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Vidas Paralelas: Lúculo, de Plutarco

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Imagem do Harry Thurston Peck. Harpers Dictionary of Classical Antiquities. New York. Harper and Brothers. 1898. Perseus Digital Library.

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Lúcio Licínio Lúculo (117-56 a.C.) foi um político da república romana eleito cônsul em 74 a.C.. Combateu sob o comando de Sila na Guerra Social e na Primeira Guerra Mitridática. Foi um dos comandantes da Terceira Guerra Mitridática. A biografia de Lúculo faz parte de uma série de biografias escritas por Plutarco (c. 46-120), um historiador grego que viveu no Império Romano. Na série Vidas Paralelas, o autor compara vários nomes da história grega com seus equivalentes romanos. Lúculo foi comparado com o general ateniense Címon.

I. Família de Lúculo. Ele acusa o augure Servílio

I. O avô de Lúculo era personagem de dignidade consular, e seu tio materno Metelo, cognominado Numídico, obteve esta alcunha por haver subjugado e conquistado a província de Numídia; seu pai, porém, foi categoricamente acusado de furto na administração das finanças públicas, e sua mãe, Cecília, adquiriu a fama de desonesta. Antes que Lúculo obtivesse qualquer cargo que o obrigasse a cuidar da administração pública, tratou, ao chegar, de acusar e submeter à ação da justiça Servílio Augúrio, acusador de seu pai, alegando haver procedido do mesmo modo em sua terra, isto é, haver ele atentado contra o erário público. Os romanos consideraram lindo este seu procedimento, não se falando de outra coisa em Roma, durante muito tempo, como se fosse coisa de grande valia. Passaram então a considerar coisa valiosa e nobre a acusação sincera e destemida a elementos perniciosos, sentindo grande prazer em ver os moços, à maneira de galgos enfurecidos atrás das lebres, perseguirem judicialmente os fraudadores. As rixas e perseguições foram tão grandes em tal processo, que houve feridos e mortos em praça pública, só terminando com a absolvição de Seivílio.

II. Eloquência e habilidade de Lúculo nas línguas grega e latina

II. Lúculo exprimia-se com tanta eloquência, facilidade e correção nas línguas grega e romana, que Sila viu nele o único homem capaz de escrever-lhe a história completa dos seus feitos, com fidelidade e elegância, e recorreu a ele, fornecendo-lhe os dados indispensáveis. A sua facilidade no falar não se resumia em ter resposta pronta para destruir ataques e produzir defesas unicamente, como se observa em outros, que em questões processuais, ou em audiências públicas,

Assemelham-se aos atuns, que por grande teimosia,
Vão às profundas do Oceano;
mas, que, afastados dos limites da prática e das arengas públicas,
Tornam-se áridos, enfadonhos,
E reduzem a nada a sua eloquência.

Desde a mocidade Lúculo se dedicara com afinco ao estudo das belas-letras ou de humanidades, como dizem, e às ciências liberais. Chegado à velhice, dedicou-se, a custo, ao estudo da filosofia, avivando a parte contemplativa de sua alma, e amortecendo, ou pelo menos refreando a tempo, a parte ambiciosa e ativa, depois da pendência que teve com Pompeu. Dizem que, muito moço ainda, desejando dar maior prova do seu talento, ele fez uma aposta com o orador Hortênsio e o historiador Sisena de ser capaz de escrever um resumo da guerra Mársica, em prosa ou verso, em latim ou grego, de acordo com o que ficasse estabelecido por sorte. Isto, que a princípio foi tomado como pilhéria, tornou-se realidade, tendo-lhe caído, a meu ver, a prosa grega, porque de sua autoria é a pequena história que ainda hoje existe, em língua grega, da guerra que os romanos fizeram contra os marsos.

III. Seu afeto por seu irmão

III. Ele era muito afeiçoado a seu irmão Marcos Lúculo, conforme demonstrou em muitas oportunidades, sobressaindo a que segue, mencionada pelos romanos: Lúcio era-lhe mais velho, mas nunca solicitou nem aceitou encargos públicos antes dele, pois preferia o bemestar de seu irmão ao seu. Tanta bondade conquistou-lhe as mercês do povo, que, durante a sua ausência, elegeu-o edil, juntamente com seu irmão, em atenção a ele.

IV. Sila agarra-se a ele, ocupando-o em diversas circunstâncias

IV. O esplendor de sua mocidade manifesta-se durante a guerra Mársica, na qual ele praticou muitos atos sensatos e de grande audácia. Sila porém, chamou-o a si, não pelos cometimentos realizados, e sim devido à sua constância, à sua bondade e afabilidade. Feita a escolha, Sila ocupou-o sempre, de começo ao fim, nos afazeres mais importantes e de maior responsabilidade, sendo um deles o da cunhagem de moedas no Peloponeso, cuja maior parte foi despendida na guerra contra Mitrídates. Foi a razão por que as moedas tornaram-se conhecidas por Luculianas, tendo, durante muito tempo, livre circulação entre os guerreiros, que com elas adquiriam o que lhes era necessário, e ninguém se recusava em aceitá-las.

Depois, sendo Sila, em Atenas, o mais forte em terra, mas o mais fraco no mar, o que fazia com que seus inimigos lhe interceptassem todos os víveres, mandou Lúculo ao Egito e à Líbia, para trazer-lhe os navios que encontrasse naquelas regiões. Embora se achassem no mais rigoroso inverno, quando foi incumbido de tal missão, ele fez-se ao mar com três bergantins gregos e três galés rodianas, expondo-se não só aos perigos marítimos, em tão longa viagem, como aos ataques inimigos, muito mais fortes, que singravam por toda parte, sempre com excelente frota. Vencendo todas as dificuldades, ele primeiro desembarcou na ilha de Cândia, que submeteu às suas ordens, seguindo depois para a cidade de Cirene, onde encontrou os habitantes fatigados de lutas civis e das contínuas opressões a que os submetiam os tiranos. Ele abateu a tirania, estabelecendo ali uma forma de governo adequada às circunstâncias, garantindo-lhes, como fizera Platão, outrora, a seus antepassados, absoluta tranquilidade. Como lhe solicitassem leis relativas ao melhor modo de gerir e governar os negócios públicos, ele respondeu não sentir-se à vontade, para ditar leis a pessoas tão ricas, felizes e opulentas como elas, por não haver coisa mais difícil de se frear do que o homem que tem dinheiro à sua disposição; dando-se o contrário com o que a sorte ajudou a enriquecer, que está sempre pronto a receber conselhos e ordens. Esta advertência tornou os cirênios, dali por diante, mais dóceis e mais obedientes às ordens estabelecidas por Lúculo.

V. Ele vai ao Egito. Honras que recebe de Ptolomeu

V. Partindo dali para o Egito, durante a travessia ele foi inesperadamente atacado por corsários, perdendo boa parte dos navios que havia reunido. Conseguindo salvar-se, foi pomposamente recebido na cidade de Alexandria, pois toda a esquadra real foi-lhe ao encontro, em boa ordem e bem equipada, do mesmo modo que procedia com o rei, quando regressava de alguma viagem marítima. O próprio rei Ptolomeu, então ainda muito jovem, fezlhe o melhor acolhimento possível, pois, entre outras demonstrações de amizade, alojou-o e alimentou-o em seu castelo real, onde, até então, nunca fora hospedado nenhum capitão estrangeiro; nem poupou despesas, para homenageá-lo, coisa que nunca fez com outros. Lúculo, porém, resumiu-se ao indispensável à sua manutenção, e resolveu não aceitar presente algum do rei, por mais desdenhoso que fosse; negou-se a visitar a cidade de Mênfis e qualquer das raridades e maravilhas de renome, existentes no Egito, sob o fundamento de ser isso próprio de homem que corre o mundo só para ver e distrair-se, não já para ele, que deixara seu capitão em campo, na sede do comando, diante das muralhas dos inimigos.

Finalmente, o jovem rei Ptolomeu não quis entrar em aliança com Sila, receoso de meter-se na guerra, pois bem que lhe pediu Lúculo gente e navios para levar a Chipre. Logo que ele quis embarcar, o rei disse-lhe adeus, abraçou-o, e ofereceu-lhe uma linda e preciosa esmeralda engastada em ouro, que Lúculo logo recusou; mas, como o rei lhe mostrasse a sua efígie ali gravada, acabou aceitando, receoso de que, julgando-o partir descontente com a sua pessoa, o rei lhe preparasse alguma emboscada no mar.

VI. Por meio de que astúcia ele foge aos inimigos que o esperavam de emboscada

VI. Tendo conseguido certo número de navios nas cidades marítimas dos arredores, que não homiziavam piratas e corsários, participando dos seus furtos e assaltos, ele foi ter a Chipre, onde recebeu a notícia que seus inimigos, ocultos em alguns cabos, aguardavam a sua passagem, para atacá-lo de surpresa. À vista disso, ele fez aportar os navios, e preveniu as cidades próximas que resolvera invernar ali, razão por que o aprovisionassem de víveres e de quanto fosse necessário a passar o inverno e esperar a nova estação. Nem bem o tempo permitiu, ele fez-se de novo ao mar, com toda a esquadra, singrando durante o dia de velas arriadas, e à noite de velas alteadas, sendo tão bem sucedido, com este ardil, que chegou a Rodes sem perder um único navio. Os rodianos forneceram-lhe outros, e, os gnídeos e os da ilha de Co, instigados por ele, abandonaram o partido do rei Mitrídates e foram, em sua companhia, guerrear os de Samos. Ele, porém, só com sua gente expulsou de Quio as forças do rei, e libertou os colofônios, aprisionando o tirano Epígono, que os submetia à escravidão.

VII. Fímbria propõe-lhe atacar Mitrídates por mar

VII. Mais ou menos nessa época, Mitrídates foi obrigado a deixar a cidade de Pérgamo e a retirar-se para a de Pitana, na qual Fímbria retinha-o fortemente sitiado por terra. À vista disso, ele mandou prevenir suas forças navais e marítimas de toda a costa, sem ousar atacar nem arriscar-se a um embate terrestre com Fímbria, que sabia ser homem valente e arrojado por natureza, e que levaria vantagem sobre os seus. Fímbria bem se apercebeu disso; mas, não possuindo forças navais, mandou pedir a Lúculo que se dirigisse para ali com sua frota, a fim de ajudá-lo a derrotar o maior e mais cruel inimigo do povo romano, e impedir que tão bela e rica presa, perseguida com tanto trabalho e risco, lhes escapasse, já que por si mesma se fora lançar entre as suas reses; pediu-lhe que não deixasse de atender, porque, se Mitrídates fosse apanhado, a ninguém, senão a ele, caberia a grande honra e glória de haver-lhe impedido a fuga, proporcionando o meio de vencê-lo, e de repartirem igualmente os louvores do grande empreendimento. Além disso, a derrota de Sila fana com que os romanos se esquecessem de todas as proezas e grandes feitos de armas por ele realizados na Grécia, nas cidades de Queronéia e de Orcomene.

VIII. Duas vitórias alcançadas por Lúculo sobre as frotas de Mitrídates

VIII. Tais foram as propostas que Fímbria lhe fizera, nas quais nada havia de extraordinário, ou pelo menos não demonstrava. Ninguém duvida que, se Lúculo tivesse atendido ao pedido, e tivesse ido, com seus navios, fechar a entrada do porto da cidade em que Mitrídates estava sitiado, a pequena distância dele, a guerra acabaria ali, e livraria o mundo da incalculável série de males que sobrevieram. Mas, ou porque Lúculo desse mais valor ao que devia a Sila, do qual era tenente, do que a qualquer outra consideração e proveito, de caráter privado ou público; ou porque odiasse e abominasse Fímbria, como verdugo, que pouco antes, por deplorável ambição, havia manchado as mãos no sangue de seu amigo e chefe; ou por qualquer providência e concessão divina, ele poupou, então, Mitrídates, para torná-lo depois um adversário digno, capaz de fazê-lo por à prova todo o seu valor. Tanto isto é verdade, que ele, ao invés de atender ao pedido de Fímbria, deu a Mitrídates tempo e espaço suficientes para fugir e zombar de todo o esforço de Fímbria. Depois, sozinho, derrotou a esquadra do rei, perto do cabo Lecto, na costa de Troada, e junto à ilha Tenedos, onde Neoptolemo, tenente da marinha de Mitrídates, que o esperava com maior número de navios, embargou-lhe inesperadamente o avanço, lançando-se sobre a nau capitânia, galera rodiana de cinco remos em cada banco, governada pelo piloto Demágoras, muito afeiçoado aos romanos e experimentado nos combates navais. Como Neoptolemo corresse ruidosamente ao seu encontro, ordenando a seu piloto um choque de proa, que seria fatal, visto ser a galera real forte e maciça, e bem armada de pontas e esporões de cobre, Demágoras fez habilmente girar a sua, e recebeu o choque na popa, sem graves danos, dada a posição baixa da mesma. Neste ínterim seus homens se aproximaram, e Lúculo ordenou ao piloto que retomasse a posição primitiva, praticando atos de grande valor; afugentou seu inimigos e expulsou Neoptolemo.

