povo.
XXVIII. Sicimo então, caindo um pouco em si, perguntou aos patrícios por que razão tiravam Márcio das mãos do povo que lhe queria aplicar a punição. Retrucaram-lhe os patrícios, perguntando por que razão pretendiam eles próprios levar à morte, de forma tão cruel e má, um dos maiores homens de bem e dos mais virtuosos da cidade, sem respeitar forma de justiça e sem que ele fosse judicialmente ouvido e condenado. «Pois bem, disse Sicino, se essa é a única razão, não se dê por isso pretexto nem motivo de luta e sedição civil contra o povo, porque eles vos outorga o vosso pedido de que o processo de Márcio lhe seja movido judicialmente.» «Portanto, disse ele dirigindo a palavra a Márcio, nós te intimamos a comparecer diante do povo ao terceiro dia do próximo mercado, para tua justificação e prova de que não cometeste crime. Depois disso o povo votará a sentença.» Os nobres se contentaram com essa intimação, bastando-lhes, no momento, poder retirar Márcio, a salvo.
XXIX. No espaço de tempo entretanto, que havia até o terceiro dia do próximo mercado, denominado Nundina por se estabelecer, em Roma, de nove em nove dias, rebentou a guerra contra os anda-tas. Os nobres tiveram esperança de que resultasse em nada o processo, pensando que numa longa duração da luta, haveria tempo para diminuir ou amortecer-se de todo a ira popular, em virtude dos negócios e impedimentos resultantes da guerra. Ao contrário, porém, tendo sido feito imediato acordo com os antiatas, o povo voltou a Roma. Os patrícios reuniram-se então várias vezes em assembleia, e mantiveram conselho para decidir como fariam para não abandonar a Márcio, sem, ao mesmo tempo, dar motivo aos tribunos para amotinar e sublevar o povo. Ápio Clódio, tido por um dos mais ásperos adversários do partido plebeu, lhes predisse e protestou que eles arrumariam a autoridade do senado e perderiam a república se concedessem ao povo lei e poder para julgar os nobres por maioria de votos. Os mais velhos e populares membros da nobreza ao contrário, diziam que o povo ao ver-se com autoridade suprema de vida e morte em sua mão, não seria severo nem cruel, mas antes compreensivo e humano. Não era, segundo eles, por desprezar os nobres nem o senado, mas por pensar ser ele próprio desprezado, que ele queria ter como um reconforto e prerrogativa honrosa o poder de julgar. Pensavam assim que mal lhe fosse cedido esse poder por meio de seus votos, os plebeus poriam de lado todo o rancor e desejo de condenar.
XXX. Vendo Márcio o senado em dificuldade para resolver pela afeição que, de um lado, lhe dedicava a nobreza, e de outro pelo medo inspirado pelo povo, perguntou alto, aos tribunos, do que pretendiam inculpá-lo e acusá-lo. Os tribunos responderam que desejavam demonstrar como ele aspirava à tirania e como suas ações tendiam à usurpação dessa tirania em Roma. Márcio, levantando-se então, declarou «que ele ia nessa mesma hora apresentar-se voluntariamente ao povo, para justificar-se dessa imputação, e caso se verificasse ter ele apenas pensado nisso, não recusaria nenhuma espécie de punição, desde que, disse ele, não me inculpeis senão disso e não queirais iludir o senado.» Os tribunos prometeram agir lealmente e sob essas condições foi o julgamento deferido ao povo em assembleia. Os tribunos quiseram porém, antes de mais nada, à força e a qualquer preço, que se procedesse à votação por tribos e não por centurias porque dessa maneira, a multidão dos pobres miseráveis e toda a canalha semelhante, que nada tem a perder e não se preocupa de forma alguma em nortear-se pela honestidade, vinham a ter mais força (porque assim os votos se contavam por cabeça) do que a gente de bem e de honra, que ia à guerra e cujos haveres sustentavam os encargos da coisa pública. Deixando depois de lado, o pretendido crime de tirania, impossível de provar, começaram de novo a denunciar as teses sustentadas por Márcio perante o senado, quando pretendeu impedir que se distribuisse trigo a preço vil, à plebe, tendo procurado persuadir, até mesmo que lhe tirassem o tribunado. Inculparam-no também, em terceiro lugar, na incursão feita pela terra dos antiatas de um novo crime, o de não ter trazido à comunidade a presa colhida, presa essa distribuída por sua própria autoridade entre, quem tinha participado com ele dessa expedição.
XXXI. Conta-se ter sido essa última acusação a mais desnorteante para Márcio, porque jamais poderia pensar que lha imputassem como crime. Não achou de pronto, por esse motivo, uma defesa a propósito para justificar-se, e se pôs a elogiar a quem o acompanhara nessa ocasião. Os que não tinham participado da empresa, porém, em muito maior número, gritaram tanto e fizeram tal barulho que ele não pôde ser ouvido. Quando se veio finalmente a recolher os votos e os sufrágios das tribos, contaram-se três a mais favoráveis à condenação, constituindo a pena em exílio perpétuo. Depois de pronunciada a sentença, o povo entrou em tão grande alegria como nunca se vira antes em nenhuma batalha ganha contra inimigos. Jamais se envaidecera tanto, tal era sua satisfação e o júbilo ao deixar a assembleia.
XXXII. O senado, ao contrário, sentiu-se magoado e muito triste. Arrependia-se infinita e apaixonadamente de não ter preferido sofrer todas as vicissitudes do que permitir à plebe abusar dessa forma soberba e ultrajante de sua autoridade. Não era necessária a diferença das vestes ou qualquer outra marca exterior, para se poder discernir um plebeu de um patrício, porque era fácil conhecê-los pelo rosto: quem apresentava a cara radiosa, era partidário do povo e quem a trazia triste e melancólica, pertencia à nobreza. Excetuava-se Márcio o qual nem na atitude, nem no andar, nem no rosto, se mostrou de forma alguma perturbado ou com a coragem abalada. Entre todos os outros fidalgos atormentados com o seu destino, ele só, mostrava exteriormente não sentir paixão alguma, nem qualquer piedade por si mesmo. Não era porém por discernimento racional ou por tranquilidade de costumes que ele suportava paciente e moderadamente o seu infortúnio, mas sim pela veemência de um despeito e um apetite de vingança de tal forma absorventes que ele parecia não sentir o próprio mal. Esse estado não se considera vulgarmente como de dor, embora o seja na realidade, porque quando a dor se inflama, como se diz, transforma-se em despeito, perdendo então seu aspecto de natural inferioridade, covarde e langorosa. Eis a razão pela qual aquele que é dominado pela cólera, parece inquieto e ativo, revelando-se acalorado como quem é presa de febre. Quando o homem está em tal disposição, parece que sua alma se enche, cresce e distende.
