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Vidas Paralelas: Sertório, de Plutarco

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Quintus Sertorius. Gravura em metal aço original desenhada por Geffroy, gravada por Delanoix. Aquarelada à mão (colorido de época). 1852

Sobre a fonte

Quinto Sertório (c. 122-72 a.C.) foi um general e político romano. Tomou o lado de Caio Mário na guerra civil que opôs o partido deste ao de Sula. Sua família era importante em Nussa, uma cidade dos sabinos. Foi assassinado num banquete pelo seu lugar-tenente Perperna e por outros dos seus oficiais. A biografia de Sertório faz parte de uma série de biografias escritas por Plutarco (c. 46-120), um historiador grego que viveu no Império Romano. Na série Vidas Paralelas, o autor compara vários nomes da história grega com seus equivalentes romanos. Sertório foi comparado ao general Euménio de Cárdia.

I. Homens do mesmo nome sujeitos a acontecimentos semelhantes

I. Não é de admirar que, em tempo ilimitado, com a mudança da sorte, frequente e acidentalmente sobrevenham danos muito semelhantes, seja porque, não havendo número preestabelecido de acontecimentos, a sorte tem material abundante para produzir casos semelhantes, ou porque, em número determinado, nos casos humanos, eles devam surgir frequentemente, para que produzam os devidos efeitos, quando provocados pelos mesmos motivos e pelos mesmos meios. Há, infelizmente, quem se satisfaz em coligir tais casos de infortúnio, fortuitos, que viram ou ouviram ser muito semelhantes às coisas deliberadamente feitas e favoráveis, como os que seguem: dois homens chamados Átis, um originário da Síria e outro da Arcádia, foram mortos por um javali; dos dois Acteões, um foi estraçalhado por seus cães e outro por seus afeiçoados; dos dois Cipiões, os cartagineses foram primeiro vencidos por um e depois completamente arruinados e destruídos por outro; a cidade de Troia foi tomada a primeira vez por Hércules, devido ao cavalo que Laomedão lhe prometera, a segunda vez por Agamenon, por causa do grande cavalo de madeira, e a terceira por Caridemo, devido a um cavalo que tombou à porta, impedindo que os troianos a pudessem fechar a tempo; duas cidades com nomes de plantas odoríferas, los e Esmirna, significando uma a violeta e a outra a mirra, dão a entender que o poeta Homero nasceu numa e morreu na outra. Pode-se acrescentar aqui, que, dos comandantes antigos, os mais belicosos, e que maiores proezas realizaram com sagacidade e engenho, eram zarolhos, como Filipe, Antígono, Aníbal e Sertório, de quem nos ocupamos no momento. Em verdade, Sertório absteve-se mais de mulheres que Filipe, foi mais fiel a seus amigos que Antígono, mais humano com seus inimigos que Aníbal; não era inferior a nenhum deles em capacidade, mas era-o a todos em favores da sorte sempre adversa. Embora fossem eles grandes personagens, ele revelou-se tão experiente como Metelo, tão valente como Pompeu e tão sem sorte como Sila. Expulso de sua terra, ádvena em província estrangeira, e governando uma nação bárbara, ele sustentou durante algum tempo a guerra contra o poderio do povo romano. Creio que o único que o pode razoavelmente igualar, de todos os comandantes gregos, é Eumene, o Cardiano, porque ambos souberam dirigir, ambos foram valentes e arrojados na guerra, ambos foram expulsos de sua terra, ambos foram comandantes de estrangeiros e violenta e atrozmente mortos a traição por quem eles fizeram derrotar seus inimigos.

II. Primeiras campanhas de Sertório nas guerras contra os cimbros e os teutões

II. A casa de Quinto Sertório era muito distinta na cidade de Núrsia, terra dos sabinos. Era muito criança ainda, quando seu pai faleceu, sendo condignamente criado por sua mãe Réa, que ele sempre amou e venerou ao extremo. De início ele dedicou-se a patrocinar litígios de pouca importância, e, ainda jovem foi a Roma, fiado na sua eloquência. A homenagem de que foi alvo, e a reputação que depois adquiriu por tudo o que realizou, fizeram-no voltar ao estudo, e a sua ambição induziu-o às armas e à guerra. Nesta, sua primeira prova foi realizada quando os cimbros e os teutões invadiram a Gália com grandes forças, vencendo os romanos em combate, que se achavam sob o comando de um Cipião. Vendo seu cavalo morto, e sentindo-se ferido, Sertório lançou-se ao rio Rosno, que conseguiu atravessar a nado, com sua couraça e sua tarja às costas, rompendo a impetuosidade das águas com ânimo bem disposto e resoluto. A segunda vez que os bárbaros voltaram com inúmeros combatentes, ferozes e ameaçadores, os romanos ficaram tão apavorados que se admiraram de vê-lo continuar a seu lado e obedecer seu comandante, e louvaram-lhe a coragem. Mário era então o chefe do exército romano, e Sertório prontificou-se a ir sondar o acampamento inimigo. Vestiu-se de gaulês, aprendeu o palavreado mais usado pelos bárbaros na sua linguagem comum, e foi meter-se entre eles, conseguindo ver e ouvir muito mais do que desejava. Ao voltar relatou tudo a Mário, que louvou-o como merecia. Durante toda aquela guerra ele praticou tantos atos de valia e de arrojo, que seu comandante, em sinal de estima, consideração e confiança, deu-lhe as ocupações de maior responsabilidade.

III. Façanhas de Sertório na Espanha, sob o comando de Dídio

III. Por isso, depois desta guerra dos cimbros e dos teutões ele foi mandado à Espanha, às ordens do pretor Dídio, comandando mil soldados de infantaria, que ele fez invernar na cidade de Castulo, nos confins dos celtibenanos, onde os soldados, encontrando víveres em abundância, não faziam outra coisa senão embriagar-se, maltratar e praticar mil insolências, quando neste estado, a ponto dos bárbaros da cidade, enojadíssimos, mandarem certa noite pedir auxílio aos girisenianos, seus vizinhos mais próximos, e percorrerem os alojamentos dos romanos, matando boa porção deles. Sabedor do acontecido, Sertório saiu logo da cidade com alguns dos seus homens, e, reunindo os que saíam apressados da fila, deu a volta à cidade; e, achando ainda aberta a porta por onde os girisenianos haviam entrado, entrou. Mas não procedeu como eles; colocou bons guardas às portas e em todos os lugares da cidade, e fez passar a fio da espada todos os que ah havia, em idade de manejar armas. Executada a vingança, ele ordenou-lhes que despissem suas roupas costumeiras e descansassem as armas, substituindo umas e outras pelas dos bárbaros que haviam matado, e o acompanhassem à cidade dos girisenianos, de onde aqueles saíram e os atacaram à noite, de surpresa. Ao ver de longe os trajes e as armas dos seus soldados, certos que fossem eles, os bárbaros abriram suas portas, saindo grande quantidade de povo ao seu encontro, a fim de abraçar parentes e amigos, por haverem cumprido satisfatoriamente o seu dever. Deste modo os romanos mataram grande número de pessoas próximo às portas da cidade, e as mais, que se entregaram a Sertório, foram por ele vendidas.

IV. Coragem de Sertório na Guerra Social. Ele perde um olho no combate

IV. Com isto Sertório conquistou renome em toda a Espanha, e, ao regressar a Roma, foi logo eleito questor ou tesoureiro-geral da Gália, situada além dos montes que rodeiam o Pó. O que foi de grande valia para Roma, em luta com os povos confederados da Itália, na chamada guerra Social, na qual ele foi encarregado de arregimentar gente para a luta e de mandar fabricar armas. No que ele portou-se tão bem, e satisfez de tal maneira e a tempo, comparado com a indolência de outros jovens, que foi reputado homem de ação, capaz de praticar um dia grandes e extraordinárias ações. Tendo alcançado o posto de comandante, ele não deixou, por isso, de arriscar-se a tudo como simples soldado; fez, de próprio punho, armas admiráveis e muito perigosas, e acabou perdendo um olho em combate. Longe de envergonhar-se disso, ele vangloriava-se e muito, pois os outros, dizia, quase sempre deixavam em casa as provas das suas façanhas, isto é, correntes, aljavas, azagaias e coroas recebidas de seus comandantes, como testemunho do seu valor. Ele, entretanto, para onde quer que fosse, ostentava sempre a sua insígnia, sendo alvo dos maiores e merecidos elogios por parte dos que lhe examinavam o defeito. O povo não deixou de prestar-lhe as homenagens devidas, quando ele entrou no teatro, recebendo-o com grande salva de palmas e ovações, coisa que os romanos só faziam aos comandantes mais velhos e que se tornassem dignos por seus grandes feitos.