IX. Ele ataca de surpresa os habitantes de Mitilene, e derrota-os completamente

IX. Partindo dali, ele foi ao encontro de Sila, no momento em que este ia atravessar o mar, a caminho do Quersoneso, ajudando-o a passar sua esquadra, e assegurando-lhe a passagem. Ao ser concluída a paz, e ao retirar-se o rei Mitrídates aos seus domínios e reinos, situados ao longo do mar Maior, Sila condenou a província da Ásia, por se haver rebelado, a multa de vinte mil talentos, que correspondem a doze milhões de libras. Para haver tão elevada quantia foi comissionado Lúculo, com poderes de mandar cunhar as moedas, que foram de grande utilidade às cidades da Ásia, dado o rigor com que Sila se utilizara delas; pois, em situação tão ruinosa e odiosa para todos, ele portou-se como homem reto, honestíssimo, comedido e humano. Quanto aos mitilenos, que se rebelaram abertamente contra ele, apenas desejava que reconhecessem seu erro, e que, como castigo de haverem aderido a Mário, sofressem uma leve punição. Vendo-os, porém, excessivamente teimosos em sua infelicidade, dirigiu-se contra eles, e, derrotando-os em combate, obrigou-os a meterem-se em suas muralhas, sitioulhes a cidade, lançando mão deste ardil: durante o dia fez-se ao mar, à vista de todos os moradores da cidade, singrando para a cidade de Eléia; à noite, porém, voltou secretamente, e, sem fazer o menor ruído, colocando-se de emboscada no lugar mais próximo da cidade. Os mitilenos, que nada suspeitavam, saíram na manhã seguinte, temerária e desordenadamente, para pilhar e saquear o acampamento dos romanos, certos de não encontrar ninguém ali. Lúculo saltou de improviso sobre eles, aprisionou muitos, e matou uns quinhentos dos que procuraram defender-se; ganhou seis mil escravos, além de enorme quantidade de outros despojos.

X. Sila nomeia-o, por testamento, tutor de seu filho

X. Ocupado, como se achava, com os negócios da Ásia, os deuses impediram-no de participar da longa série de males e misérias de toda espécie, a que Sila e Mário submeteram a pobre Itália naquela época; o que não obstou que Sila lhe dedicasse a mesma estima e consideração concedida aos outros amigos, pois, como já dissemos, dedicou-lhe seus Comentários, e, em testamento, nomeou-o tutor de seu filho, deixando Pompeu esquecido. Foi esta, ao que parece, a origem da discórdia e do ciúme surgidos mais tarde entre os dois, jovens e ávidos de honrarias.

XI. Ele é nomeado cônsul

XI. Pouco depois da morte de Sila, ou seja, um ano antes do início da guerra de Espártaco e da morte de Sertório, Lúculo foi eleito cônsul. Começaram então a propalar ser indispensável recomeçar a guerra contra Mitrídates, o mesmo fazendo Marcos Cota, que dizia, em toda parte, não achar-se ela extinta nem amortecida, mas unicamente adormecida. Foi por isso que, ao serem sorteadas as províncias que os cônsules iriam governar, Lúculo ficou muito triste, ao ver que a Gália entre os Alpes e a Itália, lhe caíra por sorte. Pareceu-lhe não ser província em que pudesse fazer coisa digna de nota; e, nesta conjuntura, Pompeu, que diariamente adquiria maior fama, pelas façanhas que realizava na Espanha, seria fatalmente eleito comandante das forças contra Mitrídates, logo que concluísse a guerra ali. A esse tempo Pompeu mandou pedir que lhe remetessem com urgência, dinheiro para pagamento do soldo às tropas, escrevendo ao Senado que, caso não o atendessem sem demora, ele abandonaria Sertório e a Espanha, e reconduziria todo o seu exército à Itália. Lúculo empregou todo o seu prestígio, para que o dinheiro lhe fosse logo remetido, receoso que ele chegasse à Itália no ano do seu consulado, e, possuidor de poderoso exército, fizesse e obtivesse em Roma o que melhor entendesse, pois Cetego, muito reputado e querido ali como administrador, por fazer e dizer tudo quanto fosse do agrado do povo, estava desavindo com ele Lúculo, que reprovava seus costumes e modo de vida, próprios de pessoa viciada e dissoluta, e movia-lhe guerra aberta. Havia, além disso, outro arengueiro popular, chamado Lúcio Quíncuo, que pretendia desfazer e anular todas as ordens e atos de Sila, isto é, revolver por completo a administração pública, e pôr em polvorosa e combustão a cidade de Roma, que até então estivera em completa paz e repouso. Lúculo admoestou-o delicadamente, em caráter reservado, e, Usando da mesma cortesia em público, fê-lo desistir do mau propósito, reconduziu-o ao uso da razão, e desfez, com habilidade e sabedoria, para o bem da coisa pública, o início de um mal que poderia dar origem a inúmeras desgraças.

XII. Ele é encarregado da guerra contra Mitrídates

XII. Neste momento chegaram notícias do falecimento de Otávio, governador da Cilicia. Surgiram logo muitos pretendentes, que se puseram a brigar e a demandar por causa deste governo, e a cortejar Cetego, por ser o que melhor podia fazê-los conseguir o seu desejo. Lúculo não ligava importância ao governo da Cilicia, pelo fato de ser ela província; mas, considerando que a Capadócia estava-lhe anexa, e, certo de que, se conseguisse obter o seu governo, a ninguém, mais do que a ele, caberia a tarefa de guerrear Mitrídates, resolveu pôr em prática todos os meios para consegui-lo. Depois de haver se utilizado de todo expediente, foi, por fim, contra a sua índole, obrigado a recorrer a um meio pouco louvável e honesto, mas o mais expedito para conseguir o que almejava. Havia em Roma, naquele tempo, uma mulher, chamada Précia, célebre por sua beleza, graça e encanto no falar, tão honesta como as que publicamente mercadejam seus corpos. Mas, em razão de empregar a sua valia em benefício dos que com ela mantinham relações, para o bem da coisa pública e dos que amava, adquiriu fama de bondosa e dominadora, capaz de levar a bom termo uma boa empresa. Além disso, ela conquistara Cetego, muito reputado em Roma, que manejava a bel-prazer todos os negócios públicos, e que se achava tão enamorado dela, que não podia perdê-la de vista.

Assim sendo, ela enfeixava em suas mãos todo o poder e autoridade da cidade de Roma, porque nada se fazia, em favor do povo, que não emanasse de Cetego, e este a nada atendia, que não fosse solicitado por Précia. Por isso, Lúculo tratou de achegar-se e de conseguir-lhe o auxílio, por meio de presentes e de outros agrados que pôde imaginar, embora já fosse uma grande honra, para uma mulher ambiciosa e altiva como ela, ser procurada e solicitada por uma personagem como Lúculo, que, assim, conseguiu ter Cetego à sua disposição. Além disso, ele não fez outra coisa senão louvar Cetego em todos comícios populares, e em pedir-lhe o governo da Cilicia. Alcançado este, ele não precisou mais do auxílio de Précia e de Cetego, pois o povo todo conferiu-lhe, por unanimidade, o direito de guerrear Mitrídates, considerando-o o único capaz de enfrentá-lo vantajosamente, visto ainda achar-se Pompeu às voltas com Sertório, na Espanha, e ser Metelo muito avançado em idade para um feito desta natureza. Pompeu e Metelo eram os únicos que podiam contender e lutar pela posse do cargo. Não obstante Marcos Cota, seu concorrente ao consulado, tanto pediu ao Senado, que também foi mandado, com uma armada, guardar as costas da Propôntida, e defender a Bitínia.

XIII. Ele restabelece a disciplina no seio de suas tropas

XIII. De posse desta missão, Lúculo passou para a Ásia, com uma legião novamente recrutada em Roma. Lá chegando, arrebanhou o resto das forças que encontrou, constituída de gente corrompida e gasta pelos prazeres e pela avareza, sobressaindo os libertinos, conhecidos por libertinos fimbrianos, homens debochados e difíceis de serem submetidos à disciplina militar, por se haverem de há muito habituado a viver a vontade, sem obedecer a quem quer que fosse. Foram eles que, com Fímbria, assassinaram seu capitão Flaco, cônsul do povo romano, e depois traíram o próprio Fímbria, entregando-o a Sila. Embora turbulentos, intratáveis e perversos, não deixavam de ser bons combatentes, valentes e perfeitos conhecedores dos trabalhos da guerra. Lúculo em pouco tempo diminuiu-lhes o atrevimento, e disciplinou igualmente os outros, que nunca tiveram a comandá-los um homem de valor, sendo indivíduos que os adulavam e só faziam o que eles queriam.

XIV. Mitrídates faz novos preparativos de guerra

XIV. Quanto aos inimigos, eles se achavam nesta situação: Mitrídates, que a princípio fora audacioso e valente, como o são geralmente os sofistas, a ponto de ousar guerrear os romanos com um exército aparatoso, mas inútil e nulo, depois de ser uma vez castigado e derrotado vergonhosamente, sofrendo inúmeras perdas, ao fazer segunda guerra restringiu-se ao indispensável, e fez de suas forças um verdadeiro e útil instrumento de guerra, próprio a satisfazer o fim que tinha em vista: proibiu o acumulo desordenado de gente de toda nacionalidade entre suas forças; deteve as arrogantes ameaças dos bárbaros, proferidas em tantas línguas diferentes; acabou com as armas ornadas de bordados, ouropéis e pedras preciosas, que só serviam para enriquecer os vendedores e nenhum estímulo davam aos que as usavam. Mandou forjar espadas longas e fortes, à romana, escudos pesados e maciços, e reuniu os cavalos melhores e mais adestrados, sem se preocupar com o seu aparato; reuniu cento e vinte mil combatentes a pé, dispostos e aparelhados como um exército de romanos, com dezesseis mil cavalos de assalto, sem contar os que arrastavam a: carretas de artilharia, munidas de foices em toda a volta, em número de cem. Além disso, reuniu numerosas galeras e navios, desprovidos dos belos pavilhões dourados que ostentaram na primeira vez, sem banheiras e estufas, sem dormitórios e gabinetes deliciosos, destinados às senhoritas, mas repletos de armas, de flechas e de dardos, e com o dinheiro indispensável ao pagamento do soldo às tropas. Com este séquito, primeiro ele foi invadir a Bitínia, no ocidente da Ásia, em cujas cidades foi novamente bem recebido, o mesmo acontecendo em todas as do resto do continente, que haviam recaído na miséria, devido à crueldade dos rendeiros e usurários romanos, que as sobrecarregavam de multas e impostos, submetendo-as a toda espécie de castigos e vexames, negando até alimentos às populações. Lúculo livrou-as de tais tormentos, e, por meio de conselhos conseguiu evitar que as populações se rebelassem.

XV. Ele vence o cônsul Cota em terra e no mar

XV. Enquanto Lúculo assim procedia, Marcos Cota, percebendo que a ausência do companheiro dava-lhe ensejo de satisfazer seus desejos, preparou-se para combater Mitrídates. E, como, de muitos lugares, lhe chegassem notícias de achai Lúculo na Frigia, à frente do seu exército, pronto para ir ter com ele, convencido de ter em mãos, como coisa certa, a honra do triunfo, receoso de que Lúculo viesse dela participar, adiantou-se no combate, sendo derrotado tanto em terra como no mar; perdeu sessenta navios, com toda a tripulação, e quatro mil soldados, sendo acossado e sitiado na cidade de Calcedônia ou Bitínia, no Bósforo, sem esperança de poder salvar-se, a não ser que Lúculo o socorresse. Não faltaram, no acampamento de Lúculo, os que lhe pedissem e aconselhassem a deixar Cota entregue à sua sorte, e a dirigir-se para determinado lugar, no reino de Mitrídates, completamente desguarnecido e sem qualquer meio de defesa; não era justo ir em socorro de quem, por sua tola temeridade e falta de tino, não só enganara e perdera os que se achavam sob suas ordens, como os impedira de vencer e terminar a guerra sem disparar um tiro. Lúculo, porém, respondeu-lhes: "Que preferia salvar um romano que fosse, a ganhar tudo o que estivesse em poder dos inimigos". Como Arquelau, que na primeira guerra fora tenente de Mitrídates e nesta segunda se pusera ao lado dos romanos, lhe garantisse que, se ele fosse ao reino de Ponto, todos ali se rebelariam contra Mitrídates e colocar-se-iam a seu lado, Lúculo disse-lhe que, se tal fizesse, "ele não se mostraria mais cobarde que os bons monteiros, que nunca largam a besta, mesmo para entrar em sua casa". Assim dizendo, fez seu exército marchar ao encontro de Mitrídates, que linha, ao todo, trinta mil soldados de infantaria e dois mil e quinhentos de cavalaria. Aproximando-se dos inimigos o mais possível, para tê-los sempre sob suas vistas, admirou-se Lúculo do elevado número de combatentes que vira em campo, e teve vontade de não travar combate, ponderando ser melhor deixar o tempo correr e delongar o embate. Um tal Mário, porém, capitão romano, que Sertório mandara da Espanha a Mitrídates, com alguns combatentes, foi-lhe ao encontro, provocando-o à luta.

