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Vidas Paralelas: Crasso, de Plutarco

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Busto de mármore de Crasso. Museu do Louvre, Paris.

Sobre a fonte

Marco Licínio Crasso (114–53 a.C.) foi um político da República Romana eleito cônsul por duas vezes, em 70 e 55. Era o homem mais rico de Roma na época e fez parte do primeiro Triunvirato com Pompeu e Júlio César. Também é reconhecido por ter derrotado Espártaco (o que é narrado nos itens 14-22). Foi morto pelos partas ao realizar uma campanha de conquista no Oriente. A biografia de Crasso faz parte de uma série de biografias escritas por Plutarco (c. 46-120), um historiador grego que viveu no Império Romano. Na série Vidas Paralelas, o autor compara vários nomes da história grega com seus equivalentes romanos. Crasso foi comparado ao político e general ateniense Nícias, morto no cerco a Siracusa.

I. Nascimento, educação, temperança e avareza de Crasso

I. Marcos Crasso era filho de um antigo censor, que conquistara grande renome, e foi criado numa casinha ocupada por dois irmãos casados, que viviam em comum e na melhor harmonia, valendo-se da mesma mesa. Isto, ao que parece, constituiu a causa principal da sua vida regrada e comedida, quando homem. Falecendo um dos dois irmãos, ele desposou a viúva, com a qual teve dois filhos. No que respeita às mulheres, ele foi a vida toda tão aferrado como nenhum outro romano de seu tempo, sendo mesmo em idade avançada, acusado pelo delator Plotino de haver mantido relações com Licínia, uma das religiosas da deusa Vesta. O que levou o delator a fazer mau juízo de Licínia foi o fato de possuir ela um lindo jardim com casa de recreio, perto da cidade, que Crasso cobiçava e visitava amiudadamente, a fim de ver se conseguia adquiri-lo a baixo preço. Convencidos de que só a avareza o arrastava àquele lugar, os juízes absolveram-no por completo do incesto de que era acusado, e ele só deixou a religiosa em paz quando conseguiu comprar-lhe a propriedade. Dizem os romanos ser a avareza o único vício que ele possuía, e que ofuscava todas as belas virtudes que o adornavam. Para mim, porém, ela constituía o seu maior vício, que deixava a perder de vista todos os outros.

II. Enorme riqueza de Crasso; como a adquiriu

II. Para demonstrar a grande cobiça que o dominava, apresentam dois argumentos principais: a maneira e o meio que ele punha em prática para lucrar, e o vulto dos seus haveres, pois, de início, ele não podia ter cabedal superior a trezentos talentos. Ao tempo em que ele se ocupou dos negócios públicos, ofereceu a Hércules o dízimo de todos os seus bens, proporcionou um festim a todo o povo romano, e deu a cada cidadão romano provisão de trigo para três meses. Entretanto, ao partir para guerrear os partas, dando um balanço em todo o seu haver, achou que ele somava sete mil e cem talentos. Embora a verdade ofenda algumas vezes, cumpre-me dizer que a maior parte daquela grande riqueza ele conseguiu-a à custa de fogo e sangue, fazendo das calamidades públicas sua maior fonte de renda. Tendo tomado a cidade de Roma, Sila vendeu publicamente, em leilões, os bens dos que ele submeteu à morte, considerando-os e chamando-os seu lucro; e, para que alguns dos maiores e mais poderosos da cidade pactuassem da mesma culpa, Crasso nunca deixou de participar de tais leilões, para receber de presente os referidos bens ou para comprá-los.

III. Predileção de Crasso pela opulência

III. Além disso, notando que os estragos mais comuns dos edifícios de Roma eram produzidos pelo fogo e desmonoramentos, devido ao raio e à quantidade de andares que possuíam, ele comprou uns quinhentos cativos, entre pedreiros, carpinteiros e construtores. Assim, quando o fogo da desgraça lavrava em alguma casa, ele ia logo comprá-la, bem como as que lhe eram vizinhas, cujos donos, vendo o perigo que corriam, vendiam-nas por uma insignificância. Eis porque, com o correr do tempo, grande parte das casas da cidade de Roma passaram a pertencer-lhe. Embora ele tivesse tantos cativos dedicados ao ramo de construções, a única casa que edificou foi aquela em que residia, sob o fundamento de que os que gostavam de construir destruíam-se por si mesmos, sem que ninguém os atacasse. As diversas minas de prata que possuía, as grandes e excelentes terras para a lavoura, cuidadosamente trabalhadas por avultado número de pessoas, nada significavam quanto ao valor e dedicação de seus numerosos escravos e cativos, entre os quais havia lentes, escritores, ourives, moedeiros, cobradores, mordomos, estribeiros e copeiros, que instruía pessoalmente sobre os afazeres domésticos, com clareza e concisão, a fim de ter neles elementos úteis, fiéis e dedicados. Se agia como dizia, isto é, que o manejo e administração da casa deviam estar a cargo dos serviçais, e estes diretamente subordinados à sua pessoa, não pensava mal, pois tudo o que foge daí, para apegar-se simplesmente ao ganho, é baixo e vil. Quanto à direção dos negócios públicos, porém, a sua opinião era má, pois só considerava e denominava rico ao homem que pudesse ter e sustentar um exército à sua custa. A guerra, segundo o rei Arquidamo, não se faz com quantia determinada, razão por que, para sustentá-la, há necessidade de dinheiro em quantidade ilimitada. Ele se achava, a tal respeito, muito afastado da opinião de Mário, que, tendo distribuído catorze jeiras de terra a cada indivíduo, notou que alguns descontentes queriam mais, e disse-lhes: "Admira que haja romano que considere pequena a porção de terra que lhe dará o bastante para viver".

IV. A casa de Crasso aberta a todo o mundo

IV. Ainda assim, Crasso era afável com os estranhos, e sua casa estava sempre aberta a todos.
 Emprestava dinheiro a seus amigos, sem cobrar-lhes juros; mas, vencido o prazo estabelecido, exigia-o total e rigorosamente, de modo que a sua gratuitidade muitas vezes era mais molesta do que se ele exigisse juros elevados. Quando convidava alguém para comer em sua casa, sua mesa era muito simples, trivial, sem qualquer superfluidade; mas a delicadeza com que era servida e o bom acolhimento dispensado às pessoas agradavam mais do que se o fizesse com opulência e abundância.

V. Aplicação de Crasso ao estudo e à eloquência

V. Quanto ao estudo das letras, ele dedicou-se principalmente à eloquência, e de modo particular à oratória, tornando-se um dos melhores oradores da Roma de seu tempo, superando, pela aplicação, esforço e zelo, os que por natureza possuíam mais capacidade que ele. Dizem que nunca deixou de preparar e estudar as causas que lhe caíam às mãos, para defender, por menores e insignificantes que fossem, e que não raro Pompeu, César e o próprio Cícero vacilaram levantar-se, para contrapor-se à sua defesa. Por isso, ele era geralmente estimado como pessoa prestimosa, desvelada e caritativa.

VI. Sua afabilidade

VI. Sua cortesia também era muito apreciada, porque ele cumprimentava, acariciava e abraçava gentilmente todo o mundo. Indo à cidade, não havia homem que o cumprimentasse, por pobre que fosse, e de baixa condição, que ele não respondesse ao cumprimento nomeando-o. Referem também ser ele muito versado em histórias, e que dedicou-se um pouco à filosofia, mesmo à de Aristóteles, que lhe lia um Alexandre, e que provou ser de natureza suave e paciente, pela convivência que teve com Crasso. Difícil seria dizer se ele tornou-se mais infeliz quando começou a visitá-lo ou depois de havê-lo feito longamente. Alexandre era seu amigo predileto, sem o qual nunca ia para o campo. Quando o fazia, emprestava-lhe uma liteira, para cobrir-se durante o trajeto, tomando-a sem demora, ao regressar. Homem de paciência admirável! Creio mesmo que, na filosofia, que lhe servia de profissão, o pobre sofredor não colocava a pobreza no rol das coisas indiferentes. Sobre isto falaremos a seguir.

VII. Mario e Cina fazem perecer o pai e o irmão de Crasso, que foge para a Espanha

VII. Sendo Cina e Mário mais fortes, e repondo-se a caminho da cidade de Roma, todos perceberam logo que eles não se dirigiam para ah em benefício da coisa pública, mas sim para a desgraça e morte das pessoas mais honestas do lugar, que foram de fato sacrificadas, achando-se entre elas o pai e o irmão de Crasso. Este, ainda muito moço, salvou-se da morte no momento de sua chegada. Percebendo que eles mantinham vigias em toda parte, para apanhá-lo, e que os algozes faziam-no procurar com insistência, ele, seguido por três de seus amigos e dez criados, ocultou-se o mais possível na Espanha, onde já havia estado com seu pai, quando este a administrara como pretor, conquistando inúmeras amizades. Encontrando todo o mundo assustado ah, e temendo o ódio de Mário, como se este já lhe estivesse batendo à porta, ele não ousou dar-se a conhecer; meteu-se pelos campos, e foi esconder-se numa grande caverna, ao longo da costa, de propriedade de Víbio Paciaco, a quem mandou um dos criados perguntar por quanto lhe forneceria alimentação, pois os seus víveres começavam a escassear. Sabendo-o salvo, Víbio ficou satisfeito; e, informando-se do número de pessoas que estavam com ele, e do lugar em que se achava, ele não foi pessoalmente ao seu encontro, mas chamou o escravo e cobrador que lhe administrava tal terra, e, levando-o até bem perto do esconderijo, ordenou-lhe que diariamente preparasse e levasse a comida junto ao rochedo em que se achava a caverna, sem nada dizer, sem indagar para quem e por que, sob pena de morte; mas, que se ele cumprisse fielmente suas ordens, dar-lhe-ia a liberdade. Esta caverna fica não muito longe da costa, entre dois rochedos, tendo altura e largura excelentes, e suficiente quantidade de água e luz. Uma fonte de excelente água corre ao longo dos rochedos, e as brechas naturais, existentes no ponto em que eles se unem, transmitem a claridade externa ao interior, bem como ar puro e seco, pois toda a umidade é absorvida pela espessura das rochas e pela água.

VIII. Maneira por que ele é recebido e tratado por Víbio

VIII. Mantendo-se Crasso em tal lugar, o cobrador de Víbio levava-lhe diariamente o que lhe era indispensável à vida, não vendo as pessoas que atendia, nem as conhecendo, sendo, entretanto, bem visto por elas, que sabiam a hora que ele costumava levar-lhes as provisões, e ficavam à espreita. Ele, porém, não se resumia ao simples fornecimento da comida indispensável à vida, e em abundância, visto haver Víbio deliberado dar a Crasso o melhor tratamento possível, sem se descuidar dos deleites próprios da sua juventude. Sim, porque provê-lo tão só do alimento necessário afigurava-se-lhe ocupação e tratamento de homem que o socorria mais por humanidade do que por admiração e afeto.

Assim, arranjou duas raparigas, e levou-as consigo para a costa; e, ao chegar perto da caverna, mostrou-lhes por onde deviam seguir, ordenando-lhes que entrassem sem receio. Ao dar com as raparigas ali, Crasso temeu haver sido descoberto, e perguntou-lhes quem eram e o que desejavam. Instruídas por Víbio, elas responderam que procuravam seu amo, ali escondido. Percebendo, então, que aquilo não passava de uma galantaria de Víbio, Crasso fêlas entrar, tratou-as o melhor possível, valendo-se delas, para fazer saber a Víbio o que desejava. Isto, escreve Fenestela, foi-lhe várias vezes narrado por uma velha, com grande carinho.

IX. Ele toma o partido de Sila

IX. Tendo permanecido durante oito meses escondido naquela caverna, Crasso retirou-se dali, logo que soube da morte de Cina. Dando-se a conhecer, grande número de guerreiros acercou-se dele, dos quais escolheu dois mil e quinhentos, com os quais passou por muitas cidades e saqueou a de Malaca, segundo escrevem muitos autores, que ele contesta e nega com veemência e firmeza. Depois, provendo-se de navios, ele dirigiu-se à África, a chamado de Metelo Pio, homem de grande reputação e que havia reunido ah uma grande esquadra. Tendo tido alguma divergência com ele, não se deteve ali durante muito tempo, e retirou-se para junto de Sila, que recebeu-o e homenageou-o de modo como nunca fizera a ninguém.