XXXIII. A verdade de ter sido Márcio, nessa ocasião, afetado com a máxima violência, demonstrou-se, logo depois, com toda clareza, pelos resultados. Voltando à casa, após ter-se despedido da mãe e da mulher, que ele encontrou chorando e se lamentando em altos brados, após também tê-las reconfortado e exortado a suportar pacientemente sua desdita, Márcio dirigiu-se imediatamente para a porta da cidade, acompanhado por grande número de patrícios que o seguiram até lá e sem levar coisa alguma consigo, nem solicitar nada a ninguém, retirou-se em companhia de três ou quatro dos seus aderentes apenas. Permaneceu alguns dias em suas casas de campo, agitado tumultuosamente pelos pensamentos que a cólera lhe podia fornecer. Não podendo enfim resolver-se a nada de honroso ou útil, mas apenas a vingar-se dos romanos, ele se propôs levá-los a uma guerra difícil e pesada com os seus mais próximos vizinhos. Pensou assim que o melhor seria tentar primeiramente dirigir-se aos Volscos, sabendo-os ainda poderosos em homens e bens. As perdas sofridas antes por eles, não lhes tinham diminuído tanto as forças como aumentado seu rancor e vontade de vingar-se dos romanos.
XXXIV. Ora, havia na cidade de Âncio uma personagem de nome Tulo Aufídio a qual, tanto por seus bens como por seu valor e pela nobreza de sua casa, era honrada como um rei entre os volscos. Márcio sabia muito bem que Tulo Aufídio queria mais mal a ele do que a qualquer outro dos romanos. Em combates nos quais, antes, ambos haviam tomado parte, tinham-se reciprocamente ameaçado e desafiado e como dois jovens corajosos, possuídos de ciúmes e emulação de honra, haviam praticado várias bravatas, um contra o outro. Além da pública desavença eles tinham acumulado um ódio particular entre si. Considerando entretanto, ser esse Tulo homem de grande coração, desejoso mais do que nenhum outro dos volscos de encontrar meios de impor aos romanos males e prejuízos semelhantes aos sofridos por eles, Márcio praticou um ato que demonstra bem a verdade da afirmação de um poeta antigo:
É difícil resistir à ira,
Porque se ela deseja qualquer coisa
Ousará comprá-la audaciosamente
Ao preço de seu sangue e com perigo de sua vida.
Assim agiu Márcio, ao disfarçar-se com uma indumentária através da qual ele supôs, ninguém o reconheceria como sendo quem realmente era, vendo-o vestido dessa maneira, e como disse Homero de Ulisses:
Entrou assim na cidade dos inimigos.
XXXV. Era já quase noite quando ali chegou. Houve muita gente que o encontrou pelas ruas mas ninguém o reconheceu. Dirigiu-se então diretamente à casa de Tulo, onde penetrou, sem deter-se, até a sala da lareira e ali sentou-se sem dirigir a palavra a ninguém, com o rosto e cabeça cobertos. Os da casa se espantaram sem contudo ousar fazê-lo levantar-se, porque embora embuçado, reconhecia-se não se sabe o que de digno em sua atitude e em seu silêncio. Foram então comunicar a Tulo que ceava, essa estranha ocorrência. Tulo levantou-se imediatamente e, dirigindo-se a ele, perguntou-lhe quem era e o que solicitava. Descobriu-se então Márcio e depois de manter-se algum tempo sem responder, disse: «Se ainda não me reconheces, Tulo, e não crês ao ver-me, ser eu quem realmente sou, é forçoso que eu me denuncie e me descubra a mim mesmo. Sou Caio Márcio, que te causei a ti em particular e a todos os volscos em geral, os maiores males como não posso negar em virtude do apelido de Coriolano a mim atribuido, porque eu não colhi outro fruto, nem outra recompensa de tantos trabalhos suportados, nem de tantos perigos aos quais me expus, senão esse apelido, testemunha da malquerença que deveis alimentar contra mim. Só isso me ficou; todo o resto me foi arrebatado pela inveja ultrajante do povo romano, e pela covardia da nobreza e dos magistrados os quais me abandonaram, permitindo meu exílio. Vejo-me assim constrangido a recorrer como humilde suplicante a teu lar, não para salvar e garantir minha vida, porque eu não me teria arriscado a vir aqui se tivesse medo de morrer, mas pelo desejo de vingar-me daqueles por quem fui expulso. Começo já a minha vingança colocando-me entre tuas mãos.
Se tens coração bastante para o ressentimento perpétuo dos danos causados pelos teus inimigos, serve-te agora, eu te suplico, das minhas desgraças e faze de sorte que minha adversidade se transforme na comum prosperidade de todos os volscos. Tem certeza de que eu farei ainda melhor a guerra por ti, do que a tenho feito até agora contra ti, pois pode fazêlo melhor quem conhece a situação do inimigo, do que quem não a conhece. Se por acaso porém, tu te rendes, cansado de tentar a sorte por mais tempo, também estou eu, quanto a mim, cansado de viver e não será prudente de tua parte salvar a vida a alguém que outrora era teu mortal inimigo, e que, no momento, de nada mais aproveitaria a teu serviço.» XXXVI. Ouvindo isso, Tulo alegrou-se sobremaneira, e tocando-lhe na mão disse-lhe: «Levanta-te Márcio, e conserva a coragem, porque tu nos trazes um grande bem, entregandote a nós: podes, por isso, esperar as maiores vantagens da comunidade dos volscos.» Festejouo assim, no momento, oferecendo-lhe boa mesa, sem mais falar-lhe em negócios. Dias depois, entretanto, começaram a consultar entre si sobre os meios de fazer a guerra.
XXXVII. A cidade de Roma, por outro lado, mantinha-se em grande ebulição pela inimizade reinante entre nobres e plebeus, mesmo depois da condenação de Márcio. Sacerdotes, adivinhos e até pessoas privadas, além disso, vinham diariamente denunciar ao conselho sinais e prodígios celestes que bem mereciam preocupação e cuidadosas providências. Entre esses sinais e prodígios houve o seguinte: havia um cidadão romano chamado Tito Latino, personagem de categoria humilde, homem de bem, de resto vivendo decorosamente, destituído de qualquer superstição e menos ainda de vaidade e mentira. Teve este uma visão enquanto dormia, na qual apareceu-lhe Júpiter dando-lhe ordem de ir significar junto ao senado, que se tinha feito caminhar diante de sua procissão um péssimo e desagradável dançarino. Dizia o informante que da primeira vez na qual a visão se apresentara à sua fantasia, não lhe dera ele importância, e mesmo quando se apresentara de novo pouco se preocupara com ela, até o momento em que assistira à morte de um de seus filhos bem constituído, vendo-se ele próprio tomado subitamente por um relaxamento geral dos membros que o tornara estropiado e tolhido. E de fato, Latino recitou toda sua história, em pleno senado, sobre um pequeno leito no qual se fizera transportar, e mal acabou de narrá-la, sentiu seu corpo recuperar incontinente o antigo vigor, e levantando-se nessa mesma hora, voltou com os próprios pés para sua casa sem ninguém ajudá-lo.