XVI. Ele dispõe seu exército, em ordem de combate, diante do de Mitrídates. Um milagre impede o ataque

XVI. Lúculo, a seu turno, pôs sua gente em posição de combate. Mas, no momento em que os dois exércitos iam entrechocar-se, o ar fendeu-se de repente, sem que ninguém notasse qualquer mudança sensível de tempo, e um grande corpo em chama, semelhante a um tonel, cor de prata fundida, desceu entre eles. Este sinal e presságio celeste assustou de tal modo os dois exércitos que eles se retiraram sem combater. Origina-se deste maravilhoso sinal, dizem, o nome Otries, dado àquele lugar da Frigia.

XVII. Ele procura ganhar tempo, sem arriscar-se a agir

XVII. Refletindo, a seguir, não possuir Mitrídates dinheiro e abastecimento suficientes para ocorrer, durante muito tempo, às necessidades de tantos milhares de homens, que via acampados diante dele, Lúculo inquiriu a tal respeito um dos prisioneiros, e, para obter a confirmação, outros dois. Comparando a quantidade de trigo e de outros víveres armazenados com o número de homens a serem alimentados, concluiu que em três ou quatro dias tudo estaria esgotado, e decidiu manter-se no seu primeiro propósito de deixar o tempo correr, sem tentar a luta. Fez buscar trigo em toda parte e recolhê-lo ao acampamento, bem como outros gêneros alimentícios, para que, com o seu exército ao abrigo de necessidades, melhor pudesse aguardar a ocasião propícia ao ataque aos inimigos.

XVIII. Mitrídates vai sitiar Cízico

XVIII. Mitrídates, por sua vez, estudava os meios de apoderar-se, de surpresa, da cidade de Cízica, na Propôntida, cujos cízicos, com Cota, haviam sido derrotados e afastados de diante da Calcedônia, perdendo três mil homens e dez navios. Para que Lúculo nada soubesse do seu propósito, ele partiu certa noite, logo depois do jantar, aproveitando a noite escura e chuvosa, e foi tão feliz que, pela manhã, ao romper do dia, achou-se diante da cidade, e acampou no lugar em que se ergue o templo da deusa Adrastia, isto é, de Nemésis, que é de destino fatal.

Sabedor disso, Lúculo foi-lhe ao encalço; e, satisfeito de não ser apanhado desprevenido pelos inimigos, foi entrincheirar-se, com seu exército, na vila denominada Trácia, em lugar excelente, para onde convergiam todas as estradas e caminhos das regiões vizinhas, proporcionando-lhe os meios de obstar a passagem de víveres para o acampamento de Mitrídates. Notando o feliz acaso, ele não o quis ocultar à sua gente; e, ao ver o acampamento repleto de trincheiras e bem aparelhado, reuniu todas as forças, e, em rápido discurso, declarou-lhes ter absoluta certeza de proporcionar-lhes a vitória dentro de alguns dias, sem que ela lhes custasse uma gota de sangue.

XIX. Receios dos cizicenos

XIX. Nesse decurso de tempo, Mitrídates assediou os cízicos, dispondo o seu exército em dez acampamentos, e bloqueou a costa, de ambos os lados, fechando, com seus navios, a entrada do canal que separa a cidade da terra firme. Apesar disso, os cízicos mostraram-se corajosos e decididos a suportar e vencer todas as dificuldades, em favor dos romanos. Afligia-os, porém, o fato de desconhecerem o paradeiro de Lúculo e não terem notícias dele, embora estivesse acampado em lugar facilmente visível da cidade. Os soldados de Mitrídates por sua vez, enganavam-nos por esta forma, mostrando-lhes os romanos, vantajosamente acampados atrás deles, tão perto dali: "Veem aquele acampamento? São os medos e os armênios, que o rei Tigrano mandou em auxílio de Mitrídates". Estas palavras punham os cízicos inquietos, porque, vendo tantos inimigos espalhados pelos arredores contra eles, e em número tão avultado, achavam que Lúculo não teria por onde passar, quando lhes fosse em auxílio. Por fim, um indivíduo chamado Demônax, que Arquelau lhes enviou, notificou-os da chegada de Lúculo, não sendo acreditado. Suas palavras foram consideradas um simples meio de encorajamento, para fazê-los suportar por mais tempo os sofrimentos e misérias do cerco a que estavam submetidos. Pouco depois, porém, chegou à cidade um rapazinho, que fora aprisionado pelos inimigos e que depois conseguira fugir. Como lhe perguntassem onde se achava Lúculo, o rapaz levou tudo em troça, pensando que quisessem zombar dele, fingindo desconhecer. Mas depois, notando que falavam a verdade, mostrou-lhe com o dedo o acampamento dos romanos, arrancando de todos os peitos um suspiro de alívio e de satisfação.

XX. Prodígios que os garantem

XX. Bem perto da cidade de Cízica há um lago denominado Dacilítido, navegável por grandes navios. Lúculo abasteceu-se no local do que julgou mais necessário e levou tudo para bordo; embarcou o maior número possível de soldados, e fê-los entrar à noite na cidade, sem serem percebidos pelos vigias inimigos. Este pequeno auxílio reconfortou extraordinariamente os sitiados. E, parece que os deuses, satisfeitos de vê-los tão corajosos, procuraram cientificá-los da vitória por meio de sinais muito evidentes que lhes enviaram, sobressaindo o seguinte: aproximava-se o dia da festa de Prosérpina, e os moradores da cidade não tinham vaca preta, para imolar no ato solene daquele dia, conforme o exigiam suas antigas cerimonias. Chegado o dia, eles levaram para junto do altar uma vaca qualquer, pois, a que criaram especialmente para ser submetida ao sacrifício pastoreava com o resto do gado da cidade na outra margem do canal. Naquele dia, porém, separando-se do resto da manada, a vaca atravessou a nado o canal, e foi apresentar-se ao sacrifício. A própria deusa Proserpina apareceu à noite, em sonho, a Aristágoras, secretário de Estado dos negócios públicos dos cízicos, e lhe disse: "Vim trazer-te a flauta da Líbia em oposição à trombeta pôntica. Dize, por mim, aos teus cidadãos, que eu lhe peço que tenham muita coragem". No dia seguinte, tendo o secretário divulgado sua visão, os cízicos ficaram pasmos, não chegando a compreender a significação das palavras da deusa. Mas, ao romper da aurora, desencadeou-se um furacão, que provocou tremenda tempestade marítima; as máquinas e engenhos de guerra do rei, verdadeiras maravilhas inventadas e armadas pelo engenheiro tessaliano Nicônidas, que já se haviam aproximado das muralhas da cidade para atacá-los, começaram a ranger e estalar com tal ruído, agitados pelo vento, que facilmente podia-se prever o que iria acontecer. De repente o vento sul adquiriu tal violência que despedaçou e afundou num instante todos os engenhos, inclusive uma torre de madeira de cem côvados de altura, que abalou e derrubou. Dizem ainda, que, na cidade de Ilion, a deusa Minerva apareceu em sonho a diversas pessoas, lavada em suor, e mostrando o seu véu rasgado, em consequência do auxílio que acabava de prestar aos cízicos, naquele instante. Em atenção a isto, os habitantes de Ilion conservam, ainda hoje, uma coluna, como perene recordação do fato.

XXI. Consideráveis vantagens obtidas por Lúculo sobre as tropas de Mitrídates

XXI. Este acontecimento inesperado, que livrou os cízicos do ataque a que iam ser submetidos e das amarguras do sítio, acrescido dos tormentos da fome, que obrigava seus homens a fazer uso da carne humana, chamou Mitrídates à dura realidade e fê-lo desistir da sua obstinada ambição e tola teimosia de permanecer ali por mais tempo. Tanto mais que a guerra que Lúculo lhe movia, consistia em obstar a entrada de víveres em seu acampamento. Assim, num dia em que Lúculo saíra para forçar uma cidadela qualquer que o aborrecia, próxima do seu acampamento, Mitrídates aproveitou a oportunidade e mandou quase todos os seus cavaleiros em busca de víveres na Bitínia, com carretas, bestas e as sobras dos seus soldados de infantaria. Sabedor disso, Lúculo voltou na mesma noite para o seu acampamento, e na manhã seguinte, de pleno inverno, seguiu-lhe as pegadas, unicamente com dez corpos de infantaria e toda a cavalaria. A neve era tão abundante, o frio tão rigoroso, e a temperatura tão baixa, que muitos soldados pereceram pelo caminho. Lúculo, porém, não se deteve, indo alcançar seus inimigos perto do rio Rindaco, na Frigia, destroçando-os de tal modo, que até as mulheres da cidade de Apolônia foram saquear-lhes os víveres e despojar os mortos, em número elevado, como é fácil calcular. Nesta jornada Lúculo apreendeu seis mil cavalos, numerosas bestas, e fez quinze mil prisioneiros, que levou para o seu acampamento, passando com tudo diante do acampamento inimigo. Admira-me, neste ponto, que o historiador Salústio afirme ter sido ah que os romanos viram, pela primeira vez, camelos, coisa que nunca haviam visto antes, pois não lhes faltou oportunidade, quando venceram o grande Antíoco, comandados por Cipião, e, mais recentemente, no ataque a Arquelau, perto das cidades de Orcomene e de Queronéia.

XXII. Nova vitória de Lúculo

XXII. Apavorado com esta derrota, Mitrídates resolveu fugir sem demora; e, para alongar e conservar Lúculo em sua perseguição durante certo tempo, ele resolveu mandar seu almirante, com a esquadra, ao mar da Grécia. Quando ele ia fazer-se de vela, seus homens o traíram, entregando-o a Lúculo, com dez mil escudos que estavam em seu poder, para subornar, corromper e conseguir o apoio de parte do exército dos romanos. Ciente do ocorrido, Mitrídates fugiu por mar, deixando o resto do seu exército ao cuidado dos seus comandantes. Em seguida Lúculo foi até o rio Grânico, na Mísia, onde fez numerosos prisioneiros e matou vinte mil homens. Neste encontro, dizem, morreram quase trezentas mil pessoas, entre soldados, cavaleiros e adidos ao acampamento. Satisfeito com o resultado, Lúculo regressou à cidade de Cízica, onde lhe foram prestadas as maiores homenagens, e seguiu em visita à costa do Helesponto, para reunir navios e aparelhar uma esquadra. Passando pela Troada, alojaram-no no templo de Vênus, onde, à noite, apareceu-lhe em sonho a deusa, recitando estes versos:

Como podes dormir, ó leão corajoso,
Tendo a teu lado fantasmas transformados em veados?

Ele levantou-se sem demora, reuniu seus amigos, e contou-lhes o que ouvira. Era ainda noite cerrada. Nisto, pessoas chegadas da cidade de Ihon declararam-lhe haver visto, no porto dos aqueanos, quinze galeras de cinco remos em cada assento, iguais às do rei Mitrídates, dirigirem-se para a ilha de Lemnos.