Passando-se à Itália, e desejando servir-se de todos os moços de Famílias distintas que se achavam em sua companhia, Sila deu diversos encargos a uns e a outros, e mandou Crasso à região dos marsos, para ali recrutar guerreiros. Como Crasso lhe pedisse gente para garanti-lo, visto ter de passar por lugares próximos aos ocupados pelos inimigos, Sila respondeu-lhe zangado e brutalmente: "Dou-te por guardas teu pai, teu irmão, teus parentes e amigos, brutal e indignamente matados, que eu procuro vingar, perseguindo, a mão armada, os facínoras que lhes tiraram a vida".

X. Trabalhos que ele realiza

X. Duramente ofendido e ferido com estas palavras, Crasso partiu sem demora; e, passando audaciosamente através os inimigos, reuniu boa quantidade de gente, e, a seguir, mostrou-se sempre pronto e bem disposto a Sila, em tudo quanto lhe foi atribuído. Dizem que foi daí que se originaram a rixa e a inveja de honrarias entre ele e Pompeu, que, sendo mais moço descendia de um pai mal reputado em Roma, e fora desprezado pelo povo até tornar-se adulto e saber impor-se pela virtude e pela prática de grandes ações. Eis porque Sila prestava-lhe grandes homenagens, que raramente concedia aos mais velhos e aos que lhe eram iguais, a ponto de levantar-se quando ele aparecia, de descobrir-se e de chamá-lo imperador, isto é, comandante-chefe. Isto irritava fortemente Crasso, embora Sila não fizesse a injustiça de preferir Pompeu a ele, por não ter ainda a devida experiência de guerra, e não ligasse à sua avareza, que estragava o que de bom e belo havia em seus feitos. No saque à cidade de Tuder, na Úmbria, que ele tomou, desviou em seu favor a maior parte da pilhagem sendo o fato levado ao conhecimento de Sila. Todavia, no último ataque de toda esta guerra civil, que foi o maior e o mais perigoso de quantos se realizaram, e diante da própria Roma, as forças de Sila foram derrotadas e expulsas. Crasso, porém, que comandava a ponta direita, venceu e expulsou os inimigos até alta hora da noite, e mandou dar notícias a Sila da vitória alcançada e pedir-lhe víveres para os seus soldados. Em contraposição, ele atraiu sobre si a nota infamante, na confiscação e leilão dos bens dos desterrados, comprando enormes riquezas por uma ninharia, ou exigindo-as de presente. Dizem ainda que na região dos brucianos, antigos povos calabreses, ele desterrou um, que Sila não havia ordenado, para apoderar-se de seus bens. Sabedor disso, Sila não quis mais valer-se dele em qualquer serviço público.

XI. Reputação de Crasso; como ele a obtém

XI. E estranho que, sendo ele grande bajulador, quando desejava cair nas boas graças de alguém, facilmente se deixasse vencer pela adulação, em qualquer empresa, e fosse dotado de pouca sorte, ao agir pessoalmente. Dizem que, sendo o homem mais avarento do mundo, ele possuía a particularidade de odiar e censurar asperamente os que lhe eram iguais. A glória que Pompeu diariamente conquistava no decorrer da guerra, e o fato de haver obtido a honra do triunfo antes de ser senador e de ser geralmente chamado pelos romanos Pompeu Magno, isto é, o Grande, desgostavam-no imenso. Tanto assim, que, um dia, ouvindo alguém dizer em sua presença, ao ver chegar Pompeu, eis o grande Pompeu, ele perguntou-lhe em ar de mofa: Que altura tem ele?" Todavia, não esperando poder igualá-lo em feitos guerreiros, Crasso entregou-se com afinco aos negócios públicos e à rabulice, defendendo os acusados, emprestando dinheiro aos que demandavam ou pediam concessões em favor do povo, adquirindo assim reputação e autoridade iguais às conquistadas por Pompeu no campo da luta. Deste modo, a fama e o poder de Pompeu eram maiores em Roma quando ele se achava ausente, porque, quando presente, mantinha certa gravidade e grandeza no seu modo de vida, evitava ser visto pelo povo, não frequentava lugares públicos, interessava-se por reduzido número de pessoas, e ainda assim de má vontade, para só se utilizar do seu prestígio e autoridade em seu favor, quando tivesse necessidade. A presença de Crasso, pelo contrário, era vivamente louvada e desejada, por ser útil a muitos, por estar sempre a posto, por atender a todos os que desejavam valer-se dos seus préstimos, esforçando-se por tornar-se agradável e querido. Assim, devido à sua simplicidade e grande familiaridade, ele excedia, em valia e consideração, a gravidade e majestade de Pompeu.

XII. Ele se torna fiador de César de avultada quantia

XII. Quanto à dignidade pessoal, à facilidade e beleza do falar e à simpatia do rosto, dizem não haver disparidade entre os dois. Este ciúme, entretanto, nunca induziu Crasso a uma malquerença e inimizade declaradas. Sofria muito em ver Pompeu e César mais homenageados que ele, mas este ambicioso desgosto nunca foi acompanhado de ódio, nem de malvadez inata, embora César, surpreendido certa vez por corsários na Ásia, e detido por eles prisioneiro, gritasse: "Como ficarás satisfeito, Crasso, quando souberes que estou prisioneiro!" Apesar disso, eles foram depois bons amigos, como ficou provado quando César, achando-se de partida para a Espanha, foi inesperadamente assaltado por seus credores, que lhe apreenderam toda a bagagem, visto ele não poder pagá-los. Crasso, porém, livrou-o de tal situação, respondendo por ele pela quantia de oitocentos e trinta talentos.

XIII. Como Crasso mantém sua reputação entre César e Pompeu

XIII. A cidade de Roma dividiu-se logo em três partidos: o de Pompeu, o de César e o de Crasso. Quanto a Catão, sua reputação e o apreço que devotavam à sua probidade eram superiores ao seu prestígio e poder, sendo a sua virtude mais admirada do que seguida. Os mais circunspectos e ajuizados alistaram-se no partido de Pompeu; mas os mais volúveis e prontos a empreender tudo temerariamente seguiram os propósitos de César. Crasso, nadando no meio, valia-se de ambos; e, mudando constantemente de partido na administração pública, não era nem amigo ferrenho, nem inimigo de morte de quem quer que fosse.

Distribuía comodamente amizade e inimizade em tudo quanto pudesse tirar proveito, razão por que frequentemente viam-no, a curto espaço de tempo, louvar e censurar, defender e condenar as mesmas leis e os mesmos homens. Sua reputação tanto provinha do temor que lhe tinham como do afeto que lhe dedicavam, conforme no-lo demonstra este simples fato: um Sicínio, que atormentava todos os governadores e árbitros dos negócios públicos de seu tempo, sendo um dia interpelado por que não se ligava a Crasso e o deixava em paz, já que conseguia moer todos os outros, respondeu: "Porque ele tem feno no chifre". Era costume em Roma, quando se desejava marcar os chifres de um boi, rodeá-los de feno, para que ele não percebesse.

XIV. Início da guerra de Espártaco

XIV. A revolta dos gladiadores, que alguns denominam guerra de Espártaco, e as correrias e pilhagens que eles fizeram pela Itália, originou-se do seguinte: havia, na cidade de Cápua, um tal Lêntulo Batiato, cuja ocupação consistia em alimentar fartamente e manter grande número de combatentes, que os romanos denominam gladiadores, em sua maior parte gauleses e tracianos aprisionados por simples perversidade de seu chefe, que os comprara e os obrigava a combater ao extremo, uns contra os outros. À vista disso, duzentos deles deliberaram fugir.

Descoberto o seu intento, setenta e oito não aguardaram qualquer ordem do chefe; dirigiram-se a uma casa de venda de carne assada, arrebatando-lhe espetos, machadinhas e facas de cozinha, e puseram-se às pressas fora da cidade. Pelo caminho encontraram casualmente carretas carregadas de armas usadas pelos gladiadores, que levavam de Cápua para qualquer outra cidade. Apoderando-se delas à força, armaram-se, ocuparam um lugar de excelente situação, e escolheram entre eles três comandantes. O primeiro escolhido foi Espártaco, natural da Trácia, terra dos que erram pelo país com suas bestas, sem nunca se deter definitivamente num lugar. Ele não só era robusto e de bom coração, como prudente, calmo e humanitário, qualidades pouco comuns aos indivíduos de sua terra. Dizem que a primeira vez que o levaram a Roma, para ser vendido como escravo, logo que adormeceu, uma cobra apareceu enrolada em seu rosto. Vendo tal, sua mulher, também natural da Trácia, adivinha e inspirada pelo espírito profético de Baco, prognosticou que ele conseguiria um dia grande e incontestável prestígio, que terminaria com feliz êxito. Esta mulher ainda permaneceu com ele, e acompanhou-o na fuga. Logo de início repeliram alguns homens que saíram de Cápua no seu encalço, para tornar a prendê-los; e, tendo-lhes arrebatado as armas de soldados, ficaram satisfeitos em poder substituir por elas as suas de gladiadores, que jogaram fora, como sendo bárbaras e desprezíveis.

XV. Clódio é derrotado

XV. Depois foi mandado contra eles um pretor romano chamado Clódio, com três mil homens, que sitiou-os em seu forte, um outeiro de subida penosa e estreita, guardada por Clódio, rodeado de altos rochedos talhados a pique, tendo no cimo grande quantidade de videiras selvagens. Os sitiados cortaram os rebentos mais longos e fortes de tais videiras, fizeram com eles compridas escadas que roçavam a planície, e, amarrando-as no alto, por elas desceram todos sossegadamente. Um deles apenas ficou em cima, para jogar-lhes as armas, findo o que, também se pôs a salvo. Os romanos não suspeitaram tal; pelo que, rodeando o outeiro, os sitiados atacaram-nos pela retaguarda, afugentando-os apavorados, e tomaram-lhes o acampamento. Muitos boiadeiros e pastores que guardavam seus rebanhos juntaram-se aos fugitivos, sendo uns armados por eles e outros mandados a espionar.

XVI. Diversas vantagens obtidas por Espártaco

XVI. Nessa ocasião foi mandado a Roma outro comandante, Públio Varino, para desbaratá-los, do qual primeiramente derrotaram em combate um tenente denominado Fúrio, com dois mil homens, e a seguir um outro, denominado Cossínio, que lhe haviam impingido como conselheiro e companheiro, e com grande poder. Vendo Espártaco que ele se banhava num lugar chamado Salinas, procurou aprisioná-lo, mas o comandante conseguiu salvar-se, embora a custo. Não obstante, Espártaco apoderou-se de toda a sua bagagem, e perseguindo-o tenazmente apoderou-se do seu acampamento, com a morte de muitos dos seus homens, entre os quais Cossínio. Tendo também vencido em muitos encontros o próprio pretor-chefe, e aprisionado os sargentos que conduziam os machados à sua frente, bem como seu próprio cavalo, Espártaco adquiriu tal valor que todos o temiam. Todavia, calculando cuidadosamente suas forças, e vendo que elas não podiam superar as dos romanos, levou seu exército para os Alpes, sendo de parecer que, uma vez transpostos os montes, cada qual voltasse para sua terra, isto é, para a Gália e para a Trácia. Seus homens, porém, fiados em seu número, e prometendo grandes realizações, não o quiseram atender, e recomeçaram a percorrer e a saquear toda a Itália.

XVII. Crasso é encarregado desta guerra

XVII. Achando-se o senado inquieto, não só pela vergonha e afronta de serem seus homens vencidos por escravos sublevados, como pela apreensão e pelo perigo em que se achava toda a Itália, mandou para ali os dois cônsules, como se se tratasse de uma das mais árduas e perigosas guerras que deveriam enfrentar. Gélio, um dos cônsules, atacando de surpresa uma tropa de alemães, que por altivez e desprezo, se havia separado e afastado do acampamento de Espártaco, submeteu-a toda ao fio de espada; Lêntulo, seu companheiro, com numerosas forças sitiou Espártaco e todos os que o seguiam, atacou-os, venceu-os, e apoderou-se de toda a sua bagagem. Razão por que, avançando para os Alpes, Cássio, pretor e governador da Gália do subúrbio do Pó, enfrentou-o com um exército de dez mil homens. Travou-se um grande combate, no qual ele foi derrotado, tendo perdido muitos soldados, e conseguido salvar-se a muito custo e às pressas. Ciente disto, o senado declarou-se bastante descontente de seus cônsules; e, ordenando-lhes que não mais se envolvessem nesta luta, atribuiu todo o encargo a Crasso, que foi seguido por numerosos moços nobres, graças à sua elevada reputação e à grande estima que lhe votavam.