XXXVIII. O senado aturdido com essa maravilha, inquiriu diligentemente o fato, e verificou tratar-se do seguinte: certo indivíduo entregara nas mãos de outros escravos, um servo seu por quem tinha sido ofendido. Determinara aos escravos que fizessem o culpado atravessar a praça debaixo de chicote, fazendo-o morrer em seguida. Enquanto os algozes agiam na forma prescrita, e dilaceravam o pobre homem a chicotadas, este se virava, agitava e contorcia, de forma estranha, movido pela dor. A procissão surgiu, por acaso, nesse momento e houve muitos entre os assistentes que se escandalizaram e aborreceram, dizendo que o espetáculo não era agradável de ver, não sendo decente contemplar tais gestos. Apesar disso, entretanto, nada mais se fez além de censurar e maldizer a quem fazia punir assim tão cruelmente a escravo seu, porque a esse tempo, os romanos eram muito equitativos com os seus escravos porquanto eles mesmos trabalhavam com as próprias mãos, e viviam em promiscuidade com eles, sendo isso causa de os tratarem de forma mais humana e familiar. Uma das mais graves penas impostas por eles a um escravo quando praticava falta, era fazê-lo carregar sobre os ombros uma forquilha usada então, como apoio do varal dos carros obrigando-o a passar dessa maneira, diante de todos os vizinhos. Quem tinha uma vez, sofrido o vexame, sendo visto nesse estado, era desacreditado na vizinhança e em toda a região, e ninguém mais se fiando nele, chamavam-no Furcífer, porque os latinos denominam Furca, isto é, forquilha, esse apoio do varal dos carros.
XXXIX. Quando pois, Latino, fizera ao senado a narrativa da sua visão, houve dúvida sobre quem poderia ter sido esse mau e desagradável dançarino, que teria caminhado diante da procissão. Alguns dos assistentes, se lembraram então desse pobre escravo tangido a chicote através da praça para ser morto depois. A sua memória foi desperta pela lembrança da forma estranha e desacostumada da punição. Inquiridos sobre isso os sacerdotes, concordaram unanimemente em que se tratava dele, e sendo castigado o senhor do escravo, recomeçou-se de novo a procissão bem como todos os outros espetáculos em honra de Júpiter.
XL. Pode-se verificar por esse fato, que o rei Numa instituiu sabiamente tudo quanto se refere aos serviços dos deuses, e especialmente o costume, estabelecido para tornar os cidadãos atentos às cerimonias, de todas as vezes que os magistrados sacerdotes e ministros da religião fazem algo pertencente ao serviço divino e em honra aos deuses, haver sempre um arauto que marcha à frente deles, proclamando em alta voz, «Hoc age», que equivale a dizer «age assim». Ordena-se, por esse meio, aos homens que se ocupem atentamente com as coisas sagradas, sem entremeá-las com nenhuma outra atividade, sabendo-se perfeitamente que a maior parte de suas ações é resultante da força e do constrangimento. Mas os romanos tinham mesmo por costume recomeçar sempre de novo, os sacrifícios, as procissões, jogos, e outros espetáculos realizados em honra dos deuses, não somente por motivos semelhantes ao dessa ocasião, mas por outros bem mais ligeiros. Numa procissão, por exemplo, na qual se conduziam pela cidade imagens dos deuses e outras relíquias sagradas, sobre liteiras denominadas em latim Thensae,501 porque um dos cavalos estava puxando mal,502 tendo o cocheiro além disso, tomado as rédeas na mão esquerda, determinou-se o reinício de toda a procissão. Em tempos mais recentes, foi repetido trinta vezes o mesmo sacrifício, por parecer aos romanos que houvera sempre alguma falha, erro ou impedimento em sua execução, de tal forma eram eles religiosos e devotos para com os seus deuses.
XLI. Tulo e Márcio, de resto, falaram ambos secretamente com os principais homens da cidade de Àncio, demonstrando-lhes que era agora o momento de romper a guerra contra os romanos, enquanto eles se mantinham em dissensão, uns contra os outros. Foi-lhes respondido que eles tinham vergonha de iniciá-la, tendo em vista as tréguas juradas entre os dois povos, pelo espaço de dois anos. Nesse entretempo, todavia, os romanos praticaram um ato que lhes forneceu motivo bastante para o rompimento. Em dia de festa no qual se celebravam em Roma, jogos públicos, os romanos por qualquer suspeita ou caluniosa imputação, determinaram aos volscos, a toque de trombeta, que evacuassem a cidade antes do sol se pôr. Dizem alguns ter-se verificado o fato por astúcia e fraude de Márcio, o qual enviou aos magistrados de Roma um falso acusador encarregado de dar-lhes a entender que os volscos tinham-se conjurado para atacá-los enquanto assistissem aos jogos, incendiando outrossim a cidade. Essa proclamação exacerbou a indignação universal dos volscos contra os romanos. Tudo fazendo a coisa ainda mais grave, irritou-os de tal forma, que finalmente os levou a enviar embaixadores a Roma, para intimar os romanos a lhes devolverem todas as terras e cidades a eles tomadas no passado. Ouvida essa intimação, irritaram-se os romanos e nada mais responderam a não ser que se os volscos tomassem armas em primeiro lugar, os romanos as deporiam por último.
XLII. Mal retornaram os embaixadores e relataram essa resposta, fez Tulo reunir uma assembleia geral de toda a comunidade dos volscos, na qual a guerra contra os romanos foi assentada e decidida. Feito isso, Tulo aconselhou os volscos a chamarem Márcio a seu serviço, sem desconfiar dele em razão do passado, mas ao contrário, entregando-se seguramente em suas mãos pois Márcio lhes traria mais proveito, combatendo pelos volscos do que lhes trouxera danos combatendo contra. Márcio foi então convocado, e exprimiu-se tão bem diante de toda assistência, que o consideraram não menos eloquente do que belicoso e valente, grande perito em assuntos de guerra, com ousadia fundida ao bom senso e discernimento.