XXIII. Ele apodera-se de quinze galeras de Mitrídates, em Lemnos

XXIII. Lúculo deu logo de vela, e foi buscá-las. Ao chegar, matou o capitão Isidoro, e foi no encalço dos outros marinheiros, ancorados ao longo da costa. Vendo-o ir-lhes ao encontro, eles rumaram para a terra; e, combatendo do convés, mataram muitos soldados de Lúculo, que viu-se impossibilitado de envolvê-los pela retaguarda, devido ao lugar em que se achavam, e de forçá-los de frente, por terem as galeras flutuantes garantidas e firmemente defendidas pelas que se achavam ancoradas junto à costa. Vencendo a custo todas as dificuldades, Lúculo conseguiu desembarcar num ponto da ilha os melhores soldados que então possuía, os quais atacaram os inimigos pela retaguarda, matando alguns, e obrigando os outros a cortar os cabos que prendiam as galeras à beira-mar. Estes procuraram fugir; mas as galeras se entrechocaram e amolgaram, indo dar nas pontas e esporões das de Lúculo. Muitos dos que nelas se achavam morreram, e os outros, entre os quais o capitão romano, Mário, que Sertório enviara da Espanha a Mitrídates, foram feitos prisioneiros. Achando-se Mário embriagado, foi entregue a Lúculo, de acordo com suas ordens de não matarem inimigos embriagados, para que não tivessem a honra de morrer em combate e passassem pela vergonha e ignomínia de morrer sob a ação da justiça.

XXIV. Ele persegue Mitrídates, cuja frota é destruída por uma tempestade

XXIV. Feito isto, Lúculo apressou-se em ir pessoalmente perseguir Mitrídates, que ainda esperava encontrar na costa da Bitínia, onde Vocônio devia tê-lo detido, pois fora mandado à frente, com alguns navios, à cidade de Nicomédia, na Bitínia, para impedir-lhe a fuga. Vocônio, porém, acolheu-se à ilha de Samotrácia, em sacrifício aos seus deuses, e para ser recebido na confraria de sua religião, não conseguindo chegar a tempo de impedir a partida de Mitrídates, que já se havia feito de vela com toda a frota, esforçando-se por alcançar o reino de Ponto, antes que Lúculo voltasse do lugar em que se achava. Durante a viagem, porém, ele foi apanhado por violenta tempestade, que lhe arrebatou parte dos navios, despedaçou e afundou os mais, enchendo costas e praias, durante muitos dias, de cadáveres que as ondas lhes levavam. Mitrídates achava-se em um grande navio de carga, que, devido ao tamanho, não podia alcançar a costa nem singrar ao longo dela, e, devido à tempestade, tornara-se tão cheio de água e tão pesado que os esforços, conhecimentos e habilidade dos pilotos tornaram-se improfícuos. Assim, ante a impossibilidade de fazer-se ao mar alto, ele foi obrigado a transferir-se para um pequeno bergantim de corsários, e a pôr sua pessoa e vida nas mãos de ladrões e salteadores do mar, com a ajuda dos quais, sujeito a todos os perigos e sem qualquer esperança de salvação, ele alcançou a terra e chegou à cidade de Heracléia, no reino de Ponto. A jactância de Lúculo perante o senado romano, nessa ocasião, não o pôs, pela fúria dos deuses, de acordo com o seu pensamento. Tendo o senado deliberado mandar preparar e equipar uma grande esquadra, para pôr fim à luta, na qual seriam gastos um milhão e oitocentos mil escudos, Lúculo impediu, por meio de cartas, que tal se fizesse; escreveu, desassombradamente, que, sem tamanha despesa, e tão grande aparato, ele sentia-se bastante forte para expulsar Mitrídates do mar, servindo-se dos navios emprestados por seus aliados e confederados. E o fez, de fato, com a boa graça e ajuda dos deuses, porque, dizem, a horrível tempestade que destruiu a esquadra de Mitrídates, foi provocada por Diana, irritada com o fato de haverem os pônticos saqueado seu templo, na cidade de Príapos, e retirado e levado sua imagem.

XXV. Queixas dos soldados de Lúculo

XXV. Muitos aconselharam Lúculo a transferir a continuação desta guerra para outra estação. Não obstante as razões apresentadas, ele embrenhou-se pelas regiões da Galácia e da Bitínia, e invadiu o reino de Mitrídates. A princípio ele lutou com a falta de víveres, pois só tinha trinta mil homens da Galácia, a acompanhar-lhe o exército, tendo, cada um, meia fanga de trigo às costas. Mas, à medida que foi avançando e conquistando tudo, conseguiu tal abundância de todas as coisas, que um boi era vendido, em seu acampamento, por uma dracma de prata, ou sejam, três soldos e seis décimos, aproximadamente, e um prisioneiro por catorze, mais ou menos. Tão avultada era a quantidade de outros despojos que, não encontrando compradores ou quem os quisesse, punham-nos fora. Percorreram assim a região toda, até à cidade de Temiscira e planícies do rio Termodon, sem se deter em qualquer lugar mais que o tempo necessário a saqueá-lo e pilhá-lo. Isto desagradou os soldados, que começaram a queixar-se do comandante, alegando que ele recebia as cidades todas sem luta e não lhes proporcionava meios de se enriquecerem pela pilhagem. "Neste andar, diziam, ele nos levará além de Amiso, cidade rica e forte, que tomaríamos facilmente à força e apressaria o sítio, para nos fazer acampar nos desertos dos tibarênios e dos caldeus, a fim de combater Mitrídates!”

XXVI. Razões que Lúculo dá de sua conduta

XXVI. Lúculo não ligou importância às lamurias e queixas dos seus soldados, porque nunca OS supôs capazes de enfurecer-se e mudar de opinião, como aconteceu depois. Ao contrário, confiou mais neles do que nos que permaneciam e distraíam longamente nas cidades e aldeias, que pouco valiam, dando tempo a que Mitrídates se refizesse e preparasse nova esquadra. "A razão, dizia-lhes, que me faz distrair e descansar em toda parte, é a que ele consiga tornar-se bastante forte e preparar um novo exército, capaz de nos enfrentar, ao invés de fugir. Não vedes que, atrás dele, há uma infinidade de regiões desertas, que não permitem seguir-lhe o rasto, e perto dele o monte Cáucaso, e outros inacessíveis, capazes de abrigar e refugiar não só a ele como inúmeros príncipes e reis que prefiram fugir a combater? Além disso, há poucos dias de caminho, da província dos cabirênios ao reino da Armênia, onde reside Tigrano, o rei dos reis, tão poderoso que desdenha os partas da Ásia e domina todas as cidades gregas até o reino da Média; que ocupa toda a Síria e a Palestina; que matou e exterminou os reis sucessores do grande Seleuco, e submeteu suas mulheres e filhas ao cativeiro. Este grande e poderoso rei é aliado de Mitrídates, tendo desposado sua filha, e não deixará de socorrê-lo, em caso de extrema necessidade. Ora, apressando-nos em atacar Mitrídates, correremos o risco de atrair novo inimigo em Tigrano, que de há muito busca uma aparente oportunidade para nos guerrear, e não poderia encontrá-la melhor do que esta, em defesa de um rei arruinado, seu vizinho e aliado, constrangido a jogar-se a seus braços. Que necessidade temos nós de procurar isto, e de ensinar a Mitrídates o que ele desconhece, isto é, que recorra a Tigrano, para nos guerrear? Isto ele nunca fará se não for constrangido, por julgar desonroso à sua pessoa. Não é melhor que lhe permitamos reunir de novo as forças do seu reino, e que se refaça, para que combatamos de preferência contra os colquianos, tibarênios, capadócios e outros povos semelhantes, que já vencemos tantas vezes, do que contra os medos e os armênios?

XXVII. Lúculo vai acampar diante de Mitrídates

XXVII. Lúculo manteve-se durante muito tempo neste propósito, diante da cidade de Amiso, prolongando o cerco, sem o forçar. Passado o inverno, ele encarregou Murena de continuá-lo, e foi com o resto do exército em busca de Mitrídates, que assentara acampamento perto da cidade de Cabira, com um exército de quarenta mil soldados de infantaria e quatro mil de cavalaria, decidido a esperar ali a chegada dos romanos. Confiando demasiado em suas forças, ele atravessou o rio Lico, e foi oferecer combate aos romanos numa campina. Houve algumas escaramuças de cavalaria, em que os romanos levaram a pior, sendo aprisionado um, chamado Pampônio, de grande reputação, e levado a Mitrídates, por achar-se gravemente ferido. Como Mitrídales lhe perguntasse se estava disposto a tornar-se seu aliado e amigo, no caso de salvar-lhe a vida, submetendo-o a tratamento, ele respondeu-lhe prontamente: "Sim, se fizeres as pazes com os romanos; no caso contrário, serei sempre teu inimigo". O rei louvou-lhe a virtude, e não lhe fez o menor mal.

XXVIII. Escaramuça em que, por fim, Lúculo tem vantagem

XXVIII. Lúculo receou descer à campina, por ser o contingente de cavalaria inimigo mais forte que o seu, e ficou indeciso se devia ou não enveredar pela montanha, coberta de matas e de florestas, e caminho bastante longo e acidentado. Achava-se nesta dúvida, quando, casualmente, seus homens prenderam alguns gregos escondidos numa caverna próxima, entre os quais se achava um velho chamado Artemidoro, que prometeu a Lúculo levá-lo a lugar forte e seguro, caso nele confiasse e quisesse segui-lo, dotado de fortaleza, perto da cidade de Cabira, onde poderia assentar seu acampamento. Lúculo confiou no velho, e à noite partiu com suas forças; transpôs algumas montanhas e desfiladeiros perigosos, e pela manhã achou-se no lugar prometido. Os inimigos admiraram-se da sua chegada e de tê-lo tão perto, em posição vantajosa para atacá-los ou deixá-los entocados, sem se poderem mover. Ficara ao arbítrio de ambas as partes, entrar ou não em luta. Estavam nesta situação, quando alguém, no acampamento de Mitrídates, soltou um veado. Alguns romanos foram-lhe ao encontro, para impedir-lhe a passagem, sendo atacados pelos soldados do rei, que os puseram em debandada. Envergonhados com a fuga dos companheiros, os romanos pediram instantemente a Lúculo que os lançasse à luta, dando-lhes o sinal de combate. Desejando mostrar-lhe quanto vale a presença de um comandante prudente e bom, Lúculo ordenou-lhes que não se afastassem de seus postos; foi pessoalmente à planície, e determinou aos primeiros fugitivos encontrados que parassem e voltassem a luta, no que foi prontamente atendido. Os outros os acompanharam, e, sem grande esforço, envolveram os inimigos, expulsando-os a seguir, e arrasando-lhes as fortalezas. Ao voltar ao acampamento, Lúculo submeteu os fugitivos a um duro vexame, que os romanos passaram a usar em casos semelhantes: pô-los em fraldas de camisa, diante de todos os companheiros, obrigando cada um a abrir uma cova de doze pés de comprimento.

XXIX. Um dandariano tenta assassinar Lúculo, sem o conseguir

XXIX. Havia, na hoste do rei Mitrídates, o príncipe dos dandarianos, povos bárbaros habitantes das cercanias dos lagos Meóticos. Chamava-se Oltaco. Era nobre, valente, afeito às armas; sensato, de bons costumes e companhia agradável; empreendedor, e o mais apto, em toda a hoste, para os grandes ataques. Achando-se sempre em rixa com os outros nobres de sua terra, pela posse do lugar de favorito do rei, resolveu dirigir-se a Mitrídates, comprometendo-se a prestar-lhe um serviço de grande valia, matando Lúculo. O rei exultou, a tal proposta, e, particularmente, elogiou-o sem reserva. Publicamente, porém, censurou-o e ofendeu-o, muito de indústria, para que ele, aparentando indignação, se apresentasse a Lúculo como aliado, e fosse bem recebido. E assim aconteceu. Lúculo recebeu-o com satisfação, por sabe-lo muito querido e respeitado em seu acampamento; e, para submetê-lo à prova, encarregou-o de uma missão, da qual ele se saiu admiravelmente, sendo muito elogiado. Com isto, a sua reputação cresceu de tal modo que, a partir de então, Lúculo passou a pedir-lhe alguns conselhos e a tê-lo como comensal. No dia em que este dandanano achou asada a oportunidade de executar o seu sinistro plano, ordenou a seus lacaios que tivessem seu cavalo preparado além das trincheiras; e, achando-se os soldados a descansar e a dormir no meio do acampamento, em pleno dia, ele foi à tenda de Lúculo, certo de não encontrar quem lhe impedisse a entrada, atendendo à intimidade e familiaridade com que o tratava, e porque tinha coisa muito importante a comunicar-lhe, segundo disse. Ele teria entrado, não resta dúvida, se o sono, que prejudica tantos outros comandantes, não tivesse preservado e salvo Lúculo, que dormia. Embora o camareiro Menedemo, que por felicidade guardava a porta, lhe dissesse ter chegado em má hora, porquanto Lúculo, fatigado de trabalhos e vigílias, se havia recolhido ao leito, Oltaco não quis retirar-se; e, a uma observação qualquer do camareiro, disse-lhe que entraria, com ou sem permissão, porque tinha coisas muito importantes a comunicar-lhe. Menedemo respondeu-lhe não haver coisa mais necessária e importante do que a conservação da vida e saúde de seu amo, que necessitava de descanso, e pô-lo fora da tenda aos empurrões. Oltaco amedrontou-se, foi, às escondidas, ao ponto marcado aos seus lacaios, montou a cavalo, e dirigiu-se ao acampamento de Mitrídates, sem ter executado o que lhe prometera. Aprendeu, assim, que a ocasião e as circunstâncias de momento produzem, nas grandes empresas, o mesmo efeito que os medicamentos ministrados aos doentes, isto é, ou salvam, ou matam os homens.