XVIII. Seu tenente Múmio é derrotado por Espártaco

XVIII. Crasso foi assentar seu acampamento na Romanha, para esperar a pé firme Espártaco, que se dirigia para ali, e mandou Múmio, um dos seus tenentes, com duas legiões, envolver o inimigo pela retaguarda, ordenando segui-lo sempre no encalço, e proibindo-lhe expressamente atacá-lo e escaramuçá-lo de qualquer modo. Não obstante todas estas determinações, logo que Múmio se viu na possibilidade de fazer alguma coisa, atacou-o, sendo derrotado, com perda de muitos dos seus homens. Os que conseguiram salvar-se na fuga, apenas perderam suas armas. Crasso irritou-se bastante com ele; e, recolhendo os fugitivos, deu-lhes outras armas, exigindo-lhes fiadores que garantissem seu melhor serviço dali por diante, coisa que nunca fora feito antes. E, os quinhentos que estiveram nas primeiras filas, e que foram os primeiros a iniciar a fuga, ele dividiu-os em cinquenta dezenas, em cada uma das quais sorteou um, sujeito à pena de morte. Reviveu assim o antigo modo dos romanos castigarem os soldados cobardes, coisa que de há muito havia sido abandonada, por ser ignominiosa, e produzir horror e espanto à assistência, quando realizada publicamente.

XIX. Crasso cerca Espártaco na península de Régio

XIX. Castigando assim seus soldados, Crasso lançou-os diretamente contra Espártaco, que recuou sempre e tanto que, pela região dos lucanianos, chegou à costa, encontrando alguns navios de corsários cilícios no estreito do Farol de Messina. Isto animou-o a ir à Sicília; e, tendo ali lançado dois mil homens, reacendeu a guerra dos escravos, que viviam aparentemente calmos e que de pouco precisavam para se reanimar. Tendo estes corsários prometido auxiliá-lo em sua passagem, recebendo por isso presentes dele, enganaram-no e afastaram-se para longe. Razão por que, lançando-se inesperadamente longe da praia, ele foi assentar seu acampamento na península dos régios, onde Crasso foi encontrá-lo; e, vendo que a natureza do lugar mostrava-lhe como devia agir, decidiu cercar de muralhas o istmo da península, dando assim ocupação aos seus homens e impedindo que os inimigos recebessem víveres. Trabalho demorado e difícil, que ele executou em bem pouco tempo, contra a opinião de todo o mundo, e fez abrir uma trincheira através da península, de quinze léguas de comprimento, quinze pés de largura e quinze pés de profundidade.

Sobre a trincheira fez construir uma muralha muito alta e forte, da qual Espártaco a princípio zombou. Quando, porém, sua pilhagem começou a falhar, e se viu na impossibilidade de obter víveres em toda a península, devido àquela muralha, numa noite bastante áspera, de neve espessa e vento impetuoso, ele mandou encher de terra, pedras e galhos de árvores um trecho não muito extenso da trincheira, por onde fez passar um terço do seu exército. A princípio Crasso receou que Espártaco tomasse a resolução de seguir para Roma; logo, porém, tranquilizou-se, pois soube haver sério desentendimento entre eles, e que uma grande tropa, amotinada contra Espártaco, separara-se dele e fora acampar junto a um lago da Lucânia, cuja água de tempos a tempos torna-se doce, e a seguir tão salgada que não pode ser bebida. Tendo-os atacado, Crasso expulsou-os dali, mas não conseguiu matar grande número, nem afastá-los para muito longe, porque Espártaco apareceu de repente com seu exército, e fez cessar a perseguição.

XX. Ele obtém uma vitória sanguinolenta

XX. Crasso, que havia escrito ao Senado ser necessário chamar Lúculo da Trácia e Pompeu da Espanha, arrependido de havê-lo feito, esforçava-se o mais possível de dar fim a esta guerra antes que eles chegassem, por saber que atribuiriam toda a glória da sua conclusão ao recém-chegado que lhe fosse em auxílio, e não a ele. Por isso ele resolveu primeiramente atacar os que se haviam revoltado e entrincheirado à parte, às ordens dos capitães Caio Canício e Casto. Para tal, fez seguir seis mil soldados de infantaria, para assenhorear-se de uma eminência, ordenando-lhes que tudo fizessem para não serem vistos nem descobertos pelos inimigos. O que eles procuraram realizar o melhor possível, cobrindo seus mornões e elmos. Não obstante, eles foram percebidos por duas mulheres que às escondidas faziam sacrifícios em favor dos inimigos, e estiveram em risco de ficar todos perdidos. Crasso, porém, socorreu-os a tempo, dando aos inimigos o combate mais áspero de quantos se realizaram naquela guerra. Na luta pereceram doze mil e trezentos homens, lutando valorosamente frente a frente, sendo encontrados unicamente dois mortos pelas costas.

XXI. Espártaco vence um destacamento do exército de Crasso

XXI. Depois desta derrota Espártaco retirou-se para as montanhas de Petélia, perseguido e escaramuçado sem trégua, pela retaguarda, por Quinto, um dos tenentes de Crasso, e seu tesoureiro Escrofa. No fim do dia, porém, tudo mudou de repente, e Espártaco derrotou os romanos, sendo o tesoureiro gravemente ferido e salvo a custo. Esta vantagem obtida sobre os romanos deu origem à ruína final de Espártaco, porque seus guerreiros, quase todos escravos fugitivos, encheram-se de tamanho orgulho e audácia que não quiseram deixar de combater, nem obedeceram mais seu comandante. Pelo contrário, como se achavam a caminho, cercaram-nos e disseram-lhes que, quisessem ou não, era preciso que voltassem depressa e os conduzissem pela Lucânia contra os romanos, que era o que Crasso pedia, pois sabia que Pompeu se aproximava, e que muitos em Roma discutiam e brigavam por sua causa, dizendo que a vitória final desta guerra lhe era devida, e que logo que ele ah chegasse tudo seria decidido com um único combate.

XXII. O último combate. Espártaco é morto

XXII. Por isso, procurando combater, e aproximando-se o mais possível dos inimigos, Crasso mandou um dia abrir uma trincheira, que os fugitivos procuraram impedir, carregando furiosamente sobre os que se ocupavam de tal tarefa. A luta tornou-se violenta. E, como, a todo momento, chegassem reforços de parte a parte, Espártaco viu-se obrigado a lançar mão de todos os recursos. Sendo-lhe levado o cavalo em que devia combater, ele desembainhou a espada, e, matando-o à vista de todos, disse: "Se eu for vencido neste combate, ele de nada me servirá. E, se eu for vitorioso, muitos deles, belíssimos e excelentes, terei dos inimigos à minha disposição". Isto feito, lançou-se através da pressão dos romanos, procurando aproximar-se de Crasso, sem o conseguir, e matou dois centuriões romanos que o enfrentaram. Por fim todos os que o rodeavam fugiram, e ele permaneceu firme em seu posto, completamente cercado, lutando valentemente, sendo retalhado. Embora Crasso fosse muito feliz e satisfizesse todos os seus deveres de bom comandante e de homem valente, expondo-se a todos os perigos, não pôde impedir que a honra do termo daquela guerra fosse atribuída a Pompeu, porque os que escaparam deste último combate caíram-lhe às mãos e ele aniquilouos, escrevendo ao Senado que Crasso vencera os fugitivos em combate regular, mas ele destruíra todas as raízes desta guerra. Pompeu teve assim entrada triunfal em Roma, por haver vencido Sertório e reconquistado a Espanha. Crasso não só exigiu o grande triunfo como também o pequeno, que os latinos denominam Ovatio, por fazerem-no vencer, indigna e desumanamente, escravos fugitivos. Tratando da vida de Marcelo, já escrevemos suficientemente sobre este pequeno triunfo, por que foi denominado Ovatio, e no que difere do grande triunfo.

XXIII. Crasso é nomeado cônsul com Pompeu

XXIII. Depois disso, tendo sido Pompeu elevado ao consulado, Crasso não hesitou em pedir-lhe a ajuda, esperançado, como estava, de também ser eleito cônsul. Pompeu aquiesceu de boa vontade, porque desejava, de qualquer modo, que Crasso lhe fosse devedor de algum favor. Tanto assim que favoreceu-o com tal carinho, que declarou publicamente, perante a assembleia da cidade, ser tão grato ao povo, se lhe desse Crasso por companheiro no consulado, quanto o era por havê-lo eleito cônsul. Eles, entretanto, não prosseguiram nesta benevolência, quando na posse de seus cargos, mantendo frequentes discussões, e divergindo em quase todas as coisas. O que fez com que todo o seu consulado transcorresse sem qualquer fato digno de nota, a não ser o grande sacrifício que Crasso fez a Hércules, dando um banquete de mil mesas ao povo romano e distribuindo a cada cidadão trigo para três meses. Ao findar seu consulado, ao realizar-se a assembleia da cidade, um indivíduo chamado Onácio ou Caio Aurélio, cavaleiro romano, pouco conhecido por manter-se quase sempre nos campos, alheio aos negócios públicos, assomou à tribuna durante os debates, e contou ao povo uma visão que lhe aparecera em sonho: "Tendo me aparecido Júpiter esta noite (declarou), ordenou-me que vos dissesse publicamente que não deveis admitir que Crasso e Pompeu abandonem seu consulado, sem que primeiro se hajam reconciliado". Nem bem ele terminou de proferir esta palavra, o povo ordenou-lhes que se reconciliassem. Pompeu manteve-se firme como uma estátua, sem proferir palavra. Crasso, porém, estendeu-lhe a mão, e, dirigindo-se ao povo, falou em voz alta: "Não pratico nenhuma cobardia ou indignidade, senhores romanos, sendo o primeiro a rebuscar a amizade e carinho de Pompeu, visto que vós mesmos o cognominastes grande, antes que lhe despontasse qualquer fio de barba, e lhe concedestes a honra do triunfo, antes que ele pertencesse ao Senado".

XXIV. Ele nada faz durante a sua permanência na censura

XXIV. Foi tudo quanto se realizou de notável durante o consulado de Crasso, cuja censura decorreu completamente apagada e de todo inútil, embora tivesse por companheiro o mais civil e tratável dos homens existentes então em Roma. Dizem que, logo de início, desejando Crasso praticar um ato violento e iníquo, o de tornar o Egito província tributária dos romanos, Catulo se opôs terminantemente, o que os tornou inimigos e fez com que renunciassem voluntariamente a seus postos.

XXV. Desconfiança de haver Crasso participado da conspiração de Catilina

XXV. Quanto à conspiração de Catilina, que foi de grande consequência e quase arruinou e destruiu a cidade de Roma, Crasso foi tido como suspeito, e houve um dos cúmplices que o apontou, mas ninguém lhe deu crédito. O próprio Cícero, em um dos seus discursos, dá o maior relevo à suspeita sobre Crasso e César, mas tal discurso só foi publicado depois da morte de ambos. No que ele proferiu para dar conta dos atos do seu consulado, ele declara que certa noite Crasso procurou-o, levando-lhe uma missiva na qual mencionava Catilina, como a confirmar-lhe que a conspiração que pesquisavam era certa. Tanto assim, que, depois, Crasso sempre quis mal a Cícero; mas seu filho Púbio Crasso, estudioso e amante das letras, que não se afastava de Cícero, impediu-o de buscar abertamente os meios capazes de prejudicá-lo, para se vingar. De modo que, quando quiseram instaurar processo contra ele, Públio tanto pediu a seu pai, secundado por muitos moços de boa família, que ele reconciliou-se com Cícero.