V. Ele declara-se favorável a Mário e Cina contra Sila

V. Tendo ele pleiteado o cargo de tribuno do povo, foi recusado e apoucado, devido às maquinações de Sila, do que parece haver se originado o ódio e a malquerença que ele depois consagrou a Sila. Depois que Mário se retraiu, vencido por Sila, e que este deixou a Itália, para ir guerrear Mitrídates, Otávio, um dos dois cônsules, passou a apoiar o partido e os aliados de Sila, e o outro, Cina, que só procurava novidades, uniu-se ao de Mário, que se estava aniquilando, a fim de reavivá-lo, o mesmo fazendo Sertório, por considerar Otávio um homem muito indolente, e saber que ele não confiava nos amigos de Mário. Houve um cruel encontro entre eles, na grande praça da cidade, sendo Otávio vencedor. Cina e Sertório conseguiram salvar-se, fugindo, tendo perdido na luta uns dez mil homens, mas conseguiram reunir e adestrar todos os guerreiros que havia espalhados pela Itália, e em pouco tempo preencher as perdas sofridas, dispondo-se a atacar novamente Otávio.

VI. Mário junta-se a Cina e Sertório

VI. Prevenido disto, Mário fez-se logo ao mar; e, regressando da África à Itália, pôs-se às ordens de Cina, como soldado particular de seu comandante e cônsul. Todos foram concordes em recebê-lo, exceto Sertório, que se opôs tenazmente, possivelmente receoso que a sua autoridade ficasse diminuída, se Cina achegasse a si outro comandante de maior dignidade, ou por temer a severidade e violência de Mário, que nunca perdoava. Expondo as suas razoes, declarou que, não sabendo frear o seu ódio, e ultrapassando os limites da razão, ele estragaria tudo, vingando-se dos inimigos, no caso de serem vitoriosas as suas forças. Disse mais, que deviam colocar as suas obrigações acima de tudo; e que, recebendo Mário, ele lhes arrebataria toda a glória de haverem dado fim à guerra, tornando-se um companheiro incomodo e desleal. Cina não contestou as declarações de Sertório; pelo contrário, confirmouas, e disse sentir-se envergonhado, pois não sabia como recusar nem despedir Mário, depois de havê-lo mandado vir propositalmente, para confiar-lhe parte da direção da guerra. Sertório replicou então: "Eu pensei que Mário tivesse vindo espontaneamente, razão por que achei mais acertado aconselhar a sua rejeição. Já que o mandaste vir fizeste mal em consultar se devias ou não recebê-lo. Tendo atendido ao teu chamado, estás na obrigação de dar-lhe toda a atenção, sem hesitar nem discutir".

VII. Sertório manda matar quatro mil escravos em seu acampamento, dos quais Mário se valia para praticar toda sorte de crueldades

VII. Mário foi convocado. À sua chegada dividiram o exército em três porções e atacaram seus inimigos por todos os lados, tornando-se vitoriosos. As crueldades e desumanidades praticadas por Cina e Mário, nesta luta, foram de tal espécie, que os romanos taxaram de brincadeiras os males que haviam sofrido durante toda a guerra, comparados às calamidades e misérias do momento. Sertório, que nunca mandara matar ninguém por vingança ou ódio, nem praticou qualquer afronta quando vencedor, sofria muito com as crueldades cometidas por Mário. E, quando conseguia entender-se com Cina em caráter reservado, procurava acalmá-lo o mais possível, e torná-lo, com suas súplicas, mais humano. Mário, que, nesta guerra, se valera de numerosos escravos, na falta de outros elementos, para mantê-los ainda como satélites e instrumentos de sua crueldade tirânica, e tê-los como guardas fiéis e seguros, fazia-os tornarem-se ricos e opulentos com o que lhes fornecia ou lhes mandava dar, e com o que violentamente e sem qualquer autorização arrancavam aos seus senhores, matando-os, e às mulheres e filhos. Farto de tais atrocidades, Sertório mandou matá-los no acampamento em que se acolheram, num total aproximado de quatro mil.

VIII. Falecendo o velho Mário, Cina logo depois foi morto, e o jovem Mário usurpou o consulado, sob protesto de Sertório e contra as leis de Roma. Carbo, Cipião e Norbano, vendidos e traídos por sua gente, e graças à covardia dos comandantes, foram derrotados por Sila, no seu regresso da Grécia. Considerando que a sua presença não melhoraria a situação, que ia de mal a pior, por serem mais fortes os possuidores de menor capacidade e juízo; vendo Sila assentar acampamento próximo ao de Cipião, e agradá-lo, dando-lhe esperança de uma boa paz, enquanto às ocultas lhe subornava os adeptos, coisa em que Cipião nunca quis acreditar, embora ele lhe fizesse ver tudo claramente; certo de que os seus afazeres em Roma não poderiam mais correr bem, Sertório partiu para a Espanha, esperançado de conseguir o governo daquela província e fazer dela o refúgio dos seus partidários, quando expulsos e banidos de sua terra. Durante a viagem ele foi atormentado por um tempo muito molesto e mau.

IX. Ele torna-se chefe; conduta que o faz querido

IX. Passando por uma região montanhosa, os bárbaros, habitantes do lugar, exigiram-lhe tributo e salário, para deixá-lo passar por suas terras. Isto irritou os que o acompanhavam, por acharem vergonhoso e indigno um procônsul do povo romano pagar tributo aos péssimos bárbaros. Sertório, porém, não se associou ao seu modo de ver, e respondeu-lhes que o que ele comprava era o tempo, coisa preciosíssima a quem deseja realizar grandes feitos. E deu dinheiro aos bárbaros. Chegando à Espanha, que encontrou bem povoada, e com numerosos moços em idade para o manejo das armas, notou ali acentuada aversão a toda espécie de governo, devido à avareza, insolência e arrogância com que sempre foram tratados pelos governadores, geralmente procedentes de Roma. Assim, antes do mais ele esforçou-se em conquistar a estima de todos os habitantes do país, visitando os nobres e tratando-os familiarmente, e distribuindo pelo povo parte dos seus subsídios e dos produtos de sua lavoura. O que o tornou mais querido de todos foi havê-lo desobrigado de alojar guerreiros e de receber guarnições nas cidades, forçando sua gente a armar tendas e barracas para seu abrigo nos subúrbios das boas cidades, para ali passar o inverno, sendo o primeiro a erguer ah o seu pavilhão, e dormir. Contudo, ele não satisfez em toda linha à vontade dos bárbaros, para conquistar-lhes as boas graças, porquanto pôs em armas todos os burgueses romanos residentes na Espanha, em idade do serviço militar, e mandou executar em diversos lugares toda espécie de engenhos e máquinas de guerra, e grande número de galeras. Manteve as cidades sob seu domínio, mostrando-se clemente e humano nos períodos de paz, mas temível contra os inimigos durante a guerra.

X. Ele é obrigado a deixar a Espanha; ele retorna

X. Cientificado que Sila se apoderara da cidade de Roma, e que os partidos e a aliança de Mário e Carbo foram completamente aniquilados, temendo que não tardassem a mandar algum comandante com grande e poderoso exército contra ele, fez Júlio Salinátor ocupar os desfiladeiros dos montes Pireneus, com seis mil soldados de infantaria bem armados. Pouco depois ali chegou. Caio Ânio, mandado por Sila, que, vendo não ser possível vencer Salinátor, colocado em lugar tão vantajoso, deteve-se ao pé da montanha, sem saber como agir.

Infelizmente, um calfúrnio chamado Lanário matou Salinátor a traição. Os soldados abandonaram os cimos das montanhas, e Ânio pôde assim expulsá-los que procuraram opor-se à sua passagem. Não se julgando em condição de combatê-lo, Sertório retirou-se com três mil homens para a nova cidade de Cartago, de onde fez-se ao mar, chegou à África e foi aportar na costa dos maurusianos, onde seus homens logo desembarcaram, para se ver livres da água, espalhando-se sem a menor cautela por toda parte. Os bárbaros lançaram-se sobre eles, matando grande quantidade, de modo que Sertório foi obrigado a reembarcar e a retomar o rumo da Espanha, onde não pôde abordar, porque o repeliram. Por isso ele se pôs a singrar com algumas fustas de corsários cilicianos para a ilha Pitiosa, onde desembarcou, apesar da guarnição ah destacada por Ânio, que ele subjugou. Dias depois Ânio foi pessoalmente para ali, com bom número de navios e cinco mil combatentes. Sertório resolveu esperá-lo e atacá-lo por mar, embora seus navios fossem pequenos e leves, próprios para pequenos percursos e não para combate. Mas o vento do Ocidente soprou impetuoso, revoltando de tal modo o mar que grande parte dos navios foi lançada de encontro às praias rochosas, e destruída, e ele, com reduzido número de navios, repelido da terra pelos inimigos e do mar pela tormenta, foi obrigado a ancorar em alto mar durante dez dias, lutando perigosa e tenazmente contra as ondas e os ventos, que foram durante tal tempo muito impetuosos. Renascida a calma, ele levantou âncora e foi aportar em algumas ilhotas desertas e sem água, dispersas naquela região. Ao partir dali, atravessou o estreito de Gibraltar, e, desviando para a direita, desembarcou na cesta da Espanha que dá para o Grande Oceano, pouco acima do rio Bétis, que, desaguando no Oceano Atlântico, antigamente dava nome àquela região da Espanha, então conhecida por Espanha Bética.