XXX. Diversas vantagens obtidas pelos oficiais de Lúculo sobre os de Mitrídates

XXX. Decorrido algum tempo, Lúculo mandou seu capitão Sornácio, com dez batalhões, em busca de víveres. Ciente disso, Mitrídates enviou-lhe ao encalço o capitão Menander, que foi atacado e derrotado por Sornácio, com grande perda de soldados. Logo depois Lúculo destacou o tenente Adriano, com boa tropa, a fim de que levasse para o acampamento trigo em abundância. Mitrídates não os deixou à vontade; pelo contrário, mandou-lhes ao encontro os capitães Menemaco e Miron, com maior número de soldados de infantaria do que de cavalaria, sendo todos mortos, exceção feita de dois, que levaram a notícia ao acampamento.

Mitrídates tratou de disfarçar o abalo que essa comunicação lhe causara, declarando ser a perda muito menor do que a que se podia prever, dada a ignorância e temeridade dos seus tenentes. Ao regressar ao acampamento, Adriano fê-lo com tanto aparato e orgulho, dado o elevado número de carroças de trigo e de espólios que levava, que Mitrídates, desesperado, vendo sua gente apavorada, resolveu não permanecer ali por mais tempo. Assim, os fidalgos mais achegados a ele começaram a abandonar secretamente o acampamento, levando suas bagagens, e procurando impedir que os outros fizessem o mesmo.

XXXI. Mitrídates foge

XXXI. Ante este procedimento dos favoritos do rei, os outros combatentes se amotinaram, atacaram-nos, mataram-nos, e se apoderaram de suas bagagens. Dorialo, um dos principais capitães de todo o acampamento, foi morto, e despojado da roupa do corpo, única coisa que possuía. Hermes, o chefe dos sacrifícios, foi pisado e morto pela turba dos fugitivos, à saída do acampamento. O próprio Mitrídates, apavorado com a atitude dos fugitivos, saiu do acampamento sem um soldado, um escudeiro ou alguém que lhe fosse buscar um cavalo.

Quando o camareiro Ptolomeu descobriu-o no meio da multidão fugitiva, e apeou do seu cavalo, oferecendo-lho, já era tarde: os romanos já lhe estavam no encalço, bem próximos, e na iminência de agarrá-lo. A cobiça e concupiscência dos soldados, porém, fez-lhes perder a presa de há muito perseguida com tanto sacrifício e riscos de combates, privando Lúculo da maior e mais completa de todas as vitórias. Com mais um pequeno avanço Mitrídates seria fatalmente detido. Mas, casual ou propositalmente, um dos muares que levavam o ouro e a prata do rei foi largado a meio do caminho, entre o fugitivo e os romanos. À vista do animal, estes se detiveram a despojá-lo do ouro e da prata, lutando entre si pela posse da pilhagem. Deste modo Mitrídates ganhou tal dianteira que conseguiu salvar-se. Além deste grande dano, a ganância dos soldados ocasionou outro a Lúculo, também relevante, como se verá pelo que segue: preso um dos principais secretários do rei Calistrato, Lúculo ordenou que o levassem ao acampamento. Chegando ao conhecimento dos que o conduziam, que ele usava um cinturão do valor de quinhentos escudos, mataram-no, para apoderar-se do objeto, e completaram a obra saqueando e pilhando o acampamento dos inimigos.

XXXII. Ele faz morrer suas mulheres e suas irmãs

XXXII. Depois desta fuga de Mitrídates, Lúculo tomou a cidade de Cabira e muitas fortalezas e praças fortes, nas quais encontrou grandes tesouros e as prisões repleta s de infelizes prisioneiros gregos, e de príncipes parentes do próprio rei, de há muito considerados mortos, que libertados por Lúculo daquele mísero cativeiro, consideraram-se ressuscitados e retornados a uma nova vida. Lá, também foi encontrada Nissa, uma das irmãs de Mitrídates, para a qual a tomada da cidade foi benéfica, pois as outras mulheres e irmãs, julgadas livres de perigo e em lugar seguro, perto da cidade de Fernácia, morreram mísera e deploravelmente, assassinadas pelo camareiro Baquilidas, a mandado de Mitrídates. Entre outras senhoras, havia até duas irmãs do rei, Roxana e Estatua, quarentonas e solteiras, e duas de suas esposas, naturais da Iônia, Berenice e Monimé, a primeira nascida na ilha de Quio e a segunda na cidade de Mileto. Esta era muito reputada entre os gregos, porque, por mais apaixonado que o rei se mostrasse por ela, e por mais dinheiro que lhe oferecesse para conquistá-la, sendo a última oferta de quinze mil escudos, ela sempre o repeliu, dizendo que só cederia aos seus desejos quando ele a desposasse, lhe desse o diadema real e a chamasse rainha. Casou; mas, em toda a sua vida de casada com este rei bárbaro, passou por grandes desgostos, e nada mais fez do que deplorar a desditosa beleza de seu corpo, que, em lugar de um mando, lhe dera um senhor, e em lugar de damas de honra, uma guarnição de homens bárbaros, que a retinham como prisioneira, longe da sua querida Grécia. Quando Baquilidas foi ter com elas, e pediu-lhes, a mandado do rei, que lhe declarassem a maneira mais rápida e menos dolorosa por que desejavam morrer, Monimé arrancou da cabeça o diadema, e amarrou-o ao pescoço, para enforcar-se. O diadema, porém, rasgou-se, e ela falou: "Maldito e mesquinho tecido! Nem ao menos me és útil neste triste benefício?" Jogou ao chão, pisou-o, e apresentou a garganta a Baquilidas, para cortá-la. Berenice tomou de uma taça cheia de veneno, e, quando ia levá-la à boca, sua mãe, ali presente, pediu-lhe que repartisse com ela, sendo atendida. Sendo o veneno muito violento e de ação bastante rápida, a mãe, enfraquecida pela velhice, tombou logo sem vida; Berenice, porém, que não ingerira a quantidade devida, conservou-se em agonia, até ser estrangulada por Baquilidas. Quanto às irmãs solteiras, consta que Roxana envenenou-se, amaldiçoando e odiando a crueldade de seu irmão. Estatira, ao contrário, não proferiu uma palavra de reprovação ou de ressentimento contra ele; louvou-lhe o cuidado que teve, ao ver-se em perigo, de fazê-las morrer, antes que caíssem escravas às mãos dos inimigos e fossem por eles ultrajadas em sua honra.

XXXIII. Lúculo toma a cidade de Amiso

XXXIII. Estas lamentáveis desgraças feriram profundamente o coração de Lúculo, que era, por natureza, compassivo e bom. Contudo, ele procurou esquecer-se do acontecido, e seguiu o rasto de Mitrídates à cidade de Talaura, onde soube que, quatro dias antes, ele havia fugido para Tigrano, na Armênia. Lúculo subjugou os caldeus e os libaremos, apoderou-se da Armênia menor, submetendo as cidades, fortalezas e praças fortes às suas ordens, e regressou. A seguir, mandou Ápio intimar o rei Tigrano a entregar-lhe Mitrídates e dirigiu-se à cidade de Amiso, que ainda se achava sitiada, graças à capacidade e experiência do comandante que defendia ali o rei Calímaco, incomodando enormemente os romanos. Mas, não obstante ser profundo conhecedor de todos os segredos de guerra, Lúculo conseguiu enganá-lo, de um modo muito simples: na hora em que fazia tocar a recolher, para o descanso, ordenou, inesperadamente, o assalto à muralha, ocupando pequena parte dela, antes que a pudessem, defender. Com isto, Calímaco, reconheceu não poder mais conservar a cidade em seu poder, e abandonou-a. Mas, antes de partir, ateou fogo à cidade, não se sabendo se para impedir que os romanos se enriquecessem com o saque à mesma, ou para ter maior facilidade de se salvar e de fugir. Ninguém ligava importância aos que fugiam por mar, por ser de enorme proporção o incêndio, que se espalhava por toda parte, até às muralhas, e por saberem que a única preocupação dos soldados romanos era a pilhagem.

XXXIV. Ele se entristece de vê-la destruída pelo fogo, e repara-a como pode

XXXIV. Lúculo contristou-se, ao ver aquela enorme fogueira, e quis remediar o mal, pedindo aos soldados que a extinguissem. Ninguém o atendeu, pois todos quiseram a pilhagem, disparando suas armas com horrível gritaria. Constrangido a deixar-lhes a cidade entregue ao saque, ele esperava que ao menos os prédios fossem salvos do fogo. O que não aconteceu, porque, desejando certificar-se se nada havia oculto, os próprios soldados, procurando por toda parte, com archotes e velas acesas, queimaram tantas casas que Lúculo, ali entrando no dia seguinte, e vendo os danos ocasionados pelo fogo, desandou a chorar, dizendo aos amigos mais achegados que o rodeavam, que muitas vezes considerara Sila um homem felicíssimo; mas nunca lhe invejara a felicidade como no dia em que, desejando salvar a cidade de Atenas, os deuses concederam-lhe a graça de poder fazê-lo. "E eu, disse ele, que desejava seguir-lhe o exemplo, e salvar esta, a sorte, contra a minha vontade, igualou-me a Múmio, que fez queimar Corinto". Não obstante, ele fez o que pôde, então, para reerguer esta pobre cidade. Quanto ao fogo, por graça divina uma chuva o extinguiu quase no instante em que ela foi tomada. Antes de partir, ele fez reconstruir boa parte dos edifícios que o fogo havia consumido, nos quais alojou humanitariamente os habitantes que haviam fugido, além de alguns gregos que fizeram questão de residir ah, e aumentou a cidade, dando-lhe sete léguas e meia de território. A cidade era colônia dos atenienses, que a haviam fundado e construído no tempo em que o seu império estava em pleno desenvolvimento e dominava o mar, o que fez com que muitos fugitivos da tirania de Aristião ali se acolhessem, gozando de iguais direitos dos filhos da região. Tiveram assim a felicidade de, em paga dos bens perdidos, adquirir e gozar os bens alheios. Aos da cidade, que conseguiram escapar de tal desolação, Lúculo forneceu boa roupa, deu a cada um duzentas dracmas, e fê-los voltar para a sua terra. O gramático Tirânio foi então preso, a mandado de Murena, porém Lúculo libertou-o, censurando o uso incivil e despótico que o seu subalterno fazia dos poderes que lhe concedera. Prendendo um homem muito querido e acatado por seu saber, e praticando outros atos censuráveis, Murena deu mostras de não possuir os requisitos indispensáveis a um homem de bem e a um bom chefe.

XXXV. Ele visita as cidades da Asia, e freia a liberdade dos oficiais romanos

XXXV. Partindo dali, Lúculo foi visitar as cidades da Ásia, para dar-lhes algum lenitivo nas leis e na justiça, durante o tempo em que não estivesse ocupado nos afazeres da guerra. Não sendo de há muito administradas, e achando-se totalmente entregues à cobiça dos rendeiros, cobradores e usurários romanos, que as devoravam e mantinham cativas, achavam-se em tal estado de aflição e de miséria, que não há palavras capazes de descrever. Os quadros dedicados aos templos, as estátuas dos deuses, e outras preciosidades das igrejas, passavam para as mãos dos credores; os pais eram constrangidos a vender seus filhinhos e suas filhas casadoiras, para poderem pagar capital e juros do dinheiro tomado de empréstimo, e acabavam sendo também escravizados. Antes de serem adjudicados como escravos, eles eram encarcerados, metidos na geena, estendidos na polé, colocados em cepos, expostos nus sob o sol ardente, no verão, e no inverno atolados na lama ou sob o gelo. De modo que a escravidão, para eles, era uma quitação de misérias e o descanso de sofrimentos.