XXVI. União de César, Pompeu e Crasso funesta à república

XXVI. Por fim, achando-se César ao termo do seu governo, preparou-se para pedir o consulado; e, percebendo que Pompeu e Crasso se haviam novamente inimizado, não quis, pedindo a um que o auxiliasse em sua pretensão, incorrer na inimizade de outro, e também não esperava alcançar o seu desejo sem o auxílio de um deles. Por isso, ele procurou estabelecer um acordo entre os dois, demonstrando-lhes que a sua inimizade só conseguia aumentar o prestígio e a autoridade de um Cícero, de um Catulo e de um Catão, que nada valeriam se eles se unissem, pois, com os elementos que possuíam, podiam, unidos, manejar à vontade tudo quanto se relacionasse com os negócios públicos. Tendo-os convencido e reconciliado, César fez dos três partidos uma força invencível, que arruinou o Senado e o povo romano. Esta fusão de partidos deu grande força e poder a Pompeu e Crasso, e foi de enorme valia a César; porque, nem bem eles começaram a protegê-lo, ele foi eleito cônsul sem a menor dificuldade. Tendo-se portado bem no consulado, findo o mesmo entregaram-lhe o comando de grandes exércitos e submeteram a Gália ao seu domínio, na esperança de poder repartir entre ambos o produto do saque a que desejavam sujeitar a cidade.

XXVII. Plano dos três associados para escravizar a república

XXVII. O que induziu Pompeu a cometei esta falta foi a sua desmedida ambição. Crasso, porém, além da sua velha e inseparável avareza, deixou-se levar pela inveja que lhe causavam os grandes feitos guerreiros de César, e que o acompanhou até à morte, pois não podia suportar que, sendo-lhe superior em tudo, não o superasse também nas armas. Tendo César descido da província de Gália à cidade de Luca, muitos romanos foram-lhe ao encontro, inclusive Pompeu e Crasso, que, conjurados com ele, deliberaram submeter ao seu domínio todo o império romano, ficando César com as forças que já possuía, encarregando-se Crasso e Pompeu de organizar outros exércitos e de apoderar-se de outras províncias. Para tal conseguir, era indispensável que Pompeu e Crasso obtivessem um novo consulado, no que César devia ajudá-los, escrevendo aos seus amigos de Roma, e mandando para ali bom número de soldados, a fim de garantirem a eleição.

XXVIII. Pompeu e Crasso ambicionavam novamente o consulado

XXVIII. Devido a isso Pompeu e Crasso regressaram a Roma, onde logo desconfiaram do acontecido, correndo por toda a cidade que o encontro de Luca não fora bem intencionado, pelo que, em pleno Senado, Marcelino e Domício perguntaram a Pompeu se ele desejava o consulado, e ele respondeu-lhes que em parte sim e em parte não. Refeita a pergunta, ele respondeu que o aceitaria em favor dos bons e não dos perversos. Estas respostas não foram consideradas satisfatórias, mas sim pretensiosas e arrogantes. Crasso, porém, respondeu modestamente que, se fosse para o bem público, ele o aceitaria, caso contrário não. A estas palavras, ninguém teve a ousadia de, como Domício, manifestar-se contra. Mas depois, quando eles se declararam abertamente pretendentes, todos se manifestaram favoráveis à sua pretensão, exceto Domício, que Catão, seu parente e amigo, não conseguiu demover da sua oposição, porquanto viu nela um combate em defesa da liberdade, pois o que Crasso e Pompeu aspiravam não era propriamente o consulado, mas sim o elemento capaz de levá-los à tirania, de organizar exércitos e de arrebatar e dominar províncias.

XXIX. Eles fazem-se eleger pela violência

XXIX. Bradando sobre tais propósitos, e acreditando firmemente neles, Catão sondou à força, por assim dizer, Domício na praça, conseguindo o apoio de muita gente de bem, pois ninguém atinava a razão por que Pompeu e Crasso ambicionavam um segundo consulado, e fizessem questão de estar juntos e não com outros, quando havia ali tantos que não eram indignos de figurar em tal posto ao lado de qualquer dos dois. Devido a isso, crente de não conseguir o que almejava, Pompeu não duvidou em praticar as coisas mais desonestas e violentas do mundo. Entre elas, no dia da eleição, quando Domício e seus amigos se dirigiam, de madrugada, para o local em que devia ser realizada, o lacaio que conduzia o archote à sua frente foi morto por pessoas propositalmente colocadas de emboscada, e muitos da comitiva, entre os quais Catão, foram feridos. Os que não conseguiram fugir foram cercados e presos, e encerrados em uma casa até serem os dois eleitos cônsules. A seguir, apoderando-se da tribuna pelas armas, expulsaram Catão da praça, mataram alguns oposicionistas que não quiseram fugir, prorrogaram por mais cinco anos o domínio de César na Gália, e fizeram o povo nomeá-los governadores das províncias da Síria e da Espanha. Depois, tirada a sorte, o da Síria coube a Crasso e o da Espanha a Pompeu.

XXX. Futilidade dos projetos e dos discursos de Crasso

XXX. Este acaso da sorte satisfez a todos, porque o povo não desejava que Pompeu fosse para longe de Roma, e ele, que amava muito sua esposa, sentiu-se feliz em poder manter-se o mais perto possível dela e de sua casa. A satisfação de Crasso foi tão grande, que, embora ele não proferisse palavra, não passou despercebida, pois ele desejava mesmo estar entre estranhos, rodeado de honrarias. Mas, na intimidade, e entre amigos, ele gabou-se tanto e disse tantas tolices, como dificilmente teria feito e proferido o jovem mais gabola; o que estava em desacordo com a sua idade e temperamento, pois fora a vida toda reservado, e comedido no falar. Engrandecendo-se desmedidamente, e afastando-se do seu hábito, ele não limitou suas esperanças à conquista da Síria, nem à dos partas, declarando que tudo quanto fizeram Lúculo contra Tigrano e Pompeu contra Mitrídates não passava de um brinquedo de crianças, pois ele estenderia as suas conquistas até Bactnana, índias e Grande Oceano, pelo lado oriental, embora o decreto sancionado pelo povo não se referisse à guerra contra os partas. Todos sabiam, porém, que Crasso nutria ardentemente tal desejo, pois o próprio César escrevera-lhe da Gália, louvando-lhe a deliberação e exortando-o a levá-la a efeito.

XXXI. Inúteis esforços do tribuno Ateio, para impedir a partida de Crasso, na guerra contra os partas

XXXI. Isso deu motivo a que Ateio, um dos tribunos do povo, se opusesse à sua partida, no que foi apoiado por muitos outros, por achar injusto que se fosse, sem motivo, guerrear povos que nunca molestaram nem ofenderam os romanos, sendo-lhes, pelo contrário, amigos e aliados. Vendo em tal uma trama contra sua pessoa, Crasso pediu a Pompeu que o auxiliasse e acompanhasse até fora da cidade, dada a sua autoridade e o respeito que devotavam à sua pessoa na comuna. Embora fosse numerosa a massa popular reunida para impedir a partida de Crasso, e vaiá-lo, ao verem Pompeu marchar sorridente à sua frente, serenaram e deixaram-nos passar, sem dizer palavra. O tribuno Ateio, porém, colocou-se diante deles, e, em alta voz, proibiu Crasso de sair da cidade, protestando veementemente, se ele não o atendesse. E, vendo que, não obstante sua proibição, ele não deixou de seguir o seu caminho, ordenou a um dos seus sai gentos que lhe lançasse mão ao pescoço, para prendê-lo, o que não foi permitido pelos outros tribunos. Ateio correu então para a porta da cidade, colocou um braseiro de fogo ardente no meio da rua, e, ao chegar Crasso, jogou dentro alguns perfumes e fez sobre ele algumas aspersões, proferindo blasfêmias e maldições apavorantes, e evocando deuses de nomes desconhecidos e assustadores. Dizem os romanos que tais pragas são ah muito antigas, porém, mantidas em segredo, porque são tão eficientes que as pessoas visadas não escapam delas e os que as rogam nunca mais têm paz na vida. Razão por que raros são os que as proferem, e assim mesmo nas grandes oportunidades.

XXXII. Crasso põe-se a caminho

XXXII. Ateio foi muito censurado, por haver rogado tais pragas e feito uso de tão espantosa cerimônia, que, visando Crasso, feriam os interesses públicos. Tendo seguido seu caminho, Crasso chegou a Brundúsio, onde as tempestades do inverno não haviam diminuído; mas nem por isso deixou de fazer-se de vela. Perdeu diversos navios, e, com o resto do seu exército, pôs-se a caminho, por terra, através do reino da Galácia, onde encontrou o rei Dejotaro, já muito velho, a edificar uma nova cidade. Crasso disse-lhe gracejando: "Parece-me, senhor rei, que começas muito tarde a edificar, fazendo-o na última hora do dia". Ao que o rei dos gálatas respondeu sem demora: "Tu também não partiste cedo, pelo que vejo, senhor comandante, para ir guerrear os partas". Crasso já havia passado os sessenta anos, e aparentemente demonstrava ser muito mais velho.

XXXIII. Primeiros sucessos de Crasso; ele inverna na Síria

XXXIII. Tendo chegado aos lugares, a princípio os negócios correram-lhe segundo seus desejos, pois ele lançou facilmente uma ponte sobre o rio Eufrates, pela qual passou sem o menor obstáculo todo o seu exército. Depois, entrando na Mesopotâmia, recebeu diversas cidades, que voluntariamente renderam-se a ele. Uma houve, entretanto, sob a tirania de um Apolônio, onde cem dos seus soldados foram mortos, o que levou-o a lançar para ali todo o seu exército; e, tendo-a tomado à força, saqueou-a, e vendeu os habitantes em leilão. Os gregos chamavam esta cidade Zenodócia, e a sua tomada fez com que os guerreiros denominassem Crasso de imperador, isto é, comandante supremo. O que só serviu para rebaixá-lo aos olhos de todos, que passaram a considerá-lo baixo e sem valor, incapaz de grandes feitos, visto dar tanta importância a um acontecimento insignificante como aquele. Tendo disposto sete mil soldados de infantaria e cerca de mil cavalarias em guarnições pelas cidades que se lhe renderam, Crasso foi passar o inverno na Síria, onde seu filho foi encontrá-lo, vindo das Gálias, onde estivera com Júlio César, que lhe concedera prêmios honrosos, que os comandantes romanos costumavam dar às pessoas de bem e cumpridoras do seu dever na guerra, e levou a seu pai mil dos melhores guerreiros.

XXXIV. Censuras à avareza que ele ali demonstra

XXXIV. Parece-me ter sido esta a primeira falta cometida por Crasso, depois de iniciar esta guerra, considerada a maior de todas, porque ele devia ter avançado sem parar, e ter carregado contra Babilônia e Selêucia, sempre apontadas como inimigas dos partas. A sua demora permitiu que os inimigos fizessem provisões e se preparassem à vontade. Além disso, as censuráveis ocupações a que ele se entregou, durante todo o tempo em que esteve descansando na Síria, foram mais de mercador do que de comandante, pois não gastou tal tempo em ver as falhas do seu exército, em submetê-lo a exercícios, mas sim em calcular as rendas das cidades, e em somar e pesar o tesouro de ouro e prata existente no templo da deusa de Hierápolis. O pior é que ele exigiu dos soberanos, cidades e populações, determinado número de soldados, dispensando-os depois, mediante o pagamento de uma determinada quantia. Com isto, ele conquistou uma triste fama e o desprezo de todo o mundo.

XXXV. Embaixada dos partas a Crasso

XXXV. O primeiro presságio da sua infelicidade proveio-lhe desta deusa de Hierápolis, que alguns acreditam ser Vénus, outros Juno, e outros ainda acreditam ser causa e origem de todos os acontecimentos, que mostram aos homens a fonte de lodos os bens. Nem bem saíram do seu templo, o jovem Crasso foi o primeiro a cair defronte ao mesmo, e seu pai, a seguir, tropeçou-lhe no corpo, e caiu também. Nem bem Crasso começou a reunir as guarnições dos lugares em que havia invernado, para marchar para o campo, chegaram-se a ele embaixadores do rei dos partas, denominado Arsaces, que em poucas palavras puseram-no ao par da sua missão, declarando que, se tal exército fora mandado pelos romanos para guerrear seu soberano, este não manteria qualquer relação de amizade com eles, e lhes fana guerra de morte, custasse o que custasse. Mas, se, como ouvira dizer, Crasso, por simples ambição, e contra a vontade de seus concidadãos, foi de caso pensado, guerrear os partas, para apoderar-se do país, Arsaces, procederia mais moderadamente, de dó da sua velhice, contentando-se em fazer partir vivos e livres de perigo os guerreiros romanos, que considerava prisioneiros em suas cidades e não de guarda às mesmas. Crasso respondeu-lhes bravateiro que lhes daria resposta na cidade de Selêucia, pelo que o mais velho dos embaixadores, chamado Vagises, desandou a rir, e, mostrando-lhe a palma da mão, disse: "É mais fácil nascerem pelos na palma de minha mão, Crasso, do que ires à cidade de Selêucia". Os embaixadores partiram, e foram comunicar ao rei Hirodes ser indispensável pensar na guerra.