Foram assim ele e Tulo instituídos capitães generais da comunidade dos volscos, com poder e autoridade supremas na conduta da guerra. Temendo que a demora de tempo necessária para aprontar o exército inteiro e todo o equipamento dos volscos, lhe tirasse a possibilidade de executar seus planos, Márcio encarregou os demais magistrados e principais personagens da cidade de reunirem o resto das forças, e obterem também as provisões necessárias à campanha, enquanto ele, com os mais decididos que concordaram prontamente em acompanhá-lo entrou de súbito em terras romanas, à mão armada, antes que, em Roma se pudesse haver a menor suspeita. A surpresa foi tal que os volscos encontraram nos campos tamanha quantidade de despojos que mal podiam utilizá-lo, cansando-se de juntá-lo, transportá-lo e consumi-lo em excesso em seu campo, e assim mesmo o menor resultado da incursão, foi a conquista da pilhagem bem como o estrago e dano causado em terras dos romanos. O fim principal visado, era aumentar sempre, cada vez mais, a inimizade e dissensão existente entre os nobres e o povo, razão pela qual, ao fazer destruir, estragar e arruinar tudo o mais, Márcio fez proteger cuidadosamente as terras e propriedades dos nobres, não permitindo que se causasse aí nenhum dano nem que se tirasse delas coisa alguma. Isso deu causa a querelas e lutas, violentas como nunca, entre uma classe e outra. Os nobres censuravam o povo por ter expulso injustamente um homem tão poderoso, e os plebeus acusavam a nobreza de ter-lhe solicitado que viesse fazer a guerra para vingar-se deles, e ter o prazer de contemplar a pilhagem e queima de seus bens diante dos próprios olhos, enquanto eles se conservavam, em toda a segurança, ociosos espectadores de suas perdas e desgraças, uma vez que a guerra não era feita contra eles, pois tinham do lado de fora o próprio inimigo como guarda de seus bens.
XLIII. Tendo Márcio realizado esse primeiro, empreendimento, muito útil aos volscos por torná-los mais firmes, fazendo-os temer menos aos romanos, trouxe-os de volta a salvo para suas casas, sem perder coisa alguma. Quando depois todo seu poder, muito grande e cheio de ardor para a ação, foi reunido em um campo, os volscos decidiram deixar uma parte dele para a guarda do país, indo fazer a guerra aos romanos com o remanescente. Márcio ofereceu a Tulo escolher dos dois cargos o que mais lhe agradasse. Tulo em resposta declarou conhecer por experiência não lhe ser Márcio inferior em valentia, tendo tido, além disso, mais sorte do que ele em todas as batalhas e recontros. Era de aviso por isso, que Márcio assumisse o comando dos que iam fazer a guerra fora do país, enquanto ele permaneceria em casa para prover à segurança das suas cidades e também para fornecer à campanha tudo quanto fosse necessário.
XLIV. Márcio, mais forte do que antes, avançou então sobre a cidade de Circéios povoada pelos romanos, a qual se rendeu voluntariamente, não sofrendo em consequência, nenhum dano. Márcio avançou dali pela terra dos latinos, esperando que os romanos o viriam combater em defesa destes seus aliados, os quais, repetidamente, lhes tinham enviado pedidos de socorro. O povo, porém, estava mal disposto a ir até ali, enquanto os cônsules, já prestes a deixar o cargo, não queriam arriscar-se por tão pouco tempo. Os embaixadores latinos, em consequência, voltaram para trás sem nada conseguir. Márcio avançou então, contra suas cidades e tendo tomado pela força a dos tolerienses, vicanienses, pedanos e bolanos que pretenderam defender-se, pilhou seus bens e os fez prisioneiros. Em relação aos que, ao contrário se aliaram a ele voluntariamente, Márcio desenvolveu todo o esforço possível para impedir que fossem prejudicados em qualquer coisa, mesmo à sua revelia, afastando, para isso, o seu campo o mais que pôde de suas terras. Tendo em seguida tomado de assalto a cidade de Bola, situada a seis léguas apenas de Roma, obteve aí uma infinita quantidade de despojos e fez passar à espada todos os homens em idade de pegar em armas.
Recebendo notícias sobre esses resultados, os volscos restantes, designados para permanecer na defesa do país, não puderam mais conter-se e correram em armas para o acampamento de Márcio, declarando não reconhecer outro chefe ou capitão a não ser ele. Sua fama se espalhava assim pela Itália, atribuindo-lhe por toda a parte o louvor e a glória de excelente general, visto que por sua virtude, a transposição de uma única pessoa de um povo a outro, tinha gerado uma tão estranha e súbita mudança nos negócios.
XLV. Enquanto isso, em Roma tudo se passava na maior confusão. Ninguém queria ouvir falar sequer, em sair a campo contra o inimigo, mas continuavam a agrupar-se todos os dias em desavença uns contra os outros. Não se ouviam senão palavras sediciosas dos nobres contra o povo e do povo contra os nobres, até que vieram notícias de ter o inimigo assediado a cidade de Lavínio, onde se encontravam os templos e imagens dos deuses tutelares dos romanos e de onde eles se tinham originado na antiguidade, sendo essa a primeira cidade que Enéias, à sua chegada, fundara na Itália. O povo se deixou então dominar por uma súbita e maravilhosa mutação de vontade, acontecendo o mesmo em relação aos nobres de forma ainda mais estranha e inesperada, porque, pretendendo o povo que se abolisse e caçasse a condenação de Márcio, chamando-se a ele de volta, o senado reunido, foi de opinião contrária, impedindo sua revogação. A atitude do senado resultava talvez de uma obstinação em formalizar-se contra tudo quanto o povo desejava, ou de não querer que essa personagem voltasse pela graça e benefício do povo, ou ainda porque já estivesse seriamente indignado e revoltado a esse tempo, contra ele, porque, não tendo sido por todos ofendido, avançava entretanto contra a comunidade total, mostrando-se por isso inimigo absoluto de seu país, embora a sua parte melhor e mais sã, se mantivesse contrariada e ferida pelo mal que lhe haviam causado, ressentindo-se do ultraje tanto quanto ele.