XXXVI. Ele regulamenta os lucros monetários

XXXVI. Lúculo encontrou as cidades da Ásia repletas de tais opressões, mas em pouco tempo libertou as injustamente castigadas. Primeiramente ele ordenou que se calculasse, como juro, a ser pago mensalmente, a centésima parte da dívida real, e não mais; a seguir anulou todos os juros e exigências que excedessem do verdadeiro haver. Por fim, e foi este o ponto principal, estabeleceu que o credor e usurário só gozaria da quarta parte dos lucros e das rendas de seu devedor, ficando sujeito à perda total quem quisesse cobrar juros dos juros.

Com estas disposições todos os débitos foram pagos em menos de quatro anos, e as terras e propriedades restituídas a seus proprietários, livres e desembaraçados de todas as dívidas. Esta sobrecarga de juros provinha dos vinte mil talentos a que Sila condenara a região da Ásia, importância que já havia sido paga duas vezes aos rendeiros e cobradores romanos, que a fizeram aumentar, acumulando juros dos juros, até à quantia de cento e vinte mil talentos, equivalentes a setenta e dois milhões de moedas ouro. Isto fez com que os rendeiros e cobradores fossem esbravejar em Roma contra Lúculo, taxando-o de perseguidor e injusto, e, à força de dinheiro, movimentassem alguns arengueiros habituais contra ele. Lúculo, porém, não se tornara muito querido nas regiões que beneficiara, como bastante cobiçado nas que não tinham a felicidade de possuí-lo como governador.

XXXVII. Apio Clódio arranca Zerbieno da obediência de Tigrano

XXXVII. Por fim, Ápio Clódio, cunhado de Lúculo, que este havia mandado ter com Tigrano, confiando demasiado na maldade de alguns agentes deste rei, deixou-se conduzir pela região montanhosa do país, vencendo grande percurso, com um inútil desperdício de dias de sacrifícios. Como um dos seus escravos libertos, natural da Síria, lhe ensinasse o verdadeiro caminho, ele dispensou seus guias bárbaros, e, desviando-se da rota que eles lhe traçaram, em poucos dias transpôs o rio Eufrates, e chegou à cidade de Antioquia, cognominada Epidafne, onde devia esperar a volta de Tigrano da Fenícia; subjugou algumas cidades que ainda lhe restava conquistar, e conseguiu o apoio secreto de muitos príncipes e fidalgos, que só pela força contra a vontade prestavam obediência ao rei da Armênia. Entre eles achava-se Zarbieno, rei da província Gordiana. Ápio Clódio garantiu a todos o auxílio de Lúculo, pedindo-lhes que nada divulgassem no momento. Os gregos não só detestavam o domínio dos armênios, como não toleravam o orgulho e a petulância do rei, que, devido à sua grande prosperidade, tornara-se tão soberbo e presunçoso, que tudo quanto o homem possui de mais precioso e mais preza, ele considerava de nenhum valor, e se julgava superior a tudo e a todos no mundo, esquecido de que chegara ao que era bafejado unicamente pela sorte.

XXXVIII. Exaltação e insolência de Tigrano

XXXVIII. De início Tigrano pouco possuía; e, com este pouco a que ninguém ligava, ele subjugou diversas grandes nações, e abateu o poder dos partas, coisa que homem algum conseguira fazer antes dele. Encheu a Macedónia de habitantes gregos, levados à força da Cilicia e da Capadócia, obrigando-os a fixar residência ali, mudou o modo de vida dos árabes, apelidados cenitas ou tendeiros, por ser um povo errante, cujas casas não passavam de tendas, que levavam consigo, a fim de vendê-las. Tinha sempre, em sua corte, muitos reis para servi-lo. Quatro deles estavam-lhe sempre ao lado, como guardas ou lacaios, acompanhando-o a pé e de túnica, quando ele saía a cavalo pelos campos; quando dava audiência, sentado em sua cadeira, eles conservavam-se de pé, ao redor, de mãos entrelaçadas, numa postura que bem denunciava o seu servilismo, como a dizer-lhe que lhe davam inteira liberdade de ação, e que podia dispor dos seus corpos como melhor entendesse.

XXXIX. Ápio pede a Tigrano que lhe entregue Mitrídates

XXXIX. Ápio Clódio não se admirou do aparato trágico que observara, ao ser-lhe concedida audiência; e, não o temendo, disse-lhe, de cara, que ali se achava para exigir-lhe a entrega de Mitrídates, cujo aprisionamento ele devia-o à vitória de Lúculo, caso contrário declarar-lhe-ia guerra. Os que assistiram a esta intimação, perceberam muito bem que Tigrano, embora se esforçasse por aparentar cara alegre, com um sorriso fingido e alvar, sentiu apertar-se-lhe o coração, ante a coragem e franqueza do moço; pois, nos seus vinte e cinco anos de reinado, ou melhor, de tirania ultrajante, nunca ouvira palavras tão sinceras e espontâneas como aquelas. Não obstante, ele respondeu a Ápio que não entregaria Mitrídates, e que, se os romanos o guerreassem, ele se defenderia. E, despeitado com o fato de havê-lo Lúculo, nas cartas que lhe escrevera, tratado simplesmente de rei, e não de rei dos reis, nas respostas que lhe dera tratou-o de capitão. Ao despedir-se Ápio, o rei mandou-lhe belos e ricos presentes, que ele recusou; apesar disso, enviou-lhe outros melhores, dos quais Ápio ficou apenas com uma taça, receoso de que o rei tomasse a sua obstinada recusa como uma prevenção pessoal contra ele, e devolveu-lhe o resto. A seguir voltou para junto do seu comandante, depois de longas e penosas jornadas.

XL. Entrevista de Mitrídates e de Tigrano

XL. Tigrano, que até então nunca quisera ver Mitrídates, seu aliado tão achegado, que devido à guerra perdera seu grande e poderoso império, e conservava-o orgulhosamente como prisioneiro, em lugar pantanoso e malsão, mandou buscá-lo com todas as honras, e recebeu-o com as maiores demonstrações de carinho. No palácio real, eles se isolaram dos mais, para poderem conversar em particular, justificando-se e desculpando-se das suspeitas que um tivera do outro, em prejuízo dos seus assistentes e amigos, que eles desprezaram, entre os quais Metrodoro, o Cepciano, homem de grande saber, que dizia jocosamente o que pensa, e a quem Mitrídates dedicara tão grande amizade que o chamava o pai do rei. No início das suas lutas Mitrídates mandara-o pedir auxílio a Tigrano, contra os romanos, e Tigrano perguntoulhe: "Que me aconselhas tu, Metrodoro?" Ou porque preferisse o proveito de Tigrano, ou porque não quisesse que Mitrídates fugisse, ele respondeu-lhe: "Como embaixador, senhor, aconselho-te que o atendas, mas, como conselheiro, que não o faças". Tigrano relatou o caso a Mitrídates, supondo não o desgostar, e no entanto fez com que Metrodoro fosse logo submetido a pena de morte, Isto não só fez com que Tigrano se arrependesse de haver sido o causador de tal morte, como o tornou conhecedor da malquerença que de há muito Mitridates nutria contra a sua vítima, com a descoberta de documentos secretos, em um dos quais era determinada a morte de Metrodoro. Em compensação, Tigrano não poupou suntuosidade no sepultamento do corpo de quem traíra em vida. Também foi morto, na corte de Tigrano, o orador Anfícrates, natural de Atenas. Dizem que, tendo sido expulso de sua terra, ele fugiu para a cidade de Selêucia, à margem do Tigre; e, como os habitantes da cidade lhe pedissem que ensinasse ali a arte da eloquência, ele recusou-se, respondendo pretensiosamente ser o prato muito pequeno para conter um golfinho, como a dizer que a cidade era muito insignificante para detê-lo ali. Retirando-se de Selêucia, ele tratou de acercar-se de Cleópatra, filha de Mitrídates e esposa de Tigrano. Tornando-se logo suspeito, foi denunciado, sendo-lhe proibido visitar e conversar com os gregos. Isto ocasionou-lhe tamanho desgosto que ele deixou-se morrer por inanição, sendo honrosamente sepultado pela rainha Cleópatra, num lugar denominado Safa, como dizem naquela região.

XLI. Lúculo apodera-se da cidade de Sínope

XLI. Lúculo, depois de ter reposto toda a Ásia em boa paz e tranquilidade, e estabelecido boas normas em matéria de justiça, não se esqueceu dos passatempos e diversões. Pelo contrário, enquanto esteve em descanso na cidade de Éfeso, promoveu inúmeras festas, lutas romanas e assaltos de esgrima, em regozijo à vitória obtida, causando grande satisfação em todas as cidades da província. Tanto assim, que, em sinal de reconhecimento, instituíram uma festa solene em sua homenagem, a que denominaram Lucúlia, celebrando-a com grande alegria, sincera e não fingida amizade e benquerença, e que deixou-o mais satisfeito do que as maiores homenagens que lhe houvessem prestado. Com o regresso de Ápio, considerando e concluindo ser indispensável guerrear Tigrano, ele voltou ao reino de Ponto, onde movimentou o exército que ali havia deixado de guarnição, levando-o para a cidade de Sínope, a fim de sitiá-la, ou antes, para cercar alguns cilícios, que nela se haviam internado em favor de Mitrídates. Ao verem Lúculo dirigir-se contra eles, os cilícios, certa noite, mataram grande parte dos habitantes, incendiaram a cidade, e fugiram. Avisado do ocorrido, Lúculo entrou na cidade, fez passar ao fio da espada oito mil cilícios que ainda ali se achavam, e devolveu aos habitantes quanto lhes pertencia. O que o induziu a apoderar-se desta cidade foi uma visão que tivera durante a noite, que aproximou-se do seu leito e lhe disse: "Segue um pouco além, Lúculo, pois Autólico deseja falar-te, Este sonho despertou-o, mas ele não conseguiu atinar com o sentido do que a visão lhe dissera Foi nesse dia da tomada da cidade de Sínope que, perseguindo os cilícios fugitivos, ele achou uma está tua estendida ao chão, à beira-mar, que eles, precipitação da fuga, não conseguiram transportar para bordo. Dizem que era um dos mais belos e grandiosos trabalhos do estatuário Estênis, e há quem afirme ser a imagem de Autólico, o fundador de Sínope. Autólico foi um dos príncipes que par tiram da Tessália, com Hércules, contra as Ama zonas, e era filho de Demaco. Fala-se que, ao voltar desta viagem, o navio em que ele embarcara com Demoleão e Flógio deu de encontro a um escolho na costa do Quersoneso, submergindo. Tendo-se salvo com suas armas e seus homens, Autólico tanto fez que chegou à cidade de Sínope, que arrebatou a alguns sírios, assim chamados por descenderem do Siro, filho de Apolo, e da ninfa Sínope, filha de Asopo. Com esta informação, Lúculo lembrou-se de uma advertência de Sila, que, em seus comentários escritos, declarou não haver nada mais certo, e em que a gente devia piamente acreditar, do que o que nos é transmitido pelo sonho.

XLII. Ele recebe aviso da aproximação de Tigrano e de Mitrídates

XLII. Nesta ocasião, ele foi prevenido que Tigrano e Mitrídates estavam prestes a chegar na Liaônia e na Cilicia, para serem os primeiros a apoderar-se da província da Ásia. Admirou-se muito da solução de Tigrano, pois sabia ser sua intenção marchar contra os romanos, mesmo que não fosse auxiliado por Mitrídates, visto achar-se perfeitamente aparelhado para a luta. Entretanto, não podendo admitir que se atacasse povos indefesos, e ciente de que tudo não passasse de um ardil de ambas as partes, preparou-se para enfrentá-los.

XLIII. Ele se põe em marcha, para ir-lhes ao encontro

XLIII. A esse tempo, Machares, filho de Mitrídates, senhor do reino do Bósforo, mandou-lhe uma coroa de ouro do valor de mil escudos, pedindo lhe que o considerasse amigo e aliado dos romanos. Lúculo considerou isso como o fim de sua primeira guerra, e, deixando Sornácio na defesa do reino de Ponto, com seis mil combatentes, partiu-lhes ao encontro, com doze mil soldados de infantaria e pouco menos de três mil de cavalaria. A grita foi geral, pois acharam ser grande temeridade de sua parte lançar-se, mal aconselhado, com tão pouca gente, contra exércitos belicosos, dotados de milhares e cavalarias, em lugar tão vasto e afastado, sulcado de inúmeros e profundos rios, repleto de montanhas o ano todo cobertas de neve, o que fez com que os seus soldados, pouco disciplinados e obedientes, o seguissem receosos e desatendessem as suas ordens. Os arengueiros, em Roma, não cessavam de gritar contra ele, declarando ao povo que ele semeava uma guerra após outra, sem o menor proveito à coisa pública, provocando-as com o único fito de ter sempre exércitos sob suas ordens e par satisfazer às suas necessidades particulares, à custa e prejuízo do erário público. Com o decorrer do tempo eles viram satisfeitos os seus desejos, que eram os de afastar Lúculo do comando das forças, fazendo-o substituir por Pompeu.