XI. Descrição das Ilhas Felizes

XI. Lá o encontraram marinheiros recém-vindos das ilhas do Oceano Atlântico, que os antigos denominavam Ilhas Felizes. São duas ilhas próximas, separadas por um pequeno braço de mar, distantes da costa da África cerca de cento e vinte e cinco léguas. Pouco chove ali, mas geralmente sopra um vento fresco e agradável, carregado de orvalho, que fertiliza a terra, fazendo-a produzir quanto o homem plante e semeie, além do que brota espontaneamente, fornecendo-lhe quanto necessite para o seu sustento, sem sofrer privação de espécie alguma.

O ar é agradável e sereno, completamente inofensivo, sendo as estações do ano muito temperadas. Suas variações nunca são excessivas, porque os ventos que sopram da costa para o interior, ventos do Norte e do Oriente, perdem a força durante o trajeto, antes de chegar. Os ventos marítimos provenientes do Sul e do Poente, algumas vezes levam para ali chuvas fracas e passageiras, que geralmente enchem o ar de uma umidade tão útil a tudo quanto a terra produz, que os bárbaros adquiriram a crença de se acharem ali os campos Elísios e a morada das almas bem-aventuradas, tão celebradas pelo poeta Homero.

XII. Sertório passa para a África, e faz guerra a Ascálio

XII. Sabedor disso, Sertório manifestou grande desejo de fixar residência naquelas ilhas, para viver sossegado, longe de tiranias e de guerras. Os corsários cilicianos, que não desejavam a paz e sim pilhagens e saques, logo que ouviram o vento abandonaram-no e foram para a África, a fim de repor Ascálio, filho de Ifta, no reino dos maurusianos. Longe, porém, de desanimar Sertório, a sua partida induziu-o a correr em auxílio dos que guerreavam Ascálio, para que os poucos guerreiros que ainda lhe restavam, esperançados e tendo em que se ocupar, não se desmandassem e o abandonassem, constrangidos pela necessidade. Os maurusianos ficaram muito satisfeitos com a sua chegada, e ele entrou logo em ação; derrotou Ascálio em combate, e foi sitiar a cidade em que se havia acolhido depois da derrota do seu exército. Ciente do acontecido, Sila mandou Paciano socorrer Ascálio com seu exército. Sertório deu-lhe combate, matando-o na luta; venceu o resto do exército, que se lhe rendeu, e a seguir tomou a cidade de Tingis, para onde Ascálio fugira com seus irmãos.

XIII. Ele manda abrir o suposto túmulo de Anteu

XIII. Os líbios creem e escrevem que Anteu está ali enterrado. Não acreditando no que diziam os bárbaros da região, devido ao tamanho da sepultura que lhe mostravam, Sertório mandou escavá-la em toda a volta, e abri-la, encontrando um corpo de homem de sessenta côvados de comprimento, segundo dizem. Ficou estupefato; imolou sobre ele uma hóstia, e mandou recobrir e fechar novamente o túmulo. Assim procedendo, ele aumentou extraordinariamente o respeito que a cidade dedicava à memória de Anteu, e confirmou o que se dizia na região.

Contam os da cidade de Tingis que, morto Anteu, sua mulher Tinga acolheu Hércules, com o qual teve um lindo filho, chamado Sófax, que foi rei daquela região, onde fundou a cidade a que deu o nome de sua mãe. Sófax, por sua vez, teve um filho chamado Diodoro, que conquistou e submeteu ao seu domínio a maior parte da África, com um exército de gregos olbianianos e micenianos, para lá levado por Hércules, e que se dera bem na região. Aproveitando a ocasião que se nos apresenta, para dizer isto de passagem, fazemo-lo como homenagem a Juba, o mais gentil dos historiadores de sangue real até então aparecidos, cujos antepassados acreditam descender de Sófax e de Diodoro.

XIV. Caráter de Sertório

XIV. Vitorioso, e tendo quase toda a região sob seu domínio, Sertório não maltratou nem desagradou aos que se submeteram às suas ordens e confiaram nele. Devolveu-lhes todos os bens, cidades e governadores, contentando-se com o que livre e espontaneamente lhe ofereceram. Isto feito, ficou em dúvida sobre o que deveria realizar e para onde dirigir-se.

Estava nesta indecisão, quando foi procurado por diversos embaixadores que os lusitanos lhe enviaram, a fim de pedir-lhe instantemente que fosse seu comandante-chefe, visto necessitarem de pessoa de renome e grande experiência em assuntos bélicos, receosos como estavam dos romanos, e por desconhecerem outro de igual capacidade a quem pudessem recorrer. Além do que, os que haviam convivido com ele faziam as melhores referências a seu respeito, louvando-lhe extraordinariamente os costumes e o caráter, perfeitamente de acordo com o que escreveram sobre ele. Nunca foi visto acabrunhado nem alegre, e era tão destemido no perigo quão moderado na prosperidade. Ele não era inferior a nenhum comandante de seu tempo em arrojo e coragem, demonstrando bom senso em todas as ocasiões. Ninguém melhor que ele para uma surpresa inteligente, para a escolha proveitosa de um lugar seguro para acampar ou combater, para atravessar um rio, para fugir ao perigo, coisas que exigiam grande agilidade, e muita habilidade para iludir o inimigo a tempo e a hora, e no que ele sempre se revelara excelente obreiro. Além disso, ele era bastante generoso em recompensar os belos feitos guerreiros, e clemente em punir as faltas. Contudo, a mortandade por ele praticada nos seus últimos dias, de jovens que retinha como garantia, e que foi, sem dúvida, um ato de grande crueldade e de ferocidade imperdoável, parece demonstrar e provar não ser ele por natureza clemente nem humano, e sim fingir astuciosamente sê-lo algumas vezes, por exigência do momento e natureza dos afazeres, penso que ele não se sujeitaria a tamanha infelicidade, se tivesse o poder de transformar a virtude, baseado em sentimentos de razão. As boas vontades e naturezas bondosas, sentindo-se indignamente aflitas e ultrajadas, podem mudar, com a sorte, suas naturais inclinações. Foi o que, a meu ver, aconteceu a Sertório, quando a sorte foi-lhe contrária ou lhe veio a faltar, pondo-o feroz e selvagem, a ponto de fazê-lo vingar-se cruelmente dos que o haviam traído indignamente.

XV. A cerva de Sertório

XV. Retornando ao ponto que deixamos, Sertório seguiu para a África a convite dos lusitanos, que o escolheram para comandante-chefe, com plenos poderes e autoridade suprema. Lá chegado, recrutou guerreiros sem perda de tempo, com os quais reduziu à obediência os habitantes da Espanha, que são os mais próximos daquela fronteira, tendo a maior parte se submetido voluntariamente às suas ordens, atendendo à sua fama de homem bondoso, humano, arrojado e de ação, e às habilidades e engenhosos artifícios que usara para atraí-los e vencê-los, como, por exemplo, o relativo a uma cerva, que se lê a seguir. Um campônio chamado Espano, que vivia nos campos, encontrou um dia, por acaso, uma cerva que havia há pouco dado cria e fora desencovada por caçadores. Apoderando-se da mãe, ele tratou também de assenhorear-se da cria, uma pequena cerva de pelo totalmente branco. Uma raridade!