XLVI. Publicada essa resolução do senado, o povo se viu impedido, porque ele não podia autorizar nem confirmar resolução alguma com os seus votos antes da proposta ser aceita pelo senado. Márcio porém, ouvindo a notícia foi tomada ainda de maior irritação e revolta e levantando imediatamente o sítio da cidade de Lavínio, marchou diretamente contra Roma, indo acampar a duas léguas e meia da cidade no lugar denominado «Fossas Cluilianas». Esses movimentos tão próximos puseram a cidade de Roma em grande confusão e terror, embora no momento as sedições e choques existentes entre os partidos também se apaziguassem. Não houve mais ninguém quer entre os magistrados, quer no senado que ousasse contradizer a opinião do povo no tocante ao chamamento de Márcio. Vendo as mulheres aterradas correr de um lado para outro, os templos dos deuses cheios de anciãos que choravam lágrimas quentes, fazendo preces e orações e resumindo, que não havia em toda a cidade quem conservasse a cabeça no lugar, nem tivesse a ousadia de tomar uma providência útil, puseram-se então todos de acordo em que o povo tinha razão de sobra para chamar novamente a Márcio e reconciliar-se com ele, e que, ao contrário, o senado praticara grave erro ao entrar em rancor e cólera contra ele quando o momento era muito mais propício ao abandono desses sentimentos. Foram então todos, unanimemente, de parecer que se enviassem embaixadores a Márcio, para comunicar-lhe como seus concidadãos o chamavam de volta e o restauravam na posse de seus bens, suplicando-lhe que os livrasse dessa guerra. O senado envia-lhe como deputado a seus amigos, para fazê-lo ceder. Ele pede a devolução de tudo quanto foi tomado aos volscos, e concede trinta dias para deliberarem.
XLVII. Os enviados da parte do senado, eram amigos familiares de Márcio, os quais esperavam ao menos à sua chegada, ter uma acolhida simpática e amável como a de um parente e amigo íntimo. Nada encontraram porém de semelhante, sendo, ao contrário, conduzidos através do campo até o lugar onde ele estava sentado em sua cadeira, com grandeza e gravidade insuportáveis, tendo em torno de si os principais homens dentre os volscos. Ordenou-lhes assim que dissessem alto a causa de sua vinda. Eles o fizeram com as palavras mais honestas e amenas que lhes foi possível, acompanhadas do gesto e atitude a elas adequadas. Quando terminaram de falar Márcio respondeu-lhes com azedume e cólera, referindo-se ao mal que lhe tinham causado e como capitão general dos volscos declarou caber-lhe entregar e restituir a eles todas as cidades e terras arrebatadas aos mesmos, em guerras precedentes, outorgando-lhes outrossim a honra e o direito de burguesia em Roma, exatamente como o tinham outorgado aos latinos. Não havia portanto outro meio seguro para escapar realmente da guerra, senão mediante essas condições equitativas e razoáveis e para deliberar sobre elas e resolver, fixava-lhes o prazo de trinta dias.
XLVIII. Os embaixadores voltaram com a resposta e ele retirou imediatamente seu exército para fora do território romano. Foi essa a primeira acusação feita contra ele por aqueles de entre os volscos, invejosos de sua glória e que não podiam suportar a sua autoridade. Tulo foi um desses, não que tivesse recebido particularmente nenhum agravo ou aborrecimento por parte de Márcio, mas apenas por sentir-se mordido por essa paixão humana que’ o levava a magoar-se ao perceber sua reputação totalmente obscurecida pela de Márcio e ao ver-se tido em menor conta pelos volscos do que antes, pois era realmente tão grande a estima votada por eles a Márcio que pensavam ter tudo, tendo-o a ele somente, querendo que os outros governadores e capitães se contentassem com o prestígio e autoridade que Márcio houvesse por bem repartir com eles. Essa a origem de onde saíram os primeiros rumores e acusações secretas contra Márcio, porque os demais oficiais fazendo liga em oposição a ele, irritavam-se e iam dizendo que essa retirada era uma verdadeira traição não pela entrega de cidades, praças, nem exércitos, mas pela concessão de tempo e oportunidade, o que constituía para os volscos perda de grande consequência, pois é ordinariamente com esses elementos que se perdem ou conservam aquelas outras coisas e tudo mais.
XLIX. Márcio concedera trinta dias de armistício ao inimigo, porque, a guerra não costuma sofrer grandes mudanças, em espaço de tempo menor do que esse. Apesar disso porém, ele não deixou transcorrer esses dias sem fazer nada, indo durante esse tempo, talar e destruir as terras dos aliados inimigos, onde conquistou sete cidades grandes e bem povoadas, sem que os romanos ousassem jamais por-se a campo para socorrê-los, de tal forma estavam tomados de dúvida e desprovidos de paixão guerreira. Assemelhavam-se, assim a corpos de membros estropiados que por alguma paralisia tivessem perdido o movimento e a sensibilidade.
L. O tempo de trégua expirado, Márcio entrou outra vez em terras de Roma com todo seu poder. Enviaram-lhe de novo os romanos uma embaixada para suplicar-lhe quisesse amainar seu rancor, levando os volscos para fora de suas terras, para depois com calma, propor-lhes as soluções que ele julgasse úteis a uns e outros, porque os romanos jamais iriam ceder ou dobrar-se ao temor. Se entretanto lhe parecia que os volscos tinham razão de solicitar-lhes certos artigos e condições honestas, tudo quanto eles pedissem de razoável lhes seria outorgado pelos romanos os quais, de si mesmo se submeteriam ao direito desde que primeiro eles depusessem as armas. A isso respondeu-lhes Márcio que como capitão general dos volscos nada replicaria, mas como cidadão romano lhes aconselhava, se fossem prudentes, a rebaixar o orgulho e submeter-se à razão. Voltassem pois dentro de três dias, pondo-se de acordo com os artigos propostos da primeira vez, pois de outra forma não lhes daria mais salvo-conduto nem garantia de voltar novamente a seu campo com palavras inúteis e vãs.
LI. Quando os embaixadores voltaram a Roma, ouvindo o senado seu relatório, lançou a âncora sagrada, como se diz num provérbio comum, como se a coisa pública estivesse em grande perigo de tormenta. Ordenou-se então a tudo quanto havia de sacerdotes, religiosos, ministros dos deuses e guardas das coisas sagradas, e a todos os adivinhos que pela observação do voo dos pássaros predizem as coisas do porvir, forma essa de profecia e de adivinhação própria dos romanos desde a mais remota antiguidade, que fossem ao encontro de Márcio inteiramente vestidos como costumavam estar por ocasião dos sacrifícios, para implorar-lhe primeiro a cessação da guerra, discutindo depois com seus concidadãos sobre o tratado a estabelecer-se com os volscos. Márcio deixou-os entrar no acampamento mas nem por isso concedeu-lhes coisa alguma, nem lhes fez ou disse nada de mais amável do que aos primeiros, declarando-lhes apenas que a eles cabia decidir sobre uma de duas: ou aceitar a paz sob as condições antes propostas ou suportar a guerra. Quando essa gente religiosa retornou, foi decidido pelo conselho que ninguém sairia da cidade, tentando-se apenas defender as muralhas e repelir o inimigo se eles a viessem assaltar. Entregava-se pois toda esperança ao tempo e aos incidentes inesperados da fortuna, porque de si mesmos os romanos não sabiam por onde começar para uma ação a eles proveitosa. Toda a cidade foi tomada de confusão, de medo e pessimismo quanto ao futuro, até o acontecimento de um caso semelhante, aos que se refere Homero em várias passagens, aos quais, entretanto, pouca gente dá crédito. Porque em coisas grandes, estranhas e fora da rotina comum, Homero diz e exclama muitas vezes:
Palas a deusa imortal dos belos olhos,
Levou-lhe ao coração tal pensamento.