XLIV. Ele passa o Eufrates

XLIV. Apesar de toda a grita, Lúculo não deixou de comandar e fazer seguir o seu exército o mais que pode, e em poucos dias chegou ao rio Eufrates, que encontrou transbordante, agitado impetuoso, como acontece no inverno. Lúculo ficou muito aborrecido, certo de ser obrigado a permanecer ali durante muito tempo, e de ter o aborrecimento de procurar navios e de mandar fazer jangadas para a construção de uma ponte, a fim de poderem atravessar. A noite, porém, a água começou a baixar, e desceu tanto que, pela manhã, o rio achou-se reduzido ao seu curso normal. Os filhos do lugar, ao verem ilhotas aparecer ao longo do curso das águas, e o rio calmo, como um pântano, em torno delas, adoraram Lúculo como um deus, porque nunca viram acontecer tal coisa até então, pois o rio submeteu-se logo a ele, tornando-se manso e obediente, para dar-lhe passagem fácil e segura. Não querendo perder a oportunidade, ele fez seu exército passar sem demora, e, na outra margem, deu com este achado de feliz presságio: algumas vacas consagradas à deusa Diana, cognominada Persiana, que os habitantes bárbaros de além do rio Eufrates veneram e glorificam acima de todos os outros deuses, pastavam por ali. Estas vacas, exclusivamente destinadas a imolação em louvor à deusa, erram à vontade por toda a região, sem qualquer espécie de amarra ou de prisão, tendo a distingui-las uma lâmpada gravada no corpo, que é a marca de Diana, e só são apanhadas em caso de necessidade, com muito trabalho. Uma delas, depois da passagem de todo o exército, foi voluntariamente colocar-se numa rocha também consagrada à deusa, abaixando a cabeça e estendendo pescoço, como fazem as que são amarradas e submetidas ao sacrifício, dando a entender a Lúculo que ali fora para ser imolada: o que foi feito. Em seguida, ele também imolou um touro em louvor ao Eufrates, por haver-lhe dado tão fácil passagem.

XLV. Ele entra na Armênia

XLV. Nesse primeiro dia Lúculo só se ocupou em acampar além do rio. Nos dias seguintes internou-se no país por Sofena, sem produzir o menor mal ou descontentamento às pessoas que iam entregar-se a ele, ou que recebiam com satisfação seu exército. Tendo seus soldados mostrado desejo de atacar e tomar uma fortaleza, na qual diziam haver muito ouro e prata, ele mostrou-lhes ao longe a montanha de Taurus, dizendo-lhes: "É aquilo que vos cabe ir tomar, pois, o que está dentro desta fortaleza, pertence aos vencedores". E, prosseguindo em suas longas jornadas, transpôs o no Tigre, e entrou com seu exército na Armênia.

XLVI. Como Tigrano recebe a notícia de sua aproximação

XLVI. Quanto a Tigrano, o primeiro que ousou levar-lhe a notícia da chegada de Lúculo, não teve sorte, pois ele o fez decapitar. À vista disso, ninguém mais se atreveu a falar-lhe a tal respeito. Assim, ignorando achar-se completamente cercado pelos inimigos, ele deleitava-se com os elogios que lhe faziam seus favoritos, declarando que Lúculo seria de fato um grande comandante, se tivesse a coragem de esperá-lo unicamente na cidade de Éfeso, e não se tivesse espalhado por toda a Ásia, como fez, nem bem percebeu a sua aproximação com um exército triunfante, de tantos milhares de homens. Vê-se, por aí, que, não possuindo todos os corpos e todos os cérebros igual resistência para suportar excesso de vinho, também não possuem compreensão bastante, nem bom senso, para julgar os outros como merecem. Mitrobarzane, um dos favoritos, que ousou dizer a verdade, foi por Tigrano mandado ao encontro de Lúculo, com três mil cavaleiros e bom número de soldados de infantaria, e ordem de levar lhe o comandante vivo, embora tivesse de passar por cima do ventre de todos os seus soldados.

XLVII. Sextílio vence as tropas de Tigrano, comandadas por Mitrobarzane, que é morto

XLVII. Achava-se Lúculo com parte do seu exército já acampada e a outra parte prestes a chegar, quando os seus batedores deram-lhe a notícia da chegada do capitão bárbaro. Ele calculou logo que, se o inimigo o atacasse na situação em que se achava, com as forças dispersas, e em condição de não poder combater, ser-lhe-ia impossível enfrentá-lo e derrotálo.

Assim sendo, ele permaneceu no acampamento, tratando de fortificá-lo e restaurá-lo, e mandou Sextílio, um dos seus tenentes, com mil e seiscentas cavalarias e um número pouco maior de soldados de infantaria, com munição escassa, recomendando-lhe que se aproximasse o mais possível do inimigo, sem combater, unicamente para entretê-lo e contê-lo, até ser avisado achar-se todo o exército reunido no acampamento. Sextílio procurou executar as ordens recebidas, mas foi constrangido, contra a vontade, a entrar em combate, visto ter sido vigorosa e audaciosamente atacado por Mitrobarzane. Este, porém, morreu valorosamente na luta, e seus homens foram acossados e mortos, salvando-se apenas uns poucos, que conseguiram fugir.

XLVIII. Lúculo assedia Tigranoeerta

XLVIII. Com esta derrota, Tigrano abandonou sua grande cidade real de Tigranocerta, assim batizada por ele mesmo, e retirou-se para o monte Taurus, onde concentrou gente de toda parte. Lúculo, porém, não lhe deu oportunidade de preparar-se, mandando Murena obstar-lhe a saída e Sextílio impedir a entrada de grande reforço de árabes mandado em seu auxílio, e que foi quase totalmente morto. Seguindo o rasto de Tigrano, Murena esperou a sua passagem por um vale longo e estreito, em cujo fundo havia um péssimo caminho, impróprio para um grande exército. Valeu do-se da oportunidade, atacou-o pela retaguarda Tigrano pôsse logo em fuga, fazendo jogar toda a bagagem no meio do caminho, para retardá-lo, perdendo, nesta derrota, numerosos armênios, entre mortos e prisioneiros. Conseguindo isto, Lúculo dirigiu-se à cidade de Tigranocerta, na Armênia, sitiando-a completamente. Havia ali numerosos gregos, transportados à força da Cilicia, o mesmo acontecendo com numerosos bárbaros, adiabênios, assírios, gordiênios e capadócios, cujas cidade Tigrano arruinou, para obrigá-los a ir morar ah. Por este meio, ele conseguiu que a cidade ficasse repleta de ouro e prata, de medalhas, estátuas, quadros e pinturas de subido valor, pois todo o mundo, desde os particulares aos príncipes e fidalgos, estudavam a maneira de agradá-lo, enriquecendo e embelezando-lhe a cidade com o que possuíam de mais belo e mais precioso. Isto fez com que Lúculo apressasse o mais possível o sítio, certo de que Tigrano, enfurecido, não se conformasse com a tomada da cidade e lhe desse combate. Tal aconteceria fatalmente, se Mitrídates, por meio de cartas e de mensageiros, não o desaconselhasse calorosamente de se aventurar à luta, instigando-o a impedir a entrada de toda espécie de víveres aos romanos, com sua gendarmería, Reforçando tais. conselhos, Taxiles, capitão que Mitrídates lhe enviara, pediu-lhe instantemente que evitasse enfrentar as forças dos romanos, que eram invencíveis.

XLIX. Tigrano avança, decidido a combater

XLIX. Tigrano ouviu pacientemente todas as razoes apresentadas, até à chegada, em seu auxílio, de numerosas forças de armênios, de gordiênios, de árabes do mar de Babilônia, de albanos do mar Cáspio, de iberos seus vizinhos, de povos habitantes do no Araxes, que acorreram em seu socorro, espontaneamente uns, para agradá-lo, outros devido às pensões e soldo que ele lhes dava; além dos reis dos medos e dos adiabênios, com todo o seu poder. à vista de tanta força, ele desprezou conselhos, para seguir a resolução tomada pelos seus conselheiros, de dar combate. Taxiles, que tacitamente se opôs a tal resolução, esteve em perigo de vida. Houve quem dissesse que invejando a glória do rei, Mitrídates procurava dissuadi-lo da luta. À vista disso, Tigrano não só o desatendeu, receoso da sinceridade de suas palavras, como, para evitar que ele chegasse a participar de sua vitória, se pôs em campo com seu grande exército, dizendo, aos seus amigos mais achegados, que a única coisa que o desgostava era ter de combater unicamente contra Lúculo, quando o seu desejo era fazê-lo contra todos os comandantes romanos. Esta tola bravata, isenta de todo bom senso, não teria lugar, se ele não se visse cercado de tantos povos diferentes, de tantos reis que o seguiam, de tantos batalhões de artilharia e de tantos milhares de cavalarias, pois contava em seu exército: vinte mil lanceiros e atiradores, cinquenta e cinco mil cavalarias, das quais dezessete mil de todas as armas, conforme o próprio Lúculo comunicou ao Senado; cento e cinquenta mil soldados de infantaria, de todas as armas, distribuídos por bandeiras e esquadrões; pioneiros, carpinteiros, pedreiros e outros trabalhadores, para aplainar os caminhos, construir pontes, limpar os rios, cortar matas e executar outros trabalhos semelhantes, num total de trinta e cinco mil, que seguiam à retaguarda, em ordem de guerra, dando um aspecto poderoso e descomunal.

L. Gracejos de Tigrano e de seus cortesãos sobre o reduzido número dos romanos

L. Quando ele chegou ao cume do monte Taurus, e foi visto nitidamente, pelos da cidade, com tão grande exército, e ele mesmo pôde ver o de Lúculo, que sitiava a sua Tigranocerta, os bárbaros exultaram, ameaçando do alto das muralhas os romanos, mostrando-lhes o exército dos armênios. Lúculo reuniu seus conselheiros, para saber como agir, sendo uns de parecer que ele levantasse o sítio e despejasse todo o seu exército contra Ti grano, e outros que ele não devia arcar com o peso de tão avultado número de inimigos, e muito menos levantar o sítio. Lúculo declarou-lhes que todos lhe deram bons conselhos, mas que decidira não ouvi-los.

Dividiu seu exército, deixou Murena sitiando a cidade com seis mil combatentes, e, com vinte e quatro coortes, num total de uns dez mil soldados de infantaria, e toda a sua cavalaria, que não ia além de mil homens, entre lanceiros e caçadores, foi enfrentar Tigrano, detendo-se numa grande e espaçosa planície ao longo do no. O acampamento dos romanos pareceu insignificante a Tigrano, e durante algum tempo serviu de zombaria e de passatempo aos seus bajuladores. Uns pilheriavam, outros tiravam a sorte, e jogavam a parte dos seus despojos, como se já houvessem ganho o combate, e cada um dos reis e comandantes apresentou-se ao rei, pedindo-lhe instantemente que lhe concedesse a graça de fazê-lo dirigir a luta, e que ele se abstivesse de o fazer e fosse sentar-se em um lugar qualquer, para assistir o embate. Desejando mostrar que não era menos espirituoso que os outros, e que também sabia usar palavras adequadas às situações, Tigrano proferiu algo bastante vulgar: "Se eles vêm como embaixadores, são muitos; mas, se vêm como inimigos, são pouquíssimos". Era assim que eles zombavam e se divertiam.

LI. Resposta de Taxiles a Tigrano, que exigia a retirada dos romanos

LI. No dia seguinte, ao romper do dia, Lúculo dispôs sua gente, perfeitamente armada, em posição de combate. O acampamento dos bárbaros achava-se na outra margem do rio, voltado para o sol nascente, e, casualmente, o curso do rio desviava-se de repente para o poente, onde podia ser transposto com maior facilidade. Lúculo fez seu exército descer em ordem de combate, seguindo o curso do rio, para encontrar passagem, e a pressa com que o fez deu a Tigrano a impressão de uma retirada. Esta doce ilusão fez com que ele chamasse Taxiles e lhe dissesse rindo: "Vês como fogem, os belos legionários romanos, que tanto gabavas de invencíveis?" Taxiles respondeu-lhe: "Faço votos, senhor, que a tua boa sorte te conceda hoje algum milagre, pois seria de admirar que os romanos fugissem. Eles não costumam enfeitarse com arneses, quando saem a passeio pelo campo, nem deixam à mostra seus broquéis e escudos, seus capacetes, como agora se observa, e sim cobertos de couro. O apresto com que os vemos brilhar é sinal seguro de que querem combater, e que marcham ao nosso encontro".