XXXVI. Notícias assustadoras levadas a Crasso por seus soldados fugidos aos inimigos na Mesopotâmia

XXXVI. Neste ínterim, tendo-se salvo, com grande risco de vida, alguns guerreiros das guarnições das cidades da Mesopotâmia, levaram a Crasso notícias que bem mereciam cuidadoso estudo, dado o grande número de combatentes que viram no acampamento inimigo e o seu modo de combater, que patentearam em alguns ataques realizados em tais cidades. Como geralmente acontece com os escapos de qualquer perigo, que tornam as coisas mais espantosas e perigosas do que o são na realidade, eles contavam ser impossível salvar-se deles, quando perseguiam, bem como agarrá-los quando fugiam; que usavam flechas invisíveis, que trespassavam tudo quanto encontravam pelo caminho, antes de ser visto quem as desferia; que as armas ofensivas usadas pela sua cavalaria varavam todas as armaduras, por mais fortes que fossem, e que as defensivas resistiam aos maiores embates.

XXXVII. Ele persiste em seu propósito, apesar das representações

XXXVII. Ouvindo tais notícias, os soldados romanos abrandaram a sua audácia, por que antes lhes haviam dito que os partas não diferiam dos armênios e dos capadócios, que Lúculo tanto derrotou e saqueou que chegou a aborrecer-se, e que as maiores dificuldades a serem vencidas em toda esta guerra eram a extensão do caminho a percorrer e o trabalho de perseguir e ir no encalço de gente que não os enfrentaria. No entanto, com as últimas notícias, compreenderam que deviam agir e combater decididamente. Por isso, mesmo alguns que tinham postos e autoridade no exército, entre os quais Cássio, questor e superintendente das finanças, foram de parecer que Crasso devia deter-se onde se achavam e confiar de novo o empreendimento à deliberação do conselho, isto é, se deviam ou não avançar. Em meio a quanto acontecia, os próprios adivinhos, ocultamente, davam a entender que os deuses, em todos os sacrifícios, prenunciaram maus acontecimentos, difíceis de aplacar. Crasso, porém, não lhes deu ouvidos, o mesmo fazendo com todos os outros, exceto os que o aconselharam a avançar. Quem mais o garantiu e encorajou foi Artabazo, rei da Armênia, que foi ter com ele no acampamento, levando-lhe seis mil cavalos, que era tudo quanto possuía, ao que diziam. Não obstante, ofereceu-lhe mais dez mil devidamente equipados, e trinta mil soldados de infantaria, aconselhando-o a entrar no país dos partas pela Armênia, devido à facilidade de provisões, que ele lhe forneceria, e porque marcharia com segurança, por ser região montanhosa, imprópria para cavalaria, que era a única força dos partas. Crasso agradeceu-lhe friamente a boa vontade manifestada e a oferta de tão belo e magnífico auxílio, e disse-lhe que retomaria a marcha pela Mesopotâmia, onde deixara muitos e excelentes guerreiros romanos, com o que o rei armênio despediu-se e retirou-se.

XXXVIII. Maus presságios

XXXVIII. Nem bem Crasso iniciou a passagem do seu exército pela ponte que fizera lançar sobre o rio Eufrates, rebentaram ali fortes e assustadoras trovoadas, seguidas de relâmpagos, que ofuscavam a vista de seus homens. Súbito, de um pesada nuvem negra partiu formidável rajada seguida de raio, que caiu sobre a ponte, abatendo em grande parte, e mais dois raios foram cair no lugar em que ele devia assentar acampamento Além disso, um dos seus melhores cavalos, ricamente ajaezado, foi lançar-se ao no, com quem o cavalgava, morrendo afogado, e nunca mais foi encontrado. Dizem que a primeira águia que levaram, para assinalar o acampamento, voltou sem demora para o lugar de onde a haviam levado. Aconteceu ainda, que, ao distribuírem víveres aos soldados, depois de atravessarem a ponte, o que lhes deram em primeiro lugar foi sal e lentilhas, que os romanos consideram símbolos de luto e prenúncios de morte, porque fazem uso deles nos funerais. Logo depois, arengando e exortando os soldados, Crasso proferiu uma sentença que abalou extraordinamente o exército todo, pois declarou que ia mandar destruir toda a ponte que lançara sobre o rio, para que nenhum deles pudesse voltar. Embora percebesse que as suas palavras, proferidas irrefletidamente, foram mal interpretadas, e devesse repeti-las e esclarecer o seu pensamento, para tranquilizar sua gente, teimoso como era não ligou importância ao caso. Fez, por fim, o sacrifício do costume pela felicidade do seu exército, e, ao serem-lhe apresentadas pelo adivinho as entranhas do inimigo imolado, elas caíram-lhe das mãos. Percebendo o pasmo e perturbação da assistência, ele desandou a rir, e disse: "Isto é mal da velhice; mas haveis de ver que as armas não me cairão das mãos.

XXXIX. Crasso segue para a frente

XXXIX. Tudo preparado, ele iniciou a marcha pela região, ao longo do rio, com sete legiões de soldados de infantaria, pouco menos de quatro mil cavalos e uns quatro mil lanceiros. Nisso, alguns de seus precursores, que acabavam de explorar a região, comunicaram-lhe não haver homem algum em toda a campina, mas que notaram sinais de inúmeras patas de cavalos, que pareciam ter retrocedido. Isto fez com que Crasso e sua gente nutrissem boa esperança e começassem a fazer pouco caso dos partas, certos de que eles não entrariam em combate. Cássio, entretanto, fez-lhe ver que melhor seria reforçar um pouco as guarnições de algumas cidades que se achavam em seu poder, até receber notícias exatas dos inimigos, ou que se dirigisse à cidade de Selêucia, margeando o no, o que facilitaria o transporte de víveres ao acampamento, por meio de barcos, tendo o cuidado de evitar que os inimigos os atacassem pela retaguarda, pois, fazendo-o frente a frente, não obteriam vantagem.

XL. Conselhos insidiosos dados a Crasso por Ariamnes

XL. Nem bem Crasso começou a refletir e deliberar sobre tal, apareceu-lhe um comandante de árabes, chamado Anamnes, homem esperto e cauteloso, que foi a principal e a maior das desgraças que a sorte proporcionou ao mesmo tempo, para arruinar Crasso. Alguns dos que já haviam estado em luta naquelas paragens, sob o comando de Pompeu, que bem conheciam, e a quem deviam alguns favores, calcularam que, por isso, ele se houvesse afeiçoado bastante aos romanos. Ele, porém, fora subornado e encarregado de ir até eles pelos comandantes dos partas, com os quais mantinha relações, para enganar Crasso e procurar afastá-lo o mais possível do no e da região montanhosa, para lançá-lo à enorme planície, onde pudesse envolvê-lo completamente com a cavalaria, pois eles só desejavam atacar os romanos de frente, imprevistamente. Dirigindo-se a Crasso, este bárbaro começou a elogiar Pompeu como seu benfeitor (pois era muito eloquente), e, enaltecendo o exército de Crasso, reprovava-lhe a demora da ação, prolongando e consumindo o tempo com preparativos, como se necessitasse de armamentos, ao invés de agir prontamente e com a reconhecida habilidade, contra inimigos que de há muito só pensavam em apoderar-se dos bens das pessoas mais evidentes e ir ocultá-los nos desertos da Cítia ou da Hircânia. "Se tencionais atacá-los, disse ele, a boa razão manda que os procureis, antes que seu rei reúna todas as suas forças. No momento só encontrareis pela frente dois dos seus tenentes, Surena e Silaces, que ele mandou para vos entreter, certo de que não o perseguireis. Ele, porém, não comparecerá".

XLI. Elogio de Surena

XLI. Tudo isto era falso. Dividindo desde o início suas forças em duas porções, Hirodes destruiu com uma delas o reino da Armênia, para se vingar do rei Artabazo, e mandou Surena ao encontro dos romanos, não em sinal de pouco caso, como referem alguns, porque desdenhasse lutar contra Crasso, que era um dos principais vultos da cidade de Roma, e achasse mais honroso guerrear Artabazo na Armênia. Fê-lo a meu ver, para evitar maior perigo, em lugar onde pudesse aguardar os acontecimentos com segurança, enquanto Surena tentava a sorte, e para desnortear os romanos. Surena não era homem de baixa ou pequena condição social, e sim o segundo dos partas, depois do rei, tanto em nobreza como em riqueza e reputação. Quanto ao valor, capacidade e experiência em feitos guerreiros, ocupava o primeiro lugar entre os partas do seu tempo. Ninguém o excedia em tamanho e beleza corporal. Quando seguia para o campo com a sua comitiva, cerca de mil camelos transportavam-lhe a bagagem, duzentas carruagens iam repletas de concubinas, seguidas de mil guerreiros de todas as armas, além de outros, perfazendo o total de mais de dez mil, entre subordinados e meios de transporte. Herdou dos seus antepassados o privilégio de ser o primeiro a colocar a faixa real ou diadema na cabeça do rei, por ocasião da sua ascensão ao trono; além disso, repôs o rei Hirodes no trono, do qual havia sido expulso, e conquistara-lhe a grande cidade de Selêucia, cujas muralhas fora o primeiro a galgar, derrotando seus defensores. Embora ainda não tivesse trinta anos de idade, foi considerado homem bastante ajuizado, sensato e bom conselheiro, meios que pôs em prática para derrotar Crasso, que, por sua audácia e. descuido, de início, e depois pelo receio e falta de tino a que o levaram seus infortúnios, tornou-se fácil presa, sujeito a todas as emboscadas.

XLII. Mensagem de Artabazo a Crasso; bom conselho que ele lhe dá. Resposta de Crasso

XLII. Como o bárbaro induziu-o a crer em tudo quanto quis, afastando-o do no levou-o para a planície, onde a princípio encontraram um caminho excelente, que se tornou depois horrível, porque entraram em areiais, onde seus pés afundavam extraordinariamente, e em campos abertos, sem árvores nem água, de cujos limites a vista não alcançava começo nem fim. De modo que não só a sede e a incomodidade do caminho fatigavam os romanos, como a desolação da vista os desencorajava, por não ter onde pousar. Árvores, rio, regato, montes, ervas ou plantas verdejantes, nada disto viam nem perto, nem longe, e sim um mar infinito de desertos de areia em toda a extensão do seu acampamento. Isto começou a fazê-los pensar em traição, quando chegaram-lhes notícias de Artabazo, que mandou dizer-lhes que fora obrigado a permanecer em sua terra, devido à grande guerra que Hirodes lhe fazia, razão por que não podia mandar-lhes o auxílio prometido; que aconselhava-os a seguir com Crasso, para a Armênia, a fim de que, unindo ambas as forças, conseguissem vencer o rei Hirodes. Caso contrário, prevenia-o que prosseguisse sempre, custasse o que custasse, e fosse acampar em região montanhosa, evitando as planícies e lugares dos quais a cavalaria pudesse se valer, e que se aproximasse sempre das montanhas. Crasso, por sua estultice, nada respondeu por escrito; fê-lo verbalmente, furioso, declarando que no momento não tinha tempo para preocupar-se com o que se passava com os armênios; que depois ma à Armênia, para vingar-se da traição que Artabazo lhe fizera. Cássio ficou muito chocado com esta resposta; e, vendo que Crasso não tomava em consideração o que ele lhe dizia, em nada mais quis adverti-lo. Mas, chamando à parte o comandante árabe Ariamnes, censurou-o duramente, dizendo-lhe: "Homem miserável e perverso! Que mau espírito conduziu-te a nós, e por meio de que bruxarias e atrativos conseguiste fascinar Crasso, a ponto de convencê-lo a jogar seu exército neste abismo infernal, e a seguir este caminho que mais condiz com um árabe comandante de ladrões do que com um comandante geral do povo romano?" Sendo homem cauteloso e esperto, o bárbaro tratou de acalmá-lo delicadamente, pedindo-lhe que tivesse ainda um pouco de paciência, e, percorrendo todas as tendas, fingindo ajudar os soldados, dizia-lhes em ar de brincadeira: "Creio, companheiros, que pensáveis caminhar pela campina de Nápoles, e bem desejaríeis encontrar os belos nachos e frescas fontes, os pequenos bosques, os banhos naturais e as boas estalagens existentes nos arredores, para vos refrescar, e não vos lembrais que atravessais os desertos dos confins da Arábia e da Assíria".