E em outro trecho:
Mas algum deus os tirou dessa situação,
Inspirando a plebe com tal notícia.
E em outro lugar:
Ele o percebeu por si mesmo,
Ou algum deus o inspirou.
LII. Há muitos que desprezam essas passagens de Homero503 como se fosse sua intenção atribuir o discernimento da razão humana e a escolha voluntária de cada um, à intervenção de coisas impossíveis e a fábulas destituídas de verosimilhança: o que ele não faz: vê, ao contrário, como dependente do nosso liberal arbítrio as coisas possíveis e que acontecem ordinariamente por decisão racional. Porque muitas vezes também Homero profere palavras como as seguintes:
Eu o pensei no meu peito magnânimo.
E em outra passagem:
Aquiles, ouvindo-o pronunciar-se desse modo,
Sentiu o coração queimado de áspera dor e de ira Dentro do peito peludo,
E ficou indeciso entre dois impulsos contrários.
E de novo em outro local:
Ela não conseguiu seduzir com sua linguagem
A Belerofon, tão honesto e prudente foi ele.
Mesmo nas coisas estranhas e extraordinárias, onde há necessidade de alguma inspiração e instigação divina, ele não admite que um deus absorva o livre arbítrio do homem mas apenas que o incite, não engendrando em nós a vontade, mas sim alguma imaginação que a puxa e impulsiona. Por essa fantasia oferecida à vontade, ele não torna a ação nem voluntária nem forçada, mas antes dá começo à vontade e lhe atribui firmeza e boa esperança. Porque, ou cabe dizer que os deuses não têm absolutamente parte nenhuma nas causas motoras e no princípio das ações humanas ou confessar que não há outro meio pelo qual eles possam ajudar os homens e cooperar com eles. É perfeitamente certo não manejarem eles os nossos corpos, nem agitarem nossas mãos e pés de acordo com o exigido pela necessidade no momento da ação, mas cabe a eles excitar a parte ativa de nossa alma e nosso livre arbítrio ou, ao contrário, retê-lo por certas imaginações e apreensões, inspiradas a nós.
LIII. Ora, a esse tempo, iam as damas romanas a todos os templos dos deuses para fazer preces e orações. A maior parte delas porém, e as mais notáveis estavam continuamente junto ao altar de Júpiter Capitolino. E entre elas via-se especialmente Valéria, irmã de Publicóla, o que prestara tantos serviços aos romanos, na paz como na guerra. Publicóla já tinha morrido, havia algum tempo, como o dissemos em sua vida, mas Valéria sua irmã, era extremamente honrada e estimada em Roma, dirigindo-se a si mesma com tal sabedoria, que não fazia vergonha à casa de onde saíra. Tomou-a subitamente uma emoção volitiva semelhante àquelas de que falamos há pouco, descobrindo não sem alguma inspiração divina, como eu creio, uma boa saída para a situação, porque levantando-se e levando as outras damas a fazer o mesmo, dirigiu-se diretamente com elas à casa de Volúmnia, mãe de Márcio, onde entrando, encontrou-a em companhia da mulher de seu filho com as suas crianças no colo. Colocando-se todas essas damas em torno delas, começou Valéria a falar: «Viemos a vós, ó Volúmnia e Virgília, de mulheres para mulheres, sem ordem do senado nem determinação de nenhum magistrado, mas, a meu aviso, por inspiração de algum deus que, comovido com as nossas preces, nos incitou a virmos a vós, solicitar uma coisa útil a nós mesmas e a todos os demais cidadãos desta cidade. A vós entretanto, se me quiserdes acreditar, trará uma glória maior e mais ilustre do que, outrora, a das filhas dos sabinos, quando em vez de guerra mortal conseguiram estabelecer a paz entre seus pais e maridos. Vinde então conosco ao encontro de Márcio para suplicar-lhe que tenha piedade de nós e também em testemunho da verdade, como vos cabe, em favor dos vossos concidadãos, os quais, embora tenham sofrido muitos males e danos trazidos por ele, jamais entretanto vos deram nem pensaram dar pior tratamento, entregando-vos sãs e salvas entre suas mãos, ainda que não venham a ter em recompensa, nenhum acordo mais brando de sua parte.»
LIV. Essas palavras de Valéria foram aprovadas e acompanhadas pelo clamor de todas as outras damas e Volúmnia lhes respondeu: «Senhoras, somos partes, como vós, nas misérias e calamidades públicas de nosso país, e além disso sofremos a sobrecarga da desgraça particular de termos perdido a glória e a virtude de Márcio, vendo agora sua pessoa cercada pelas armas de nossos inimigos, antes para garantir-se contra ele do que para guardá-lo. Mas o ônus maior de nossa desdita, é o de ver nosso país reduzido a termos de que toda a sua esperança descanse e consista apenas em nós, embora eu não saiba que importância ele nos dará depois de não ter dado nenhuma à sua república e a seu país, antes mais caros a ele do que sua mãe, sua mulher e seus filhos.
Não obstante, servi-vos de nós como quiserdes, e conduzi-nos a ele. Se nada mais pudermos fazer, ao menos poderemos morrer e entregar a alma, suplicando-lhe em favor de nosso país.» Dizendo isso tomou consigo sua nora e netos, e com todas as damas romanas dirigiu-se ao campo dos volscos, que, eles mesmos sentiram ao vê-la, uma compaixão mesclada de reverência, não havendo por isso, entre eles ninguém que ousasse dizer-lhes coisa alguma.