Sabendo achar-se Sertório no lugar, e que ele recebia com satisfação os presentinhos que lhe faziam de frutas, macacos e caças, mostrando-se muito reconhecido aos seus doadores, e remunerando-os devidamente, o campônio foi oferecer-lhe a pequenina cerva, que muito o agradou. Com o decorrer do tempo ele tornou-a tão mansa e domesticada que ela atendia-o ao chamado, seguia-o por toda parte e não se assustava com a presença dos inúmeros soldados armados, nem com o barulho e tumulto do acampamento. Aos poucos Sertório transformou aquilo em milagre, fazendo crer aos bárbaros que aquilo fora uma dádiva que Diana lhe fizera, para prognosticar-lhe as coisas futuras, pois sabia serem os bárbaros crentes e supersticiosos por natureza e não relutarem em receber semelhante crença. Quando ele recebia notícias secretas de que os inimigos iriam atacar alguns lugares dos países e províncias que lhe estavam subordinados, ou que, de surpresa ou por valor, lhe haviam tomado algum de tais lugares, ele declarava-lhes que, à noite, durante o sono, a cerva o prevenira, aconselhando-o a conservar sua gente a postos e em armas. Ao receber aviso de que algum dos seus tenentes havia ganho um combate ou levava vantagem sobre os inimigos, ele escondia o mensageiro, e levava sua cerva a público, coroada e coberta de ramalhetes de flores, declarando que alguma boa notícia devia estar a chegar-lhe. Exortava a todos a ter esperança e a se alegrar, e pedia-lhes que fizessem sacrifícios aos deuses, rendendo-lhes graças pela boa nova que não tardaria a receber.

XVI. Vários êxitos de Sertório contra os generais de Roma

XVI. Fixando-lhes no pensamento esta superstição, ele tornou-os mais dóceis e obedientes à sua vontade, afastando-lhes do pensamento qualquer ideia de estarem sendo governados por um estrangeiro mais sensato e inteligente que eles, e se firmassem na crença de que fora um enviado por qualquer deus, pois os fatos correspondiam à sua crença, e, contra toda a expectativa, viam o seu poder crescer extraordinariamente. Com dois mil e seiscentos homens que ele chamava romanos, setecentos africanos de diversas regiões, que o acompanharam quando ele partiu da África para a Espanha, e quatro mil lusitanos, dos quais uns setecentos cavaleiros, ele manteve a guerra contra grandes comandantes romanos, que tinham às suas ordens cerca de cento e vinte mil soldados de infantaria, seis mil cavaleiros, uns dois mil flecheiros, e um número infinito de cidades e de países, quando ele, a princípio, não tinha mais de vinte. Apesar do reduzido elemento que dispunha no início desta guerra, ele não só conquistou grandes territórios e muitas e excelentes cidades, como aprisionou alguns dos comandantes mandados contra ele; derrotou Cota em combate marítimo, perto da cidade de Melaria, e desbaratou Fídio, governador da Espanha Bética, em renhido combate, junto ao rio Bétis, matando dois mil soldados romanos; por meio do seu questor derrotou Lúcio Domício, procônsul da outra província da Espanha; venceu também Torânio, um outro comandante, e um dos tenentes de Metelo, que ele matou na luta com todo o seu exército. O próprio Metelo, tido como um dos mais profundos conhecedores de assuntos de guerra e dos melhores comandantes mantidos pelos romanos, foi por ele tão perseguido e reduzido a tal estado que Lúcio Lólio precisou partir de Languedoc em seu auxílio. De Roma mandaram logo o grande Pompeu com um novo exército, pois Metelo não sabia mais o que fazer, nem para onde se dirigir, lutando com um homem valente e ousado, que ele não conseguia induzir a combate formal, nem apanhar em campo aberto, e que se movimentava e desviava com rapidez incrível, graças à agilidade de seus soldados espanhóis, escassamente armados. Além disso, ele estava habituado a combater em dias determinado a pé firme, sem titubeios, e comandava um exército pesado, carregado de arneses, que sabia perfeitamente defender suas fileiras, e, em ataques repentinos, vencer o inimigo em toda a linha. Ao que não estavam habituados, porém, ele e a sua gente, era a escalar montanhas e ser atacados pela retaguarda por aqueles homens rápidos como o vento, a dar-lhes caça e acossá-los, visto a rapidez com que fugiam, nem à fome e à sede, e a deitar-se no chão limpo, ao relento, sem tendas nem pavilhões, como faziam os soldados de Sertório.

XVII. Como Sertório importuna Metelo

XVII. Acresce ainda que, achando-se em idade bem avançada, depois das grandes labutas suportadas na mocidade, Metelo deixara-se dominar pelos prazeres e volúpias, e tinha de enfrentar Sertório, então na flor da idade, cheio de ardor, robusto, ágil e tão sóbrio que nunca bebia e comia além do necessário ao seu sustento, à hora certa, mesmo nos seus períodos de folga. Desde rapaz ele se habituara a suportar grandes trabalhos, a caminhar bastante, a passar dias e noites sem dormir, a comer pouco, a contentar-se com as carnes que fossem encontradas. Quando em descanso, montava a cavalo e metia-se pelos campos a caçar. Devido a isso, adquiriu grande experiência e agilidade para safar-se habilmente das más situações, quando perseguido pelo inimigo; para cercá-lo, ao levar vantagem sobre ele; e para saber por onde ele podia fugir ou não. Metelo, que desejava combater, sofria, assim, todos os aborrecimentos e danos que acometem os vencidos. Recusando combate, e fugindo à sua frente, Sertório levava sobre ele todas as vantagens dos que caçam os inimigos depois de os haver vencido, privando-os de víveres, de água e de forragem. Quando Metelo supunha marchar em paz, era por ele detido; e, uma vez parado e aquartelado, aborrecia-o tanto que o obrigava a desalojar-se. Quando sitiava qualquer lugar, ele não tardava em ficar também sitiado, devido à falta de víveres a que Sertório o submetia, pondo-lhes os soldados verdadeiramente desesperados. À vista disso, tendo Sertório desafiado Metelo para uma luta corporal, de homem para homem, os soldados aplaudiram a ideia, gritando que a luta devia ser mesmo de comandante para comandante, e de romano contra romano. Metelo, porém, andou muito bem em não aceitar o desafio, sendo escarnecido pelos soldados. Ele resumiu-se a rir, no que andou acertado, porque, segundo Teofrasto, um comandante deve morrer como tal e não como simples soldado.

XVIII. Ele impede-lhe a empresa contra a cidade de Langobrija

XVIII. Afinal, avisado um dia que os langobritas, naturais da cidade portuguesa de Langobrija, que prestavam muito auxílio e serviço a Sertório, podiam ser facilmente vencidos e aprisionados por falta de água, por possuírem um único poço na cidade e não poderem contar com os riachos e fontes dos arredores e dos subúrbios, uma vez sitiados, o que os obrigaria a render-se em dois dias, Metelo ordenou à sua gente que se abastecesse de víveres para cinco dias. Prevenido disto, Sertório ordenou aos seus que enchessem de água duas mil peles de cabras, e prometeu pagar bem todas as peles que lhe levassem, no que foi logo atendido por muitos espanhóis e mouros. Escolhendo as maiores e melhores, Sertório mandou-as aos langobritas por um atalho, ordenando-lhes que, distribuindo-as aos habitantes da cidade, afastassem dali a turba inútil, para que a água bastasse o mais possível aos que permanecessem em defesa da mesma. Conhecedor do fato, Metelo ficou muito aborrecido, pois já se achavam quase consumidos os víveres que, a seu comandado, suas forças haviam armazenado. E, como mandasse seu tenente Aquino, à testa de seis mil homens, aprovisionarse de novos víveres, Sertório, prevenido disso, na volta preparou-lhe uma emboscada num vale coberto de mata, onde colocou três mil homens, para atacá-lo de surpresa pela retaguarda, enquanto ele o faria de frente. Deste modo ele o pôs em fuga, matou parte de sua gente e aprisionou os mais. Tendo Aquino perdido suas armas seu cavalo, salvou-se às pressas no acampamento e Metelo, que ante a derrota do seu tenente, levantou vergonhosamente o sítio, sendo bastante ridicularizado pelos espanhóis.

XIX. Liberalidades que tornam Sertório querido de todos

XIX. Sertório era muito querido, estimado e louvado pelos bárbaros por tais atos, e por havê-los aguerrido e educado na disciplina romana, impedindo-os de combater furiosa, selvagem e estupidamente, como faziam antes, ensinando-os a fazer uso de armas romanas, a manter seus lugares durante o combate, a seguir a senha e a saber compreendê-la como voz de combate, transformando a grande horda de salteadores e ladrões, a que se assemelhavam dantes, num belo exército, muito aguerrido e disciplinado. Para melhor conquistar os corações dos bárbaros, ele distribuía-lhes bastante ouro e prata, para mandarem dourar seus capacetes e enfeitar seus escudos, para usarem ricas mantas sobre belas fardas, e fornecia-lhes dinheiro para manterem-se honestamente.