XLIII. Ele dispõe seu exército em ordem de combate

XLIII. Foi assim que este bárbaro conseguiu distrair durante certo tempo os romanos. Mas, antes que fosse incontestavelmente descoberta a sua traição, ele desapareceu de repente, embora com conhecimento e permissão de Crasso, alegando ir conspirar e provocar desavenças no acampamento dos inimigos. Dizem que naquele dia Crasso saiu de sua tenda vestido de preto e não de vermelho, como costumam os comandantes romanos, e que, sendo prevenido, mudou logo de roupa. Dizem também que os porta-estandartes custaram muito a arrancar as hastes do solo, quando partiram, de tão enterradas e firmes que estavam. Não obstante todos estes acontecimentos, Crasso, zombando, estimulava-os a agir, obrigando o avanço dos soldados de infantaria e de cavalaria, até à volta de alguns dos volantes que mandara sondar o terreno, que lhe deram a notícia que todos os seus companheiros foram vencidos pelos inimigos, e que eles a muito custo conseguiram salvar-se, dado o seu número avultado e a sua disposição para o ataque. Esta notícia causou pasmo em todo o acampamento, pondo Crasso mais assombrado do que todos os outros; tanto assim que, apavorada e precipitadamente, começou a dispor seus homens em posição de combate, descontrolado como se achava. Primeiro dispôs as forças em quadrados distantes um do outro, para evitar que os inimigos os envolvessem, seguindo a opinião e conselho de Cássio, e distribuiu a cavalaria que possuía em duas alas. Depois mudou de opinião, e dispôs a infantaria em retângulos, com frente para todos os lados, enfileirando doze coortes em cada lado, e colocando ao longo de cada coorte uma companhia de cavalaria, pronta a agir, em caso de necessidade. Isto feito, entregou uma ponta ao comando de Cássio, outra a seu filho Públio Crasso, e ficou no meio. Ordenada a marcha, caminharam tanto que chegaram ao rio Balisso, o qual embora pequeno e de pouca água, serviu para mitigar a sede e o calor abrasador que os soldados haviam sofrido em todo o penoso trajeto.

XLIV. É preciso combater

XLIV. Quase todos os capitães opinaram acampar e passar a noite ah, para poderem reconhecer o mais possível os inimigos, conhecer-lhes o número e a equipagem, e ir-lhes ao encontro na manhã seguinte. Crasso, porém, instado por seu filho e pelos guerreiros que o acompanhavam, resolveu fazer o exército avançar e atacar sem perda de tempo, razão por que ordenou aos que quisessem alimentar-se que o fizessem sem demora, sem afastar-ao de suas fileiras. Depois, subitamente, antes que a ordem pudesse ser totalmente cumprida, ordenou que marchassem sem perda de tempo, como acontece quando se vai efetuar um combate, pois perceberam os inimigos, que à primeira vista não pareceram muito numerosos aos romanos, nem tão bem armados como supunham. Quanto ao número, Surena ocultara-o com algumas tropas que lançara à frente fazendo-as cobrir seus arneses com roupas e peles de animais. Ao se aproximarem uns dos outros, e ao ser dado o sinal de acometer, uma grita ensurdecedora encheu toda a campina, porque os partas não são incitados ao combate pelos sons das cornetas, trombetas e clarins, mas por tambores de couro, ao redor dos quais prendem guisos, sinetas e outras quinquilharias de latão, e soam conjuntamente e em todos os sentidos, produzindo um ruído surdo, semelhante a uma mistura do rugido de animal selvagem com o som assustador do trovão, sendo o ouvido, de todos os sentidos, o que mais depressa e fortemente emociona a alma e os sentimentos de quem o ouve, e mais depressa põe o homem fora de si.

XLV. Trava-se o combate

XLV. Achando-se os romanos com o ânimo já sobressaltado, os partas de repente puseram os arneses a descoberto, mostrando-se reluzentes, com seus elmos e couraças de ferro margiano bem forjado, que brilha e reluz como fogo, com seus cavalos igualmente dotados de armaduras de ferro e de sobre, e com Surena, comandante em chefe de todo o exército, o mais belo e o maior homem de toda a sua hoste, tido como o mais arrojado e valente de rodos, embora o seu ar um tanto efeminado não demonstrasse. Sim, porque ele pintava o rosto e usava os cabelos à moda dos medos, embora os outros partas ainda seguissem os tártaros, deixando-os crescer sem os lavar nem pentear, para se tornarem mais pavorosos aos olhos dos inimigos. Logo de início haviam decidido atacar os romanos com suas lanças, para tentar fender e abrir suas primeiras fileiras. Mas quando viram de perto o campo de ação tomado em toda a sua extensão por homens decididos à luta, recuaram, como se quisessem afastar-se, debandar e pôr-se a salvo. Tal faziam, entretanto, para cercar seus inimigos por todos os lados. À vista disso, Crasso ordenou aos seus flecheiros que os atacassem, o que foi feito. Mas não puderam avançar muito, porque foram subitamente contidos e submetidos a tantas flechadas, que foram obrigados a repor-se sem demora sob a proteção de suas hostes. A violência do ataque e os enormes estragos produzidos pelas flechadas inimigas, que inutilizavam-lhes as armas e varavam tudo quanto encontravam, mole ou duro, apavorou os romanos, pondo-os em desordem.

XLVI. Modo por que os partas combatiam

XLVI. Mantendo-se então um pouco afastados, os partas começaram a assetar de longe, ao mesmo tempo e por todos os lados, sem visar ponto algum preestabelecido, porque a situação dos romanos e as suas fileiras, exageradamente espessas, eram de molde a impedir que eles deixassem de matar a um que fosse. As flechas, desferidas com arcos grandes e fortes, partiam com força e impetuosidade admiráveis, produzindo enormes estragos. À vista disso, os romanos se viram em má situação, por serem obrigados a manter-se em suas fileiras, o que muito os afligia; para partir ao encontro dos inimigos, e atacá-los, achavam que, além de não poder dominá-los receberiam sério castigo, porque à medida que se aproximassem, os partas fugiriam, e na fuga não deixariam de atirar contra eles, porquanto, depois dos citas, eram os que tinham o bom senso de, procurando salvar-se sem demora, combater sem interrupção.

XLVII. Crasso destaca seu filho para expulsar os inimigos

XLVII. Foi o que supuseram os romanos, e suportaram, certos de que os partas, depois de desferirem todas as suas flechas, cessassem de combater e chegassem aos golpes manuais. Quando souberam da existência de numerosos camelos carregados de flechas, nos quais os flecheiros renovavam suas provisões, vendo que isto não teria fim Crasso começou a desencorajar-se, e mandou avisar seu filho que se esforçasse por alcançar e atacar os inimigos, antes que fosse por eles completamente envolvido, pois era principalmente do seu lado que uma das pontas inimigas mais se aproximava e procurava envolvê-lo pela retaguarda. Levando consigo mil e trezentos cavalos, entre os quais mil dos que foram mandados por César, e quinhentos flecheiros, com oito alferes de infantaria carregando escudos o mais próximo possível do lugar em que ele se achava, o jovem Crasso afastou-se um pouco, contornando, para ir atacar os que o importunavam. Vendo-o chegar, ou porque se achassem em um charco, como dizem alguns, ou porque usassem maldosamente do ardil para afastar o jovem o mais possível de seu pai, os inimigos montaram a cavalo e fugiram. Isto fez com que o jovem Crasso gritasse: ‘Eles não nos esperarão", e partisse atrás deles, o mesmo fazendo Censorino e Megabaco, aquele senador romano e grande orador, e este homem arrojado, forte e resoluto, ambos íntimos amigos de Crasso e mais ou menos da sua idade. Tendo a cavalaria partido em perseguição aos inimigos, os soldados de infantaria não quiseram ficar-lhes atrás, nem mostrar-se menos corajosos e menos esperançosos de bom sucesso, pois consideravam-nos já vencidos e nada mais terem a fazer do que aprisioná-los.

Puro engano, porém; porque, quando bem distantes, os que fingiam fugir voltaram de repente, e outros, em maior número, lançaram-se sobre eles. Os romanos fizeram alto, certos de que, vendo-os em número reduzido, os inimigos os atacassem subitamente. Eles, porém, os enfrentaram com uma primeira linha de guerreiros protegidos e armados de todas as peças, e espalharam-lhes ao redor, desordenadamente, os cavalos, que, correndo pela planície, revolveram profundamente os montes de areia, erguendo no ar tão densa nuvem de pó que os romanos mal podiam ver-se uns aos outros, e confabular. Concentrados em pequeno espaço, eram feridos a flechadas, morrendo lenta e tristemente, gritando de dor; e, revolvendo-se na areia, quebravam as flechas nas fendas, fazendo inúteis esforços por arrancá-las, pois elas mais se enterravam e aumentavam os ferimentos. Os que não morreram deste martírio tornaram-se incapazes da própria defesa.

XLVIII. Insucesso deste ataque

XLVIII. Tendo-lhes Públio Crasso pedido e exortado a combater disfarçados com outros soldados, eles mostraram-lhe as mãos crivadas de golpes de flechas, apesar de protegidos por escudos, e os pés igualmente feridos em parte, e em parte presos ao solo, o que os impedia de agir, fugir e mesmo defender-se. À vista disso, encorajando os seus cavaleiros, Públio Crasso foi chocar-se com os inimigos, carregando-os vigorosamente, mas com grande desvantagem tanto ofensiva como defensiva, porque ele e os seus homens combatiam com azagaias fracas e leves contra couraças de excelente aço ou de couro grosso. Os partas, ao contrário, faziam-no com grossos e pesados bordões, desferindo-os nos corpos nus ou levemente protegidos dos gauleses, que era nos que o jovem Crasso mais confiava, pois fizera com eles proezas admiráveis. Eles agarravam de mãos desarmadas os bordões dos partas, e, lutando corpo a corpo, jogavam-nos dos seus cavalos ao chão, deixando-os estendidos, sem se poderem mover, devido ao peso das suas peças defensivas. Gauleses havia que abandonavam seus cavalos e iam abrir o ventre daqueles dos inimigos a golpes de espada. Com a dor, os animais saltavam e corriam desesperadamente, pisando seus cavaleiros, até caírem mortos no lugar, de mistura com eles. Aconteceu, porém, que o calor e a sede começaram a castigar fortemente os gauleses, que não se achavam habituados a suportá-los, e que a maior parte dos seus cavalos, avançando desenfreadamente contra os partas, transpassaram-se por si mesmos em seus bordões, o que os obrigou a juntar-se à sua infantaria, com Públio Crasso, que já se achava muito mal, devido aos ferimentos recebidos. Seguindo para um monte de areia existente nas proximidades, amarraram no meio todos os cavalos, e cercaram o local com escudos, pensando, assim, ficar melhor amparados dos ataques dos bárbaros, mas aconteceu-lhes o contrário, porque, em região totalmente plana, os das primeiras fileiras de modo algum cobrem os que lhes ficam atrás. Ora, achando-se estes sempre em posição mais elevada, devido ao monte que aqueles contornavam, não podiam de modo algum escapar ao alvo dos inimigos, mas deviam estar sempre atentos, maldizendo a perseguição da sorte, que os fazia morrer sem demonstrar o seu valor aos inimigos.