LV. Ora, Márcio, nesse momento estava sentado em seu tribunal, com as insígnias de comandante supremo e quando, de longe, percebeu vir as damas romanas ficou intrigado com o que poderia ser. Pouco tempo depois, porém reconhecendo sua mulher504 que caminhava na frente, quis, a princípio, perseverar em seu obstinado e inflexível rigor, mas vencido, enfim, pela afeição natural, e extremamente comovido ao vê-las, não pôde manter o coração tão duro a ponto de esperá-las sentado. Descendo precipitadamente Márcio foi a seu encontro e beijou em primeiro lugar sua, mãe, mantendo-a muito tempo entre os braços, depois sua mulher e os filhinhos e sem poder impedir que lágrimas quentes lhe viessem aos olhos, nem conter-se ao acarinhá-los, deixou-se arrastar pela afeição do sangue como por uma impetuosa torrente. Mas depois de ter-lhes feito essa carinhosa acolhida, percebendo que sua mãe Volúmnia queria falar-lhe, chamou os principais do conselho dos volscos para ouvir suas propostas, e ela tomou a palavra para dizer: «Podes saber por ti mesmo, meu filho, ainda que nada tenhamos dito, pelas nossas vestes e pelo estado dos nossos pobres corpos, qual tem sido nossa vida em casa, depois de tua partida. Considera, porém, agora como somos ainda, ao vir até aqui, mais infelizes e desditosas do que todas as mulheres do mundo. Aquele que é o mais caro à vista de todas as outras, o destino nos transformou no mais temível, trazendome a mim, ver meu filho e a esta seu marido, assediando as muralhas de seu país. O que para as outras é o supremo conforto em sua adversidade, orar e invocar os deuses em seu socorro, nos põe a nós na maior perplexidade porque não saberíamos pedir-lhes simultaneamente em nossas preces, vitória para o nosso país e preservação de tua vida. Todas as mais graves maldições imaginadas contra nós por um inimigo, estão necessariamente incluídas em as nossas orações, porque é forçoso a tua mulher e a teus filhos que eles sejam privados ou de ti ou de seu país. Quanto a mim, eu não estou certa de esperar que a sorte, durante minha existência, decida do resultado desta guerra. Se eu não te puder persuadir a escolher antes o bem de ambas as partes do que a ruína de uma delas, preferindo amizade e concórdia às misérias e calamidades da guerra, quero que saibas exatamente e tenhas por seguro, que não trás jamais assaltar e combater teu país sem primeiro passar pelo corpo de quem te pôs no mundo, e não me cabendo prolongar a vida até ver o dia em que meu filho prisioneiro seja levado em triunfo por seus concidadãos, ou que ele próprio triunfe sobre seu país, Se eu te pedisse a salvação do teu país, pela destruição dos volscos, ser-te-ia certamente um problema difícil de resolver, porque, assim como não é lícito arruinar a tua pátria, assim também não é justo trair aqueles que confiaram em ti. Mas o que eu te peço é uma liberação de males, igualmente salutar a um e outro povo, mais honrosa porém para os volscos, porque parecerá que, tendo eles a vitória nas mãos ter-nos-ão oferecido gratuitamente dois supremos bens, paz e amizade, muito embora não deixem também eles de receber esses mesmos bens. Desse benefício tu serás o principal autor caso se verifique, e se não se verificar, tu receberás apenas censura e vitupério de uma e outra parte. Sendo Incerta a decisão da guerra, é bem certo entretanto que se saires vencedor te restará o proveito de vires B ser considerado a peste e a ruína de teu país e se fores vencido, dir-se-á que pelo apetite de vingar tuas próprias injúrias, terás causado as graves calamidades a quem te havia recebido humana e carinhosamente.
LVI. Márcio ouviu as palavras de Volúmnia mãe sem interrompê-la e quando ela deixou de falar, permaneceu muito tempo sombrio sem responder-lhe coisa alguma. Volúmnia então retomou a palavra para dizer-lhe: «Por que não me respondes, filho meu? consideras lícito conceder tudo à tua ira e a teu apetite de vingança, não sendo honesto condescender e inclinar-se às súplicas de tua mãe em questões de tanta importância? e cuidas tu que seja conveniente a uma grande personagem lembrar-se dos agravos feitos contra ela bem como das injúrias passadas e que não constitua ato de homem honrado e de grande coração, reconhecer os benefícios recebidos dos pais pelos filhos e tratá-los por isso com honra e reverência? E não há homem no mundo que necessite mais observar a gratidão em toda sua amplitude, do que tu, visto que insistes com tanta aspereza numa ingratidão e além disso já fizeste o teu país pagar grande reparação pelo mal causado a ti, sem que ainda tenhas demonstrado, nenhum reconhecimento a tua mãe. Nada portanto seria mais honesto que sem mais constrangimento eu impetrasse de ti um favor tão justo e razoável. Mas visto que pela razão eu não te posso persuadir, qual a necessidade de poupar e prolongar a última esperança?» Dizendo essas palavras ela se lançou a seus pés juntamente com sua mulher e filhos. Márcio não o podendo suportar, levantou-a imediatamente exclamando: «Ó mãe, o que me fizeste?» e apertando-lhe fortemente a mão direita: «Ah, mãe, disse ele, conquistaste uma vitória feliz para teu país, mas bem desgraçada e mortal para teu filho, porque eu me retiro vencido exclusivamente por ti.»
LVII. Ditas essas palavras em público, ele falou ainda durante algum tempo, à parte, com sua mãe e sua mulher, deixando-as depois voltar para a cidade de acordo com suas súplicas. Mal depois terminou a noite, reconduziu, no dia seguinte de manhã, os volscos para suas casas, sem que todos participassem da mesma opinião nem do mesmo sentimento. Uns o censuravam a ele e a sua conduta, outros, satisfeitos de se ter chegado a um acordo, diziam que nenhuma coisa merecia ser censurada ou refeita. Outros ainda, embora descontentes com a sua resolução não o consideravam todavia, condenável por isso, mas iam dizendo que ele merecia perdão por se ter dobrado a uma angústia tão violenta e de tal forma o compreenderam que ninguém se opôs à partida atendendo todos a seu comando mais em reverência pela sua virtude, do que por temor à sua autoridade.
LVIII. O povo de Roma porém, deu a conhecer imediatamente o medo e o perigo em que tinha estado durante essa guerra, no momento em que se livrou dela. Porque mal a guarda das muralhas percebeu os volscos levantar acampamento, não houve em toda Roma um único templo que não se abrisse repentinamente, enchendo-se de homens com chapéus de flores sobre a cabeça, que sacrificavam aos deuses exatamente como se faz à notícia de uma grande vitória. Demonstrou-se ainda mais claramente o regozijo público, pelas carícias e honras dispensadas às damas pelo senado e por todo o povo. Não havia ninguém que não dissesse alto e bom som, e que não acreditasse firmemente terem sido elas unicamente a causa da salvação e livramento da cidade. O senado em consequência, determinou aos magistrados que lhes fosse outorgado e concedido tudo quanto elas solicitassem, para assim agraciá-las e honrá-las. As damas entretanto, não pediram outra coisa a não ser a edificação de um templo à Fortuna feminina, oferecendo-se ainda a contribuir com a prata necessária às obras, desde que a coisa pública assumisse os encargos dos sacrifícios, cerimonias e outros serviços pertencentes ao serviço dos deuses. O senado porém, louvando sua boa vontade, ordenou que o templo e a imagem fossem executadas a expensas públicas. As damas romanas, não obstante contribuíram ainda com a prata de que foi feito uma segunda imagem à Fortuna.