XX. Educação que ele faz ministrar aos filhos dos espanhóis

XX. Esperto como era, para melhor garantir-se da sua lealdade, ele reuniu na grande e excelente cidade de Osca todos os rapazes das famílias mais conceituadas e mais nobres das regiões sob seu domínio, fornecendo-lhes professores de ciências e letras, de grego e de latim, convencendo assim os pais que, ao chegarem à idade adulta, os filhos estariam aptos a exercer cargos públicos. Os pais não escondiam a sua satisfação, vendo seus filhos, trajados à romana, com roupas bordadas de púrpura, ir decentemente às escolas, com todas as despesas pagas por Sertório, que, dando-se ao trabalho de examiná-los amiúde, para certificar-se do seu aproveitamento, presenteava os mais estudiosos com o que os romanos denominam Bulas, isto é, anéis e bolas metálicas que se colocam ao pescoço das crianças. Sendo então hábito na Espanha morrerem com o príncipe ou o comandante os indivíduos mais achegados, quando qualquer deles falecesse, poucos, entretanto, eram os que se submetiam voluntariamente a tal sacrifício, que os bárbaros classificavam de ato de Devoção. Muitos milhares de homens, no entanto, geralmente acompanhavam Sertório, tendo feito voto de abandonar a vida quando ele perdesse a sua. Para prová-lo, dizem que, tendo sido seu exército derrotado perto de não sei que cidade da Espanha, e duramente perseguido pelos inimigos, os espanhóis expondo-se a todos os perigos, para salvar-lhe a vida, ergueram-no aos ombros, passando-o, assim, de um para outro, até fazê-lo chegar à cidade. Só depois de vê-lo fora de perigo é que eles procuraram salvar-se como puderam.

XXI. As forças de Perpena obrigam-no a unir-se a Sertório

XXI. Ele tanto era bem-visto pelos espanhóis como por todos os outros guerreiros procedentes da Itália. Por isso, quando Perpena Vento, da mesma facção, chegou à Espanha com ‘ muito dinheiro e bom número de guerreiros, decidido a guerrear Metelo sozinho, os soldados revoltaram-se contra ele, não falando senão em Sertório no acampamento. Soberbo e arrogante como era, devido à sua riqueza e nobreza de sua linhagem, o fato causou-lhe despeito e raiva. Ao chegarem as notícias que Pompeu já havia transposto os montes Pireneus, os soldados tomaram suas armas, arrancaram os bastões sinaleiros que haviam fincado ao solo, gritando a Perpena que os levasse a Sertório, sob pena de o abandonarem e irem procurar um comandante que os soubesse e se soubesse salvar. À vista do que, Perpena viu-se obrigado a satisfazer-lhes a vontade e a juntar aos de Sertório os cinquenta e três estandartes que possuía.

XXII. Como Sertório consegue moderar a fúria dos bárbaros que se juntaram a ele

XXII. Com isto, o exército de Sertório tornou-se enorme e poderoso, porque todas as cidades de aquém do rio Ebro, antigo Ibero, se lhe renderam, acorrendo guerreiros de toda parte: verdadeira turba de bárbaros, confusa e temerária, colhida em todos os lugares, impaciente e a gritar tumultuariamente que se fosse carregar com o maior vigor os inimigos. Isto aborreceu imenso a Sertório, que procurou chamá-los ao uso da razão por meio de exemplos.

Vendo, porém, que eles se amotinavam e queriam a todo o custo atacá-los fora de tempo e de estação, deu-lhes inteira liberdade de ação e deixou-os partir, certo de que seriam vencidos, mas ordenou-lhes que não se transviassem, convencido de que, dali em diante, eles se tornariam mais obedientes às suas ordens. As suas previsões não falharam, mas ele correu em seu auxílio, levando-os a salvo ao seu acampamento. Para afastar-lhes do coração o temor que lhes pudesse ter ocasionado tal insucesso, poucos dias depois, para os admoestar ele reuniu o exército todo em assembleia, mandando levar para ali dois cavalos, um muito fraco e velho, e outro esbelto e forte, de cauda espessa e muito bonita. Atrás do fraco e velho mandou colocar um belo homenzarrão, muito forçudo, e atrás do esbelto e forte um homem fraco e franzino, que à simples vista denotava ter pouca força. Ao sinal convencionado, o homenzarrão agarrou a cauda do cavalo magro com ambas as mãos, puxando-a violentamente, como se quisesse arrancá-la. O outro, que era fraco, pôs-se a arrancar pelo por pelo do cavalo forte. Em menos tempo que o homenzarrão gastou e suou inutilmente para conseguir partir ou arrancar a cauda do cavalo fraco só conseguindo provocar gargalhadas na assistência, o homem fraco, sem o menor esforço, deixou a cauda do seu grande cavalo sem um único pelo. Sertório levantou-se então, e disse: "Como veem, meus companheiros e amigos, a perseverança consegue mais que a força, e muitas coisas que se apresentam inexpugnáveis, quando forçadas de repente, deixam-se vencer com o tempo, se se agir paulatinamente. A persistência é invencível; e, dada a sua extensão, não há força tão poderosa que, com o decorrer do tempo, ela não abata e não destrua. É o amparo mais certo e seguro dos que sabem esperar e escolher a oportunidade, como é o maior inimigo dos que agem com precipitação". Com exemplos desta natureza, que geralmente apresentava aos bárbaros, Sertório ensinava-os a aguardar as oportunidades.

XXIII. Estratagema pelo qual ele subjuga os caracitanianos

XXIII. De todas as suas astúcias de guerra, a mais apreciada foi a que ele usou contra o povo caracitaniano, situado além do no Tagus, que não reside em cidades nem em aldeias, e sim em cavernas e inúmeras tocas cavadas nos rochedos de costa alta e extensa, voltada para o Norte. Ao longo da base desta costa há um pântano de argila tão mole e apodrecida que não suporta o peso de uma pessoa. Por pouco que se a force ela se desfaz e se reduz a pó, como acontece com a cal virgem e a cinza, quando pisadas. Devido a isso, quando eles desconfiavam de alguns inimigos, ou guardavam em suas cavernas o que roubavam e saqueavam aos seus vizinhos, nada mais faziam do que conservar-se nelas, como meio de defesa, por ser impossível ir atacá-los ali. Diversas vezes, afastando-se de Metelo, Sertório foi acampar próximo à costa em que residiam tais bárbaros, sendo por eles escarnecido, na suposição de haver sido derrotado por Metelo. Irritado com isso, ou por querer mostrar-lhes que não era um fugitivo, na manhã seguinte montou a cavalo, e aproximou-se o mais possível da costa, para conhecê-la e ver de perto a natureza do lugar. Não encontrando lugar algum que lhe permitisse a entrada, nada mais fez do que passear daqui para ali, e usar ameaças vãs e contraproducentes. Nestas idas e vindas, porém, notou que o vento erguia ao ar nuvens de pó daquela terra movediça de que falei jogando-as nas covas de tais caracitanianos, cujas entradas, como disse há pouco, estão voltadas para o Norte. O vento que sopra do Norte, que alguns denominam Cécias, é o que geralmente age naquela região, fustigando as planícies pantanosas dos arre dores e as montanhas sempre cobertas de neve, mesmo no verão mais rigoroso, durante o qual é alimentado e revigorado pela liquefação das neves e gelos setentrionais, e sopra suavemente o dia todo, dando alívio aos bárbaros e ao seu gado.

XXIV. Refletindo sobre o caso, e ouvindo dos habitantes dos arredores ser o fato comum ali, Sertório ordenou à sua gente que amontoasse grande quantidade daquela terra leve e cheia de cinza em frente à costa. Os bárbaros a princípio soltaram grossas gargalhadas e zombaram a valer, crentes que fosse uma leva de recrutas que ele houvesse levado para atacá-los. Ele não ligou importância fez prosseguir o trabalho o dia todo, e à noite reconduziu sua gente ao acampamento. No dia seguinte, ao romper da aurora, primeiro soprou um vento levei que apenas carregou ligeira parte daquela terra pulverulenta; mas, à medida que o sol foi se elevando, o vento Norte foi adquirindo maior violência e enchendo a costa toda de poeira. Os homens de Sertório voltaram então, e revolveram de alto a baixo o monte que haviam erguido no dia anterior, para esterroar a argila seca. Os que estavam a cavalo valeram-se dos animais, para produzir maior quantidade de pó, que o vento carregava, jogando nas tocas e cavernas dos bárbaros, infiltrando-se diretamente nas aberturas das mesmas. Não tendo outros respiradouros, nem outras saídas, senão aquelas por onde o vento os castigava, seus olhos ficaram muito embaçados e o interior das cavernas tão carregado de ar quente e sufocante que eles mal podiam respirar. Tendo suportado a custo, durante dois dias, esta dolorosa situação, no terceiro dia entregaram-se ao arbítrio de Sertório. Por ter sabido vencer por astúcia o que era inconquistável pela força, o seu poder e reputação cresceram extraordinariamente.