XLIX. Morte de Públio Crasso. Toda a sua tropa é feita em postas

XLIX. Estavam, então, com Públio Crasso, dois gregos habitantes daquela zona, da cidade de Carres, chamados Jerônimo e Nicômaco, que aconselharam Públio Crasso a fugir com eles e acolher-se na cidade de Isqnes, pouco distante e partidária dos romanos. Ele, porém, não quis anuir, declarando-lhes que a sua pior morte seria abandonar, por medo, os que davam a vida por sua causa. Dito isto, aconselhou-os que procurassem salvar-se, e, abraçando-os despediuos. A seguir, não podendo utilizar-se da mão que lhe fora varada por uma flecha, ordenou ao seu escudeiro que lhe atravessasse o corpo com a espada. Dizem que Censorino fez o mesmo e que Megabaco suicidou-se por sua própria mão, sendo imitado por todas as pessoas de destaque da tropa. Quanto aos mais, transpondo o monte em sentido contrário, os partas mataram-nos com suas lanças e bordões, fazendo cerca de quinhentos prisioneiros. Isto feito, cortaram a cabeça de Públio Crasso, e dirigiram-se sem perda de tempo contra o pai, que já se achava naquele lugar, pois alguém levara-lhe a notícia que seu filho havia vencido e expulso os inimigos para bem longe, e que, os restantes destes, não poderiam opor-lhe grande resistência. Encorajado com tal notícia, e vendo suas forças unidas, ele afastou-as o mais possível numa encosta, na esperança de que seu filho não tardaria a voltar da caça. Públio, entretanto, vendo-se em perigo, havia destacado mensageiros para avisarem leu pai, a maior parte dos quais morreu às mãos dos bárbaros. Os últimos, escapando a custo, declararam-lhe que seu filho estaria irremediavelmente perdido, se ele não o socorresse sem demora, e com forças poderosas.

L. Exortação de Marcos Crasso a seu exército

L. Com tais notícias, Crasso foi acometido de duas grandes mágoas: a da apreensão, vendo-se em risco de perder tudo, e a do desejo, que o impelia a socorrer seu filho. Tendo perdido por completo o uso da razão, ele resolveu, por fim, ir com todas as suas forças em socorro de seu filho. Neste momento chegaram os inimigos, de volta da derrota infligida, com um ruído e gritos de vitória mais espantosos que nunca, ouvindo-se logo, nos arredores, soar e retumbar numerosos tamboris e tambores. A seguir os romanos perceberam perfeitamente grande vozearia, e os que carregavam a cabeça de Públio fincada na ponta de uma lança, chegando perto deles, mostraram-na, perguntando-lhes em ar de ultrajosa zombaria se eles sabiam de que casa era, e quem eram seus pais, porque não acreditavam que um moço tão valente e garboso fosse filho de um pai tão desprezível e cobarde como era Crasso. Isto produziu nos romanos maior abatimento e perda de coragem do que o faria o maior perigo que tivessem de vencer em todo o combate; e, ao invés de acender-lhes ódio que os induzisse à vingança, como seria de esperar, ocasionou-lhes tremor e medo, que os abateram completamente, embora Crasso se mostrasse mais esforçado neste acontecimento como nunca o fora em toda aquela guerra, porquanto, percorrendo as tendas a cavalo, gritava: "Só a mim, meus amigos, cabe prantear e suportar a dor desta triste perda. O renome e a glória de Roma, estão em vossas mãos, e continuarão invencíveis, se estiverdes a postos. Se tendes dó de mim, pela perda do meu esforçado e valente filho, demonstrai-o, convertendo-o em ódio contra vossos inimigos; fazei com que lhes custe caro a alegria que sentiram. Vingai-vos da sua crueldade, e não vos preocupeis com a minha infelicidade, pois os que aspiram a grandes feitos devem também sofrer alguma perda. Lúculo não derrotou Tigrano, nem Cipião a Antíoco, sem perda de sangue. Nossos antepassados perderam outrora mil navios, para consolidar a conquista da Sicília, e muitos exércitos e comandantes gerais na Itália, não deixando, por isso, de agir contra os que os haviam derrotado. O império romano não chegou à possança em que atualmente se acha por obra do acaso, e sim pelo trabalho e perseverança na adversidade, sem nunca esmorecer nem ceder aos perigos".

LI. A noite separa os combatentes

LI. Fazendo estas exortações aos soldados, para encorajá-los a agir, Crasso não percebeu que, ao contrário do que esperava, eles se rebelassem. De modo que, tendo ordenado que emitissem o grito de guerra, ele percebeu claramente que os seus homens estavam amedrontados, porque o clamor por eles proferido foi baixo, fraco e muito desigual, e que nem todos se manifestaram. O dos bárbaros, pelo contrário, foi prolongado, forte e entusiasta. Ao pôr-se mãos à obra, os arqueiros dos partas, a cavalo, envolvendo os romanos pelas alas, arremessaram-lhes ao flanco uma infinidade de flechas; mas os guerreiros, surrando-os frente a frente com seus grossos bordões, obrigaram-nos a reunir-se o mais possível, exceto alguns, que antes de serem mortos a flechadas, lançaram-se desesperadamente contra eles, sem causar-lhes grandes danos, sendo mortos a golpes de lança, tão violentos que às vezes atravessavam dois corpos de uma vez. Tendo combatido assim durante certo tempo, a chegada da noite fê-los retirar-se, alegando que assim procediam em atenção a Crasso, para que ele pudesse lamentar e chorar a morte de seu filho, e para que, avaliando melhor os acontecimentos, se entregasse voluntariamente, para sua salvação ao rei Arsaces, em lugar de ser levado a força.

LII. Consternação de Crasso

LII. Detendo-se perto dos romanos, os partas esperavam derrotá-los no dia seguinte. Os romanos, pelo contrário, tiveram uma péssima noite, não se preocupando em sepultar os cadáveres, nem cuidar dos ferimentos, sofrendo dores horríveis, e lastimando cada um a sua sorte adversa, porque foram prevenidos de que não se salvaria um sequer, se teimassem em permanecer ali até o dia seguinte. Por outro lado, se quisessem pôr-se a caminho durante a noite, por aquela imensa planície, os feridos dar-lhes-iam bastante trabalho, porque, levando o consigo, isto lhes retardaria muito a fuga; e, se os abandonassem, os seus gritos e clamores chamariam a atenção dos inimigos. Embora todos considerassem Crasso o principal causador de sua desgraça, procuraram-no, para ouvir-lhe a opinião a tal respeito. Ele, porém, isolara-se em lugar escuro, cobrindo a cabeça para não ver ninguém, dando ao povo exemplos de inconstância e de sorte adversa, mas aos homens sensatos e esclarecidos meios para conhecer os resultados a que o conduziram os maus conselhos e a sua desmedida ambição de dirigir tantos milhões de homens, dos quais se considerava o mais ínfimo, embora só o fizessem inferior a dois.

LIII. Os romanos retiram-se para a cidade de Carres

LIII. Por isso, acordaram Otávio, um dos seus tenentes, fazendo-o levantar-se, bem como Cássio, e foram reconfortá-lo. Vendo-o, porém, extraordinariamente aflito, os comandantes das legiões e os centuriões reuniram-se em conselho resolvendo não permanecer mais ali, e ordenaram a partida do exército sem o menor ruído e sem toques de cornetas. Nem bem os doentes e feridos, que não podiam acompanhá-los, perceberam que iam ser abandonados, começaram a gritar de tal maneira que puseram todo o acampamento em reboliço, enchendo-o de prantos e lamurias, o que fez com que os que haviam partido voltassem assustados, na suposição de serem os inimigos que os tornavam a atacar. Assim, apreensivos a todo instante, e dispondo-se para o combate, acomodando os feridos em carruagens ou retirando-os das mesmas, detiveram-se no lugar, exceto trezentos soldados de cavalaria ligeira, que chegaram à cidade de Carres à meia-noite. Inácio, que os conduzia, falou em latim aos guardas que vigiavam a muralha; e, obtendo a resposta devida, encarregou-os de dizer ao governador Copônio que Crasso tivera grande combate com os partas. Nada mais adiantou, nem disse quem era, e cavalgou tanto que chegou à ponte que Crasso mandara construir. Deste modo conseguiu salvar-se com toda a sua tropa, mas ficou envergonhadíssimo de haver abandonado seu comandante. Todavia, com o que pediu aos vigias que dissessem a Copônio, ainda foi útil a Crasso; porque, percebendo que nada de bom denotavam as poucas e confusas palavras que lhe mandara dizer, o governador ordenou aos seus soldados que tomassem as armas, e, nem bem soube que Crasso se dispusera a voltar, foi-lhe ao encontro, e levou-o com seu exército para a cidade.

LIV. Varguntino, tenente de Crasso, é derrotado no caminho com sua tropa, pelos partas

LIV. Os partas bem perceberam a retirada dos romanos, mas não quiseram molestá-los durante a noite. Na manhã seguinte, entrando no acampamento, mataram todos os que ali ainda se achavam, cerca de quatro mil, além de muitos outros, dispersos e desgarrados, que encontraram nas imediações, entre os quais Barguntino, um dos tenentes de Crasso. Barguntino, que se desviara do exército durante a noite, com quatro bandeiras mais ou menos numerosas, errando o caminho foi ter a um monte, onde os partas o sitiaram e derrotaram, apesar da heróica resistência que lhes foi oposta. Vinte dos seus homens, porém, empunhando suas espadas, lançaram-se cabisbaixos entre os partas, que pasmos da sua ousadia, deixaram-nos passar e ir para Carres, sem lhes fazer o menor mal.

LV. Astúcia de Surena, para saber se Crasso estava em Carres

LV. Entrementes chega a Surena a falsa notícia que Crasso e os principais elementos de sua hoste haviam fugido, e que a multidão afluída à cidade de Carres era constituída de elementos em que não havia um homem de destaque. Duvidando que tal houvesse acontecido, e desejando certificar-se da verdade, para saber se devia sitiar a cidade de Carres ou ir para junto de Crasso, Surena mandou um dos seus intérpretes às muralhas da cidade, ordenando-lhe que dissesse a Crasso e a Cássio que Surena desejava parlamentar com eles. O intérprete cumpriu a ordem, e o convite foi aceito. Pouco depois chegaram do acampamento dos bárbaros alguns soldados árabes, que conheciam Crasso e Cássio de vista. Vendo Cássio na muralha, estes árabes disseram-lhe que Surena ficara bastante satisfeito em poder ter um encontro com eles e fazê-los retirar-se livres de perigo, como bons amigos de seu senhor, desde que eles deixassem ao rei dos partas a Mesopotâmia, o que consideravam vantajoso para ambas as partes, ao invés de lançarem-se à luta. Cássio achou bom o início do encontro, e combinou marcarem dia e local do encontro de Crasso com Surena. Os árabes comprometeram-se a fazê-lo, e partiram.

LVI. Crasso toma Andrômaco como guia de sua retirada, sendo por ele atraiçoado

LVI. Ouvindo isto, Surena ficou satisfeitíssimo de tê-los em lugar onde os podia cercar. No dia seguinte levou o seu exército diante da cidade, de onde os partas dirigiram mil insultos aos romanos, dizendo-lhes que precisavam entregar-lhes Crasso e Cássio amarrados de pés e mãos, se desejavam gozar de alguma benevolência ou de algum ajuste. Os romanos ficaram muito aborrecidos com este embuste, e fizeram ver a Crasso que não deviam mais contar com a prolongada e inútil esperança do auxílio dos armênios, opinando todos pela fuga, sem que pessoa alguma dos carrenianos o soubesse antes da hora da partida. Entretanto o próprio Crasso contou-o a Andrômaco, o mais desleal de quantos havia na cidade, e que, além disso, escolhera por seu guia. Este pérfido Andrômaco pôs os inimigos ao par da resolução dos romanos, com todos os pormenores. Não costumando os partas combater à noite, sendo por isso difícil induzi-los ao ataque, Andrômaco, receoso que os romanos avançassem demasiado, pondo-se fora do alcance dos inimigos, levou-os maldosamente ora para um lado, ora para outro, e, metendo-se por um caminho repleto de enormes buracos, que obrigavam a dar muitas e arriscadas voltas para transpo-los, lançou-os finalmente em um profundo charco. Isto fez com que alguns desconfiassem da lealdade de Andrômaco e desistissem de prosseguir. Cássio, entre outros, resolveu voltar para Caries; e, como os seus guias, que eram árabes, o aconselhassem a permanecer ali até a lua transpor o signo do Escorpião, ele respondeu-lhes: "Receio muito mais o do Sagitário". E seguiu apressadamente para a Assíria, com quinhentos soldados de cavalaria. Outros, possuidores de guias fiéis, alcançaram uma região montanhosa, denominada Sinaca, acolhendo-se em lugar de segurança antes de despontar o dia. Seriam cinco mil ao todo, guiados por Otávio, um homem de bem.