Dizem os romanos em relação a esta que ela falou ao ser oferecida ao tem pio quando a colocavam em seu lugar. Afirmam ter ela pronunciado as seguintes palavras: «Senhoras, vós me doastes devotamente», e mais; dizem ainda que ela as pronunciou duas vezes, pretendendo fazer-nos crer em coisas jamais acontecidas ou pelo menos bem difíceis de acreditar. Ver imagens suar ou chorar aparentemente, ou verter qualquer líquido tinto como o sangue, não é coisa impossível, porque a madeira e a pedra recebem comumente certa umidade, da qual se engendra o humor que ressuma em estado natural, ou toma do ar muitas tonalidades de tintura e cor. Não há inconveniente para os deuses advertirem algumas vezes, os homens do que está para acontecer, por meio desses sinais. É assim muito possível também, que essas imagens e estátuas lancem em certas ocasiões algum som semelhante a um suspiro ou gemido, quando no seu interior mais profundo, se verifica alguma ruptura ou separação violenta de partes contínuas. Mas uma voz assim articulada ou mesmo uma palavra expressa e cuidadosamente formada em um corpo sem alma, é totalmente impossível, visto que nem a alma nem mesmo deus poderiam falar distintamente ou conversar, sem um corpo com os utensílios e órgãos e partes necessárias à formação e expressão da palavra. Quando a história todavia, nos força a crer alguma coisa em função da narrativa de muitas testemunhas sérias e dignas de fé, cabe dizer que se trata de outra paixão diferente dos cinco sentidos da natureza, a qual, engendrada na parte imaginativa do pensamento, forma sua opinião exatamente como acontece durante o sono. Muitas vezes nos parece ouvir o que em realidade não ouvimos e ver o que em realidade não vemos.
LIX. Quem por veemência de amor e devoção aos deuses, entretanto, é excessivamente aferrado e crente nessas coisas, não podendo recusar nada, nem pôr de lado o que se conta a respeito, tem um grande argumento para manter-se nessa crença, é o do admirável poder de deus; em nada semelhante e sem nenhuma proporção com o nosso, e diferente dele em tudo, seja quanto à natureza, ao movimento, ao artifício ou à força. Se ele realiza portanto algo impossível para nós, ou produz e inventa coisa que transcende a compreensão humana, não deve ser considerado estranho. Se ele difere de nós no demais há de revelar-se ainda mais afastado e mais diverso em suas obras do que no resto. Mas a maior parte dos fatos relativos a deus, como diz Heráclito, mantém-se desconhecida por falta de fé.
LX. Quanto ao mais, quando Márcio voltou à cidade de Âncio, Tulo que o odiava, e já não o podia suportar por temer a sua autoridade, procurou meios de fazê-lo morrer, pensando que se perdesse essa oportunidade jamais conseguiria ocasião semelhante. Tendo para isso encarregado e suscitado muitos outros conjurados com ele, exigiu que Márcio depusesse seu cargo a fim de prestar contas à comunidade dos volscos do seu governo e administração.
Márcio temendo ver-se reduzido a homem privado diante de Tulo, mantido como capitão general, quando ele, mesmo sem o comando, era a maior autoridade entre os seus, respondeu-lhe que se demitiria de boa vontade do cargo e o entregaria entre as mãos dos senhores volscos, se todos o determinassem, da mesma forma pela qual o aceitara de todos. Quanto ao mais, ele não recusava dar conta e razão do seu governo nessa mesma hora, a quem da cidade quisesse dar-lhe ouvidos.
LXI. O povo foi então reunido em conselho, e dessa assembleia participaram alguns oradores que irritaram e amotinaram a comuna contra Márcio. Quando terminaram de falar levantou-se este para responder, e embora a plebe amotinada fizesse muito barulho, acalmou-se entretanto ao vê-lo, pela reverência em que tinha sua virtude, dando-lhe audiência pacífica para deduzir com serenidade suas justificações. A maior parte da gente de bem entre os anciatas, que mais se regozijava com a paz, demonstrava em sua atitude, estarem dispostos a ouvi-lo de boa vontade, para o julgarem segundo sua consciência. Tulo porém ao percebê-lo, teve medo, caso o deixasse falar, que Márcio provasse ao povo sua inocência, porque entre outras coisas era homem muito eloquente, acrescendo que os primeiros bons serviços prestados à comunidade dos volscos, propiciavam-lhe mais favor do que o desfavor causado pelas últimas imputações. E mesmo aquilo que lhe era atribuído como crime, testemunhava o benefício por eles devido a Márcio, pois não poderiam considerá-lo como tendo a culpa de não ter sido tomada a cidade de Roma, se não tivessem estado muito próximos de sua conquista, sob a sua direção.
LXII. Tulo, por essas razões, calculou que não podia adiar a empresa, nem divertir-se em suscitar a plebe contra ele. Começaram então os mais rebeldes dos conjurados a gritar que não se devia ouvir nem permitir a um traidor que usurpasse assim o domínio tirânico sobre a liga dos volscos, não querendo demitir-se de seu cargo e autoridade. Ao bradar essas palavras, os conjurados precipitaram-se repentinamente sobre ele e o mataram no próprio local sem que ninguém dos assistentes se intrometesse para socorrê-lo. Vê-se, todavia, que esse assasínio não foi realizado com ciência e consentimento da maior parte dos volscos, por ter acorrido gente de todas as suas cidades para homenagear o corpo de Márcio, ao qual inumaram com grande pompa, ornando sua sepultura com muitos arneses e despojos, como a de um homem valente e grande capitão.
LXIII. Os romanos ao ouvir a notícia de sua morte, não fizeram nenhuma demonstração nem de honra nem de rancor, permitindo apenas às damas, de acordo com pedido seu, que vestissem luto pela sua morte pelo período de dez meses, prazo igual ao do luto habitualmente assumido por elas pela morte dos pais, irmãos e maridos, sendo esse o limite extremo de tempo que o rei Numa Pompíbo determinara para o nojo conforme o escrevemos em sua vida.
LXIV. Os negócios dos volscos, de resto, logo depois da morte de Márcio, fizeram-nos sentir a falta de sua presença, porque, em primeiro lugar, entraram em debate com os équos, seus aliados e confederados, no tocante à precedência. A pendência prosseguiu entre eles até se entrechocarem, matando-se uns aos outros. Foram depois disso, batidos pelos romanos em uma grande batalha, na qual Tulo tombou morto em campo, sendo também passada à espada a flor de todo o seu poder. Eles foram assim, constrangidos a aceitar condições de paz muito vergonhosas, tornando-se súditos dos vencedores e comprometendo-se a fazer tudo quanto lhes fosse ordenado.