XXV. A reputação de Sertório aumenta depois da chegada de Pompeu

XXV. Durante todo o tempo em que só ele guerreou contra Metelo, teve sobre este as maiores vantagens, porque, já velho, vagaroso e indolente, Metelo não podia resistir a um jovem arrojado, que comandava um exército à ligeira, que mais parecia um bando de ladrões e salteadores do que um verdadeiro exército. Depois que Pompeu passou os montes Pireneus e acampou diante de Sertório, um e outro evidenciaram todas as suas astúcias guerreiras e habilidades de bons comandantes. Todavia, Sertório ainda levava-lhe vantagem em preparar-lhe emboscadas e saber livrar-se das suas. O renome de Sertório tornou-se tão grande que na própria Roma ele foi considerado o maior comandante do seu tempo e a maior autoridade em assuntos de guerra.

XXVI. Ele toma e incendeia a cidade de Laurão em sua presença

XXVI. A reputação de Pompeu era tão grande que já resplandecia sua glória, muito aumentada pelas grandes proezas por ele realizadas sob as ordens de Sila, que cognominou-o Pompeu Magno, isto é, o Grande, merecendo assim as honras do triunfo antes que a barba lhe houvesse despontado. De modo que, à sua chegada à Espanha, algumas das cidades e vilas que obedeciam a Sertório ficaram indecisas se deviam ou não voltar para ele. Mas depois, pelo que aconteceu à cidade de Laurão, hoje Lina, no reino de Valência, contra a expectativa de todo o mundo, mudaram de ideia. Tendo Sertório sitiado a mesma, Pompeu correu célere, com todo o seu exército, para expulsá-lo dali. Bem perto da cidade havia um pequeno outeiro muito cômodo para se estabelecer ali acampamento e importunar os da cidade, razão por que um se apressava em apoderar-se dele, e outro em impedir que tal acontecesse. Sertório foi o primeiro a chegar e a senhorear-se dele, o que satisfez a Pompeu, que chegou a seguir, por julgar ao alcance de seus golpes Sertório e sua gente, completamente cercados por seu exército. Nessa ocasião ele declarou aos da cidade que nada receassem, e que vissem satisfeitos, do alto das muralhas, Sertório seriamente sitiado com todos os seus, quando o que ele queria era sitiar os outros. Sabedor disto, Sertório pôs-se a rir, e disse que ia ensinar ao jovem aluno de Sila (pois era assim que ele qualificava Pompeu, em ar de troça) que um comandante atilado deve olhar mais para atrás do que para a frente. Dito isto, mostrou aos lauronitanos seis mil soldados de infantaria, bem armados, que deixara no acampamento de que partira para ir ocupar o outeiro em que se achava, a fim de que atacassem Pompeu pela retaguarda, caso ele se atrevesse a ir importuná-lo. Percebendo-o embora tarde, Pompeu não ousou atacar Sertório, certo de que seria envolvido pela retaguarda, mas envergonhava-se de abandonar os lauronitanos à própria sorte, e de assistir à sua destruição. Vendo-se abandonados, os bárbaros submeteram-se ao arbítrio de Sertório, que perdoou a todos, deixando-os ir para onde quiseram, mas queimou-lhes a cidade toda. Não o fez por ódio ou maldade (pois foi o comandante que menos uso fez da malvadez, movido de ódio), e sim para envergonhar e tapar a boca aos que davam grande valor a Pompeu e o tinham em exagerada consideração e estima, e para que se divulgasse entre os bárbaros que, achando-se Pompeu presente, e podendo quase aquecer-se ao fogo que devorava uma boa cidade de seus aliados sob suas vistas, ele não ousou dar-lhes o menor auxílio.

XXVII. Ele vence um grande combate contra Pompeu

XXVII. É verdade que no decurso desta guerra Sertório também sofreu várias perdas e danos, devido, quase sempre, aos seus tenentes, pois ele e os seus comandados sempre se mantiveram invictos. Maiores honras ainda conquistou ele com os combates que seus capitães perderam e ele desforrou, coisa que não fizeram os adversários que os haviam batido, como nas jornadas que ele venceu contra Pompeu, perto da cidade de Sucrão, e contra Metelo e Pompeu juntos, perto da cidade de Tutia. Calcula-se que a sua derrota de Sucrão se haja dado por não querer Pompeu que Metelo participasse da honra de sua vitória, e o atacasse de afogadilho, o mesmo fazendo Sertório, que atacou-o à noite, na esperança que a escuridão causasse grandes distúrbios aos inimigos, garantisse-lhe a fuga, se fosse vencido, e a caça aos inimigos, se vencedor, por serem eles estrangeiros e não conhecerem a região. No início da luta Sertório não se achava frente a Pompeu, e sim contra Afrânio, que dirigia a ponta esquerda do ataque, situada à direita da sua. Sendo então prevenido que a ponta esquerda do seu exército, atacada por Pompeu, estava sendo tão forçada que recuava desabaladamente, e pouco resistiria, se não fosse prontamente socorrida, ele entregou a direção da ponta direita, em que se achava, a outros seus comandantes, e correu sem demora para a esquerda, onde encontrou todos muito agitados e prontos para fugir em carreira desabalada. Reunindo os que já se haviam apartado, e submetendo à disciplina os que ainda teimavam, encorajou-os com sua palavra e sua presença, e foi atacar mais fortemente que nunca Pompeu, que já se considerava vitorioso. O grande esforço por ele produzido pôs todo o exército dos romanos em fuga, pouco faltando que o próprio Pompeu fosse morto na ação, pois foi gravemente ferido.

Salvou-se por um capricho da sorte; porquanto, tendo os africanos de Sertório tomado seu cavalo, ricamente enfeitado com arneses de ouro e outros adornos preciosos, procurando reparti-los entraram em luta, porque cada qual queria o maior quinhão, e ele conseguiu fugir, sem ser perseguido. Afrânio, no entanto, nem bem Sertório partiu em socorro da outra ponta de ataque, afugentou os que encontrou pela frente, levando-os de vencida até quase as trincheiras de seu acampamento, no qual entrou de cambulhada com os inimigos, e atacou-os já noite fechada, nada sabendo da marcha e derrota de Pompeu, nem conseguindo afastar seus homens da pilhagem. Razão por que, lá chegando, e encontrando-os em desordem, Sertório matou boa porção deles. Na manha seguinte armou seus homens, e jogou-os de novo contra Pompeu. Sabendo depois que Metelo estava perto dali, ordenou a retirada, e afastou-se do lugar em que estava acampado, dizendo: "Se este velho não tivesse vindo, eu mandaria este rapaz de volta a Roma, a varadas".

XXVIII. Como ele reencontrou sua cerva

XXVIII. O fato de não descobrir o paradeiro de sua cerva branca, nem encontrá-la em parte alguma, aborrecia-o bastante, por se ver privado de um ótimo artifício e de um meio muito delicado para manter os bárbaros a postos, quando mais necessitavam de ser reconfortados. Felizmente, porém, tendo-se desgarrado alguns dos seus homens durante a noite, encontraram-na no caminho, e, reconhecendo-a pela cor branca, levaram-na a Sertório. Este prometeu-lhes bom dinheiro, se não declarassem a ninguém que lha haviam levado, e sem demora a fez esconder. Dias depois apresentou-se ao público sorridente e alegre, declarando aos principais fidalgos e comandantes dos bárbaros que os deuses lhe haviam dito durante o sono que bem cedo ele teria uma grande felicidade. Dito isto, subiu à sua sege, para dar audiência e fazer justiça a todos. Neste instante, os que retinham a cerva não longe dali deixaram-na ir às escondidas. Logo que ela percebeu Sertório correu-lhe ao encontro, fazendo-lhe grandes festas, colocando-lhe a cabeça entre os joelhos e lambendo-lhe a mão direita, como fazia antes. Sertório, por sua vez, agradou-a tanto, e com tal carinho que as lágrimas soltaram-lhe dos olhos. Os assistentes bárbaros ficaram a princípio muito comovidos e admirados; pouco depois, porém, tornados a si, começaram a bater palmas de alegria, e levaram Sertório à sua residência, vivando-o calorosamente, convencidos de ser ele homem divino e bem-visto dos deuses, e imprimindo em seus corações a convicção de que os seus negócios seguiriam sempre de bem a melhor.