LVII. Surena faz uma proposta a Crasso

LVII. O dia surpreendeu Crasso nos penosos caminhos, nos charcos a que o havia propositalmente levado o traidor Andrômaco, com quatro expedições de infantaria, dotadas de escudos, algumas cavalarias, e cinco sargentos que lhes iam à frente, armados de machados e vergas. Tendo já os inimigos à vista, a custo e com muito trabalho ele retomou o caminho certo, faltando-lhe apenas três quartos de légua para alcançar Otávio. Este, vendo-o em perigo num outeiro dos montes Sinacos, correu em seu auxílio, com uns poucos soldados que o acompanharam espontaneamente, no que foram a seguir imitados pelos mais, que consideraram cobardia de sua parte esquivar-se à luta. Atacando os partas, fizeram-nos recuar para atrás do outeiro; e, envolvendo completamente Crasso, defenderam-no com seus escudos, declarando, magnânimos, que flecha alguma dos partas atingiria a pessoa de seu comandante antes de os matar a todos, e que lutariam em sua defesa até o último suspiro.

Notando que os partas começavam a esmorecer, e que, se a noite os surpreendesse e os romanos conseguissem transpor as altas montanhas, impossível seria depois lê-los às mãos, Surena resolveu enganar Crasso, valendo-se de um ardil: mandou secretamente libertar alguns prisioneiros, ante os quais declarou que o rei dos partas não desejava manter guerra eterna contra os romanos, e sim, pelo contrário, conquistar-lhes a amizade, fazendo-lhes a concessão especial de tratar Crasso humanamente. Para isso, ele mandou chamar todos os seus guerreiros, e, aproximando-se pacificamente dos romanos, com os principais chefes do seu exército, estendeu a mão direita e convidou Crasso a parlamentar com ele, declarando que, se os romanos experimentaram as forças e a bravura de seu rei, fora a seu pesar, porquanto nada mais fizera do que defender-se; mas que, desejando espontaneamente demonstrar-lhes a sua bondade, clemência e humanidade, estava disposto a fazer com eles as pazes e deixá-los seguir para onde quisessem.

LVIII. Ele aceita, contra a vontade, obrigado por seu exército

LVIII. Todos os romanos ouviram satisfeitos a declaração de Surena. Crasso, porém, que diversas vezes deixara-se levar por suas lamurias e falsidades, não vendo motivo para fazê-los mudar tão de repente de atitude, não quis agir sem ouvir seus amigos. Os soldados, porém, puseram-se a gritai que ele devia aceitar as pazes, dirigindo-lhe insultos grosseiros e declarando que ele queria expo-los à matança, mas não tinha coragem ao menos para ir falar com os inimigos desarmados. Crasso procurou acalmá-los por meio de súplicas, fazendo-lhes ver que, se eles tivessem paciência durante o resto do dia, ao chegar a noite poderiam ir satisfeitos e livres de perigo para montanhas e lugares de difícil acesso, onde os inimigos não chegariam. E, indicando-lhes o caminho com o dedo, incitou-os a não desanimar nem perder a esperança de salvação, visto já se acharem bem perto. Vendo, afinal, que eles se rebelavam e o ameaçavam se não fosse, brandindo furiosos suas armas, e certo de ser por eles ultrajado, Crasso resolveu ir ter com os inimigos, tendo antes proferido estas palavras: "Otávio Petrônio e senhores romanos que tendes postos neste exército. Sois testemunhas de que me obrigam a ir, contra a vontade, vergonhosa e violentamente, onde vou. Não obstante, se escapardes deste perigo, suplico-vos que, onde quer que vos acheis, digais sempre que Crasso morreu enganado e assaltado por seus inimigos, e nunca por haver sido levado e entregue aos bárbaros por seus cidadãos, como sou".

LIX. Ele é morto

LIX. Otávio desceu logo do monte, mas Crasso despediu os sargentos que o acompanhavam. Da parte dos bárbaros, os primeiros que lhe foram ao encontro foram dois semi-gregos que, apeando cavalos, prestaram-lhe continência, e, saudando o em grego, pediram-lhe que mandasse alguns dos seus homens adiante, para certificar-se de que Surena e os que o acompanhavam estavam desarmados. Crasso respondeu-lhes que, se tivesse algum apego ou amor à vida, nunca teria ido colocar-se em suas mãos. Todavia mandou à frente dois irmãos chamados Rocios, para saber com quantas pessoas ele iria encontrar-se e com que fim. Nem bem estes dois irmãos se aproximaram de Surena, ele os fez prender, e prosseguiu caminho a cavalo, com todos os principais personagens do seu exército. Ao chegar junto de Crasso, disse-lhe: "Que é isso!? Um comandante geral do povo romano a pé, e todos nós a cavalo!?" E ordenou aos seus homens que lhe fornecessem um animal. Crasso respondeu-lhe que, tratando-se de um encontro para parlamentar, em lugar determinado, cada um seguia o costume de sua terra. Surena declarou-lhe então que o ajuste já havia sido realizado entre o rei Hirodes e os romanos, mas que ele Crasso precisava acompanhá-lo até o rio, para redigirem os artigos, visto os romanos nunca se lembrarem das condições estabelecidas. E estendeu-lhe a mão direita. Desejando Crasso mandar comprar um cavalo, Surena disse-lhe: "Não é preciso, pois o rei te faz presente deste". E deu-lhe um com arnês dourado, no qual os escudeiros o montaram às pressas e puseram-se a acossá-lo, para fazê-lo correr desabaladamente. Vendo tal, Otávio freou o animal, ajudado por Petrônio, comandante de mil soldados de infanta ria, tendo os mais estabelecido verdadeira luta com os acossadores. Otávio desembainhou então a espada e matou o palafreneiro de um dos senhores bárbaros, mas foi morto por outro, pelas costas. Petrônio estava sem escudo; e, tendo recebido um golpe na couraça, saltou do cavalo sem ser ferido. Um parta chamado Pomaxetres matou Crasso. Dizem haver sido um outro o assassino, e que, vendo o cadáver estendido, Pomaxetres cortou-lhe a cabeça e a mão.

LX. O resto do exército perece quase todo

LX. Tudo isto, entretanto, não passa de suposição, pois, quanto aos que ah se achavam, uns foram mortos no local, lutando em torno de Crasso, e outros salvaram-se às pressas no outeiro. Os partas acompanharam-nos, dizendo-lhes que Crasso sofrera o castigo merecido. Por fim, Surena ordenou aos romanos que descessem sem receio, porque nada de mal lhes aconteceria. Alguns atenderam, entregando-se às mãos dos inimigos; outros, porém, fugiram à noite, sendo poucos os que conseguiram salvar-se, porque, perseguidos e caçados pelos árabes, foram passados a fio de espada. Houve nesta luta cerca de vinte mil mortos e uns dez mil prisioneiros. A seguir Surena mandou a cabeça e a mão de Crasso ao rei Hirodes, na Armênia, e fez constar na cidade de Selêucia que levava Crasso vivo, com enorme comitiva, que ele denominava, com ar de mofa, o seu triunfo, por haver, entre os prisioneiros, um, chamado Caio Paciano, muito parecido com Crasso, que eles vestiram de mulher, à moda bárbara, habituando-o a responder quando o chamavam Crasso ou senhor comandante. Montaram-no a cavalo assim vestido, tendo à sua frente trombeteiros, e sargentos montados em camelos, carregando feixes de vergas repletas de escrotos e de machados, tendo presas cabeças de romanos decepadas de fresco. Atrás dele seguiam meretrizes e charameleiras seleucianas, proferindo ditos picantes e gracejos ofensivos, como menosprezo à cobardia e fraqueza efeminadas de Crasso.

LXI. Muitos reis partas nascidos de cortesãs milesianas

LXI. Além desta manifestação pública, Surena reuniu em assembleia o Senado de Selêucia, apresentando-lhes os livros imorais de Aristides, intitulados os Milesíacos, que não eram falsos, pois foram encontrados e apreendidos na bagagem do romano chamado Rústio, dando a Surena oportunidade para zombar ultrajosa e grosseiramente dos costumes dos romanos, dizendo-os tão desordenados que mesmo na guerra não deixavam de ler e de praticar tais indignidades. O Senado de Selêucia achou então que Esopo tivera carradas de razão, quando disse que todo homem carrega um alforge ao pescoço, colocando no compartimento da frente as faltas dos outros e no detrás as suas, porquanto exatamente isto fizera Surena: colocara no da frente o livro das devassidões milesíacas, e no detrás longa série de prazeres e voluptuosidades partanas, levando após si numerosas carretas repletas de concubinas, de modo a tornar o seu exército semelhante a um bando de víboras e de musaranhos. Sim, porque, o que se via à frente, lanças, azagaias, arcos e cavalos, era demasiado e assustador; mas o que se seguia era um bloco de meretrizes, de instrumentos musicais, danças, cantigas e banquetes dissolutos com prostitutas, a noite inteira. Não digo que Rústio não merecesse censura; mas os partas foram injustos em reprovar os livros imorais milesianos, visto terem tido vários reis do sangue real dos arsácidas oriundos de cortesãs jónicas e milesianas.

LXII. A cabeça de Crasso levada ao rei Hirodes

LXII. Enquanto isto se passava, Hirodes firmava aliança com Artabazo, rei da Armênia, casando sua irmã com Pacoro, filho deste, e realizando ambos grandes banquetes e jantares, nos quais eram recitadas poesias gregas, idioma conhecido de Hirodes e no qual Artabazo era tão versado que escreveu algumas tragédias, orações e histórias, ainda em voga em nossos dias. Na noite em que a cabeça de Crasso foi para ali levada, as mesas já haviam sido tiradas, e ainda ali se achava o trágico Jasão, natural de Trales, que recitou a passagem da tragédia das Bacantes, de Eurípides, em que fala da infelicidade de Ágave, que decapitou seu filho. No momento em que todos se compraziam em ouvi-lo, Silace entrou na sala, fez a mesura devida ao rei, e apresentou a cabeça de Crasso à assistência, que foi recebida com palmas e gritos de alegria. Os copeiros do rei, por sua ordem, puseram então Silace à mesa, e Jasão, fazendo as vezes de um dos bailarinos de Penteo, se pôs a dançar com a cabeça de Crasso às mãos; e, contrariando as Bacantes muito enciumadas, começou a dizer estes versos, com uma expressão, uma entoação e voz de pessoa possessa de alegria e posta fora de si:

Nós trazemos ao paço
Um touro, por golpe mortal
Nosso há pouco atingido
Na montanha, e morto.
Foi feliz empresa A caça de tal presa.

Isto agradou imenso a assistência toda, sendo depois cantados os versos que seguem, em que o coro pergunta e responde alternadamente:

Coro
Quem o matou, na caçada?
Ágave
A honra é devida a mim.

LXIII. Como a morte de Crasso foi vingada a seguir

LXIII. Ouvindo estas palavras Pomaxetres ergueu-se logo da mesa em que se achava e foi buscar a cabeça, dando a entender que a ele e não ao artista cabia o direito de proferir tais palavras de verdade. O rei gostou desta rusga, e deu a Pomaxetres o presente que é hábito do país conceder em tais casos; Jasão recebeu a quantia de seiscentos escudos. Foi este o desfecho do empreendimento e da viagem de Crasso, que mais parece o fim de uma tragédia. A vingança, porém, da crueldade de Hirodes, e da falsa deslealdade de Surena, recaiu afinal sobre as cabeças de ambos, e de maneira muito merecida. Hirodes mandou matar Surena, de inveja de sua glória, e, depois de haver perdido seu filho Pacoro, numa luta em que os romanos o derrotaram, foi acometido de uma moléstia que se transformou em hidropisia. Frates, seu segundo filho, desejando prolongar-lhe a vida, ministrou-lhe sumo de acônito, que produziu ótimo efeito. Vendo que seu pai melhorava mais cedo do que era de esperar, Frates estrangulou-o

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