XXIX. Combate de Sertório contra Pompeu e Metelo

XXIX. Outra vez, no território dos seguntinos, tendo reduzido seus inimigos à extrema necessidade de víveres, ele foi obrigado a atacá-los, porque mandaram grandes forças assolar a região e munir-se de víveres a todo custo. O combate foi renhido, tanto de um lado como de outro, sendo morto Mêmio, o comandante mais valente de Pompeu, no mais aceso da luta e batendo-se valorosamente. Sentindo-se o mais forte, Sertório acompanhou sua primeira ponta, fazendo sempre mortandade entre os que o esperavam, e chegou até Metelo, que defendeu-se mais vigorosamente do que a idade lhe permitia, e embora houvesse sido ferido por um seu partidário. Isto não só envergonhou os romanos que testemunharam o fato, como os que abandonaram seu comandante e tiveram notícia do acontecido. Transformando sua vergonha em ódio aos inimigos, eles rodearam Metelo, defendendo-o com suas tarjas e escudos; e, afastando-o da pressão, produziram tal esforço que obrigaram os espanhóis a recuar.

XXX. Ele obriga Pompeu e Metelo a se separarem

XXX. Destruída por este modo sua vitória, Sertório envidou todos os esforços para que sua gente se retirasse a salvo da luta e aguardasse o reforço que mandara buscar, retirando-se para uma cidade muito montanhosa, cujas muralhas mandou reforçar, bem como as portas, nada esquecendo no sentido de que poderia ser ali sitiado. Foi uma esperteza que ele usou para com os inimigos, que foram postar-se e perder tempo diante da cidade, na esperança de tomá-la facilmente, deixando de perseguir os bárbaros, que tiveram tempo de se retirar tranquilamente para lugar seguro e aguardar o reforço mandado a Sertório pelos capitães por ele enviados às cidades próximas e regiões circunvizinhas, a fim de recrutar gente.

Conseguindo isto, ele rompeu com felicidade seus inimigos, passou sem dificuldade através deles, e foi ao encontro de sua gente. Com o reforço recebido, ele voltou, sem demora, a atormentar os inimigos, a cortar-lhes os víveres, em terra por meio de emboscadas e ardis de toda a espécie, e por mar valendo-se de algumas fustas de corsários, com as quais ele percorria toda a costa e regiões vizinhas. Deste modo, os dois comandantes, seus adversários, foram obrigados a distanciar-se um do outro, indo Metelo invernar na Gália e Pompeu em terras vacianas, fora da Espanha, por falta de dinheiro, o que o fez escrever ao Senado de Roma que reenviaria seu exército à Itália, se não lhe mandassem logo dinheiro, porquanto já havia gasto todo o seu, combatendo diariamente. Isto convenceu a inteira Roma que Sertório chegaria à Itália antes que Pompeu, pois havia aniquilado os principais e melhores comandantes da época, devido ao seu bom senso e conduta irrepreensível.

XXXI. Metelo põe a cabeça de Sertório a preço

XXXI. Com isto Metelo bem demonstrou quanto o temia e como o respeitava na qualidade de grande e pavoroso inimigo. Tanto assim, que ele fez divulgar, a toque de trombeta, que se algum romano conseguisse matá-lo, dar-lhe-ia cem talentos em dinheiro e vinte mil jeiras de terras; no caso de ser um exilado, prometia-lhe reabilitação e restituição de todos os seus bens, comprando traiçoeiramente a morte de quem nunca esperava poder vencer pelas armas. Tendo certa vez vencido um combate contra Sertório, ficou tão orgulhoso e cheio de si que se fez nomear imperador, isto é, comandante supremo, e permitiu que nas cidades por onde passou lhe erguessem altares e lhe fizessem sacrifícios. Dizem ainda que ele consentiu que lhe colocassem ramalhetes à cabeça e o homenageassem com banquetes dissolutos, nos quais sentou-se à mesa em traje triunfal, sendo-lhe apresentados, por meio de astúcias e truques, imagens de vitória, que chegaram à sala e lhe entregaram troféus de ouro e coroas e ramalhetes de vitória, enquanto lindas meninas e moças dançavam e cantavam hinos triunfais em sua língua. Mostrando-se tão jubiloso, e vangloriando-se como fazia, por haver uma única vez feito retroceder quem ele não se fartava de qualificar o fugitivo de Sila, e o sobejo dos expulsos de Carbo, ele tornava-se antes digno de desprezo do que de ser louvado.

XXXII. Elogio à conduta de Sertório

XXXII. No entanto, o valor e magnanimidade de Sertório são demonstrados, em primeiro lugar porque ele nomeava os banidos salvos de Roma, que se achegavam a ele, senadores, conduzindo-os consigo como Senado, fazendo uns questores, outros pretores, tudo de acordo com os hábitos de sua terra. Embora guerreasse com os espanhóis, e sustentasse a luta à custa dos mesmos, nunca lhes concedeu qualquer vantagem ou autoridade, nem mesmo de palavra, e sim governadores, oficiais e comandantes romanos, como aquele que não cessava de proclamar que combatia pela liberdade do povo romano e não para aumentar o poder dos espanhóis, contra sua terra.

XXXIII. Seu amor à pátria e à sua mãe

XXXIII. Inegavelmente ele consagrava grande amor à sua terra e desejava ardentemente voltar para lá. Na adversidade, nunca deu ao inimigo a menor demonstração de desânimo ou cobardia. Na prosperidade, quando conseguiu vantagens sobre eles, mandava dizer a Metelo e a Pompeu sentir-se muito satisfeito em depor as armas e poder recolher-se à vida privada, desde que fosse por édito público chamado e reconduzido à pátria, pois preferia ser o cidadão mais ínfimo de Roma a viver banido de sua terra e ser considerado imperador do resto do mundo. Dizia-se que um dos principais motivos por que ele tanto desejava ser chamado era o imenso amor que devotava a sua mãe, que o criara, pois ficara órfão de pai em tenra idade.

Pouco depois que os seus amigos da Espanha o convidaram para ir assumir o governo da nação e ser seu comandante, ao que ele acedeu, chegou-lhe a notícia do falecimento de sua genitora. A sua dor foi tão grande que quase faleceu, pois ficou sete dias estendido ao chão, a chorar, sem dar qualquer ordem à sua gente e sem mostrar-se aos amigos. Isto fez que os outros comandantes, de graduação igual à sua, fossem à sua tenda e o obrigassem a sair, por meio de súplicas e conselhos, e a apresentar-se e a falar aos soldados, bem como a atender aos seus afazeres, que se achavam muito bem encaminhados. Devido a isto, muitos consideraram-no de natureza delicada e bondosa, amante do repouso e da tranquilidade de espírito, sendo obrigado a dedicar-se à guerra para garantir-se, pois, acossado e perseguido pelos inimigos em toda parte, outro recurso não lhe restava.

XXXIV. Grandeza de alma de Sertório em seu tratado com Mitrídates

XXXIV. O tratado que ele fez com o rei Mitrídates bem demonstrou ser ele de coração generoso e nobre, porquanto, depois de vencido por Sila, Mitrídates se repôs e invadiu novamente a Ásia, quando o renome de Sertório já se estendia por todas as partes do mundo. Tanto assim, que os mercadores que chegavam do Ocidente enchiam as províncias do Oriente e o reino de Ponto de notícias de Sertório, na mesma proporção das mercadorias que iam comprar em terra estranha. Devido a isso, Mitrídates resolveu dirigir-se a ele, no que foi também instigado pelas tolas fanfarronices dos favoritos da corte, que comparavam Sertório a Aníbal e ele ao rei Pirro, declarando que, assaltados pelos dois lados, os romanos nunca poderiam resistir à união das forças do maior comandante do mundo com as do maior e mais poderoso rei então existente. Mitrídates mandou seus embaixadores à Espanha, junto a Sertório, com declarações e poderes para lhe fornecer dinheiro e navios necessários à guerra, pedindo-lhe em paga que Sertório lhe entregasse e garantisse a posse da Ásia, que ele havia entregue aos romanos pelo ajuste estabelecido com Sila.

XXXV. Para deliberar sobre o caso, Sertório reuniu seu conselho, ou Senado, como o chamava. Todos foram de opinião que as propostas apresentadas por Mitrídates fossem aceitas, e com grande satisfação, porquanto ele pedia a concessão e posse de coisas problemáticas, dando, em paga, coisas de que eles tinham a maior necessidade. Sertório, porém, não concordou com eles: permitia que Mitrídates ficasse com a Capadócia e a Bitínia, que eram províncias habituadas a viver sob o domínio dos reis, e sobre as quais o povo romano não tinha nenhum direito; mas não admitia que ele se assenhoreasse de uma província que de direito, por dádiva testamentaria do seu legítimo possuidor, pertencia ao povo romano, que Fímbria levara à guerra e ele reconduzira à paz, mediante acordo com Sila. "Porque, (disse ele), o que desejo é aumentar o império romano por meio de vitórias e não vencer em seu prejuízo. Um homem honesto deve procurar vencer com honra e não buscar salvar a vida vergonhosa e desonestamente". Mitrídates ficou pasmo, quando lhe comunicaram isto, e disse aos seus amigos mais achegados: "Se agora que se acha exilado no fim do mundo do Oceano Atlântico ele nos estabelece limites para o nosso reinado e esfera de ação, e nos ameaça de guerra, se tentarmos agir na Ásia, que nos dirá Sertório, quando for elevado ao Senado de Roma?"

XXXVI. Não obstante, concordaram e juraram ambos que Mitrídates ficaria com a Capadócia e a Bitínia, e que Sertório lhe mandaria um dos seus comandantes com guerreiros, mediante a quantia de três mil talentos e quarenta navios de guerra. O comandante mandado por Sertório foi Marcos Mário, senador de Roma, que fugira para junto dele, com o qual Mitrídates forçou algumas cidades da Ásia e delas se apoderou. Quando Mário nelas entrou, tendo à frente os sargentos conduzindo os feixes de varas e os machados, como se fosse um procônsul do povo romano, Mitrídates colocou-se voluntariamente atrás dele, respeitando-o como superior.

Mário libertou de fato algumas cidades, e escreveu a outras, anunciando que Sertório lhes devolvia os impostos e armazenagens que haviam pago, dispensando-os dos mesmos; o que fez que a pobre Ásia, atormentada pela avareza dos tesoureiros e rendeiros do povo romano, e pela insolência e arrogância dos guerreiros que a guarneciam, se enchesse de esperança e desejasse ardentemente o governo que lhe propunham.

XXXVII. Perpena revolta seus amigos contra Sertório

XXXVII. Na Espanha, pelo contrário, os senadores banidos de Roma, que tinham no exército de Sertório a mesma posição e dignidade que ele, nem bem se julgaram tão fortes como os adversários, e não viram mais possibilidade de perigo, encheram-se de inveja e tolo ciúme do prestígio e autoridade de Sertório, inclusive Perpena, que, vaidoso e cheio de ambição, por ser de família nobre, desejava ser comandante supremo do exército, e ia, para tal fim, semeando entre os seus amigos mais achegados estas sediciosas e perversas palavras: "Um mau destino, meus amigos, nos leva sempre de mal a pior, desde que não quisemos obedecer a Sila, que hoje domina inteiramente a terra e o mar, e preferimos abandonar nossos haveres e nossas casas. Vindo para aqui, na esperança de poder viver tranquila mente, nos submetemos agora à escravidão, como satélites de Sertório, para defendê-lo e garanti-lo em seu exílio, recebendo dele belas palavras e a qualificação de Senado, coisa que provoca risos dos que o ouvem chamar-nos assim. No entanto, nos conformamos em suportar indignidades, tormentos e fadigas, como os espanhóis e os lusitanos, e em obedecer-lhe as ordens".

XXXVIII. Como eles procuram arruinar os negócios de Sertório

XXXVIII. Enlevados com estas palavras, a maior parte deles não ousou rebelar-se abertamente contra Sertório, temendo a sua autoridade; mas, à socapa perturbavam-lhe e estragavam-lhe todos os afazeres, executando cruelmente bárbaros, sob a capa da justiça, fazendo-os pagar impostos elevados, alegando que assim procediam por ordem de Sertório, do que resultou que diversas cidades se revoltaram contra ele, rendendo-se aos inimigos, surgindo diariamente novas amotinações. Os que ele mandava para acalmá-los, portavam-se de tal modo que, longe de abrandar os descontentamentos e desobediências das populações, aumentavam-no extraordinariamente, excitando novos tumultos. Tudo isto modificou a bondade habitual de Sertório, tornando-o tão cruel que fez perecer à fome algumas crianças nobres que fazia nutrir na cidade de Osca e vendeu outras como escravos.

XXXIX. Conspiração de Perpena contra Sertório

XXXIX. Tendo já vários cúmplices em sua péssima conspiração contra Sertório, Perpena acrescentou mais um, chamado Mânlio, encarregado das maiores atribuições no exército. Este indivíduo era grande admirador de um lindo rapaz; e, para demonstrar-lhe o bem que lhe queria, contou-lhe um dia a trama toda da conspiração, pedindo-lhe que desprezasse outros admiradores e se dedicasse inteiramente a ele, porque dentro de poucos dias havia de vê-lo tornar-se muito poderoso. Sendo mais afeiçoado a um tal Aufídio, este rapaz foi contar-lhe tudo quanto Mânlio lhe dissera, deixando-o pasmo, porque também era conjurado. Como não soubesse quem era Mânlio, Aufídio ficou mais assombrado ainda, quando o rapaz nomeou Perpena, Grecino e outros, que ele bem sabia pertencerem à liga. Todavia nada deu a perceber ao rapaz, e disse-lhe que tudo era falso, pedindo-lhe que não acreditasse nas palavras do tal Mânlio, que não passava de um gabola muito pretensioso, que nunca realizara coisa alguma e que tudo fazia para o atrair. Mas, ao partir dali, foi sem demora procurar Perpena, contando-lhe tudo, e mostrando-lhe o perigo que corriam, se não entrassem logo em ação. Os outros conjurados secundaram-no, e, nessa ocasião urdiram esta traição: subornaram um mensageiro, que levou cartas falsas a Sertório, nas quais declaravam que um dos seus tenentes fora vitorioso em um grande combate, matando numerosos inimigos. Satisfeito com a notícia, como é fácil imaginar, Sertório fez sacrifícios aos deuses, para agradecer-lhes a boa nova. Achando a ocasião oportuna, Perpena convidou-o para uma ceia em sua casa, com outros amigos, conspiradores como ele, e tanto insistiu que Sertório acedeu.

XL. Sertório é assassinado

XL. Em toda a sua vida Sertório manteve a máxima compostura à mesa, não admitindo que fizessem coisas ou proferissem palavra obscenas, e havia mesmo habituado os que comiam com ele a manter-se com o maior respeito e de cara sempre alegre. Chegados ao meio da ceia, eles, que procuravam um motivo qualquer para discussão, começaram a proferir palavrões e obscenidades, fingindo-se embriagados, e a praticar cenas dissolutas, baixas e vergonhosas, a fim de irritá-lo. Sertório, porém, ou porque não pudesse mais suportar tais baixezas, ou porque percebesse o fim almejado, pelo modo de falar entre dentes, e devido ao desrespeito não habitual que eles lhe demonstravam, voltou-lhes as costas no lugar em que se achava, como para não ver nem ouvir o que faziam e diziam. Perpena encheu então uma taça de vinho, e, fingindo beber, deixou-a cair propositalmente, pois era o sinal combinado entre eles para agir. Nesse instante, um tal Antônio, que estava sentado ao lado de Sertório, deu-lhe um golpe de adaga. Sertório procurou levantar-se, mas o traidor jogou-o ao chão, ajoelhou-se sobre seu estômago, e segurou-lhe ambas as mãos, fazendo com que ele fosse morto sem poder defender-se, tendo todos os conjurados a martirizá-lo.

XLI. Pompeu manda matar Perpena

XLI. Conhecida a sua morte, a maior parte dos espanhóis rendeu-se a Pompeu e Metelo. Valendo-se dos que permaneceram a postos, e das forças e equipagem de Sertório, Perpena procurou agir. Tudo, porém, concorreu para a sua desgraça e confusão, dando a conhecer ao mundo que não passava de um perverso, que não sabia ordenar nem obedecer, pois foi atacar Pompeu, que o derrotou e fez prisioneiro. Neste último infortúnio ele ainda não procedeu como homem virtuoso e digno de comandar; pois, para salvar sua vida, tendo se apoderado da correspondência de Sertório, propôs a Pompeu entregar-lhe as cartas confidenciais de alguns dos principais senadores de Roma, escritas de próprio punho, pedindo a Sertório que levasse seu exército à Itália, onde havia muita gente a seu favor, que desejava a sua volta e reclamava a mudança de governo. Nisto Pompeu portou-se como homem de caráter impoluto, de cérebro bem assentado e de grande juízo, pois livrou a cidade de Roma de grande temor e do risco de grandes acontecimentos, queimando toda a correspondência de Sertório, sem ler uma carta sequer, e não consentindo que outros lessem. A seguir mandou matar Perpena, para evitar que ele denunciasse alguém, o que daria lugar a novos acontecimentos e novas sedições. Quanto aos outros conjurados, alguns foram depois conduzidos a Pompeu, que os mandou matar, e outros fugiram para a África, onde foram atacados e mortos pelos africanos, exceto Aufídio, o rival de Mânlio em amor, que ou porque não lhe ligaram importância, ou por não haver sido por eles reconhecido, envelheceu pobre, miserável e desprezado de todos numa péssima povoação de bárbaros.

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