LII. Lúculo dá sinal de atravessar o rio

LII. Taxiles não havia ainda concluído a sua fala, quando Lúculo, à vista de seus inimigos, fez o sinaleiro que levava o primeiro estandarte virar imediatamente, e as forças prepararam-se para atravessar em ordem de combate. Tigrano, como que retornando a custo de uma embriaguez, gritou então alto, duas ou três vezes: Eles vêm a nós! Houve grande confusão e tumulto, quando se tratou de dispor tanta gente para o combate. O rei Tigrano encarregou-se de comandar as forças do centro, entregando as da esquerda às ordens do rei dos adiabênios e as da direita ao comando do rei dos medos, havendo nestas, que deviam enfrentar o primeiro embate, homens de todas as armas.

LIII. Ele marcha para os inimigos

LIII. Quando Lúculo ia atravessar o rio, alguns dos seus capitães preveniram-no que devia evitar qualquer combate naquele dia, por ser um dos que os romanos consideravam aziagos, e que denominavam Atri ou lutuosos, correspondendo exatamente àquele em que Cipião fora derrotado pelos cimbros, com todo o seu exército. Lúculo deu-lhes esta resposta, que depois tornou-se célebre: "Eu o tornarei feliz, hoje, para os romanos". Era o décimo-sexto dia do mês de outubro. Assim dizendo, e exortando-os a ter coragem, ele transpôs o rio e foi o primeiro a marchar ao encontro dos inimigos, armado de uma couraça de aço, trabalhada em escamas reluzentes, coberta por uma cota de armas franjada em toda a volta, e empunhando a espada desembainhada, dando a entender aos seus soldados que deviam ir alcançar os inimigos e atacá-los de surpresa, visto já se haverem habituado aos combates frente a frente; que ele venceria tão rápida e rigorosamente a distância a ser percorrida, que não lhes daria tempo de atirar. Notando que o grosso das forças inimigas estava disposto em posição de combate na base de uma colina, de cume pouco aguçado e plano, e que as encostas, de um quarto de légua, aproximadamente, não eram íngremes, nem de difícil acesso, mandou cavalarias tracianas e gaulesas, que tinha a soldo, atacá-los pelos flancos, a fim de desnorteá-los e fazê-los terçar suas lanças com suas espadas, pois todo o poder daqueles guerreiros resumia-se na lança; mais não podiam fazer a seu favor, e contra o inimigo, dado o peso e incomodidade da armadura que os envolvia, deixando-os como que metidos numa prisão de ferro. Ele, a seu turno, conduzindo, vez por vez, duas companhias de infantaria, esforçava-se por alcançar o alto da colma, sendo corajosamente seguido pelos soldados, orgulhosos de vê-lo caminhar a pé e de ser o primeira galgar a encosta.

LIV. Completa vitória de Lúculo

LIV. Ao chegar ao alto, ele se deteve, e bradou: "A vitória é nossa, companheiros, a vitória é nossa!" Dito isto, levou-os direito contra os inimigos, ordenando-lhes que não se detivessem a lançar dardos, mas que tomassem das espadas e lhes golpeassem as pernas e as coxas, únicas partes do corpo que se apresentavam descobertas. Entretanto, não houve necessidade de assim proceder, porque eles não esperaram os romanos; fugiram sem demora, gritando apavorados, e foram covardemente lançar-se, com seus cavalos, entre as tropas de infantaria, sem haverem desferido um único golpe. Deste modo, numerosos milhares de homens foram derrotados sem luta, não havendo um único ferido, e sem o derrame de uma gota de sangue.

A fuga, porém, ocasionou-lhes inúmeras mortes, dada a afobação com que foi realizada, o vultoso número de seus batalhões, e a enorme extensão por eles ocupada. Tigrano, igualmente, tratou de fugir com sua companhia; e, vendo seu filho também em fuga, arrancou da cabeça a banda real, entregou-lha chorando, e ordenou-lhe que procurasse salvar-se a todo custo, seguindo outro rumo. O jovem príncipe não ousou pô-la à cabeça, entregando-a ao cuidado do mais fiel dos seus lacaios, que teve a infelicidade de ser preso e levado, com outros prisioneiros, à presença de Lúculo, a quem precisou entregar o emblema real. Consta que, nesta derrota, morreram mais de cem mil soldados de infantaria, e que bem poucas cavalarias conseguiram salvar-se. Do lado dos romanos houve uns cem feridos e cinco mortos.

LV. Considerações sobre a conduta de Lúculo

LV. Referindo-se a este combate, em um tratado que escreveu sobre os deuses, Antíoco declarou que nunca o sol vira coisa semelhante; Estrabo, também filósofo, em alguns rápidos relatos que traçou, disse que os romanos se envergonharam da vitória e zombaram de si mesmos, por haverem usado suas armas contra escravos tão cobardes; Tito Lívio relata que nunca os romanos se acharam em luta com tão pouca gente e contra tão avultado número de inimigos, pois os vencedores constituíam a vigésima parte dos vencidos. Os chefes romanos mais velhos e experimentados louvaram extraordinariamente Lúculo, por haver derrotado os dois maiores e mais poderosos príncipes do mundo, um numa ação bastante prolongada e outro fulminantemente; destruiu e consumiu Mitrídates lentamente, devido à distância, e Tigrano num ímpeto. Fez o que comandante algum conseguira realizar antes dele.

LVI. Mitrídates recolhe Tigrano, em sua fuga

LVI. O que fez com que Mitrídates não se achasse no acampamento de Ti grano no dia do encontro, foi supor que Lúculo, como de hábito, dilataria o prazo de seu ataque. Como só aparecia de vez em quando, no dia da fuga encontrou alguns armênios assustados e horrorizados, que o puseram ao par do ocorrido. Duvidou da derrota; mas encontrando logo depois outros, mais numerosos, nus e cobertos de chagas, convenceu-se da realidade, e partiu à procura de Tigrano, encontrando-o sozinho, em estado lastimável, completamente abandonado por todos os seus. Ao contrário do que lhe fizera Tigrano na adversidade, que o tratara com arrogância e desprezo, Mitrídates apeou do cavalo, para confortá-lo e deplorar-lhe a infelicidade, e ofereceu-lhe todos os lacaios para servi-lo e os trens e comestíveis que conduzia; reconfortou-o, exortando-o a ter muita coragem dali em diante, e a confiar no futuro. A seguir, os dois puseram-se a aliciar e reunir guerreiros de toda parte.

LVII. Lúculo toma a cidade de Tigranoeerta

LVII. Entrementes houve uma sedição na cidade de Tigranocerta, de gregos e bárbaros, por se oporem estes que aqueles entregassem a cidade a Lúculo, como desejavam. À vista disso, Lúculo apoderou-se dela, e assenhoreou-se dos bens do rei ali existentes, entregando depois a cidade à pilhagem dos soldados velhos, na qual, além de outras riquezas, foram encontradas moedas, num total de oito mil talentos. Dos despojos ganhos ao inimigo, ele deu oitocentas dracmas a cada guerreiro. Sabendo haver ali músicos, comediantes, cantores e outros indivíduos semelhantes, contratados para festas públicas, que Tigrano mandara buscarem toda parte, para ocupar o teatro que mandara construir, Lúculo serviu-se deles para festejar a sua vitória. Isto feito, reenviou os gregos ao seu país, dando-lhes dinheiro para as despesas de viagem, fazendo o mesmo com os bárbaros levados para ali à força. Assim, da desolação e destruição de uma cidade abandonada, muitas foram reedificadas e repovoadas. Tendo recobrado seus habitantes naturais, amaram e veneraram Lúculo como seu benfeitor e fundador. Tudo o que praticava, neste sentido, estava de acordo com a sua índole, pois ele amava e preferia os louvores procedentes da bondade, da justiça e da clemência, aos provindos dos grandes feitos guerreiros; sim, porque estes dependiam do eu exército e de felicidade, e aqueles eram exclusivamente obra sua.

LVIII. Várias nações submetem-se a Lúculo

LVIII. Ele demonstrava, nisto, ser possuidor de uma boa alma, bem formada e muito afeita à virtude, pelo que recebia a recompensa merecida. Por estas qualidades, ele conquistou os corações dos bárbaros com tal veemência que os reis dos árabes foram colocar-lhe às mãos suas pessoas e bens. Os sofênios também submeteram-se a ele; e os gordiênios habituaram-se de tal modo com o seu sítio que, na ocasião, abandonariam cidade, casas, tudo, para acompanhá-lo, voluntariamente, com suas mulheres e filhos. Zarbieno, rei dos gordiênios, havia, como dissemos, feito aliança com Lúculo, por intermédio de Ápio Clódio, por não mais poder suportar a tirania de Tigrano. Isto foi levado ao conhecimento de Tigrano, que mandou matá-lo, com sua mulher e filhos, antes que os romanos se apoderassem da Armênia. Lúculo não o esqueceu, pois, ao passar por seu reino, fez-lhe funerais reais: mandou preparar uma bela fogueira, magnificamente enfeitada com tapetes dourados e prateados, e outros ricos despojos de Tigrano, e quis pessoalmente atear-lhe fogo; fez-lhe os funerais com as honras devidas, presentes os parentes e amigos, concedendo-lhe o título de amigo e aliado do povo romano; e forneceu elevada soma de dinheiro, para ser-lhe erguida sepultura condigna, pois foi encontrada em seu castelo grande quantidade de ouro e prata, bem como farta provisão de trezentas mil minas de trigo. Isto enriqueceu os soldados, e fez com que Lúculo sustentasse vantajosamente a luta, sem receber uma única dracma de Roma.

LIX. Propósito sedicioso das tropas de Lúculo

LIX. A esse tempo, também o rei dos partas expressou-lhe, por embaixadores, sua amizade e aliança, que Lúculo recebeu de bom grado, mandando-lhe embaixadores que, ao voltar, comunicaram-lhe achar-se o rei dos partas indeciso quanto ao lado por que devia propender, mas que secretamente pedia a Tigrano o reino da Mesopotâmia, para decidir-se a socorrê-lo contra os romanos. Obtida confirmação, Lúculo decidiu abandonar Tigrano e Mitrídates, como adversários fatigados e inócuos, e sondar e experimentar um pouco as forças e o valor dos partas, indo atacá-los, conquistando, assim, a glória de haver, num só arranco, abatido e desbaratado três reis tão poderosos, campeões de lutas, e transposto os países dos três maiores príncipes que o sol aclara, vitoriosos sempre, e nunca vencidos. Escreveu sem demora a Estornácio, e aos outros seus capitães que deixara de guarda ao reino de Ponto, que lhe levassem às pressas as forças que lhes estavam subordinadas, calculando partir contra os partas, saindo da província gordiana. Mas aconteceu o contrário. Seus tenentes, que diversas vezes, antes, acharam seus soldados amotinados e rebeldes às suas ordens, tiveram então certeza da sua má vontade e incorrigível desobediência, não lhes sendo possível arrancá-los dali, nem exortando-os ao cumprimento do dever, nem à força. A tudo isto, os soldados respondiam, gritando e protestando, que não ficariam nem mesmo onde se achavam, e que voltariam para suas casas, deixando o reino de Ponto sem guarnição e sem defesa. O pior é que, ao serem levadas tais notícias ao acampamento de Lúculo, elas induziram os outros a seguir-lhes o exemplo e a audácia de também se amotinar, graças à boa vida que gozavam; pois, cheios de dinheiro, e habituados aos prazeres, achavam-se cansados de lutas e queriam descansar. Assim, ao terem conhecimento da resolução dos outros, qualificaram-nos de homens e gente de bom coração, declarando seguir-lhes o exemplo, pois muito já haviam trabalhado e mereciam ser dispensados com vida e em condição de poder descansar.

LX. Ele vence os armênios em muitos encontros

LX. Sabedor deste propósito, e de outros piores e mais alarmantes, Lúculo suspendeu a saída dos partas e partiu ao reencontro de Tigrano, em pleno verão. Ao chegar ao cume do monte Taurus, ficou muito aborrecido ao ver os campos e o trigo ainda verdes, pois as estações são prolongadas, naquelas paragens, devido à umidade do ar. Desceu à planície, e, em dois ou três encontros, derrotou os armênios que se atreveram a esperá-lo. Depois percorreu e assenhoreou-se de toda a planície sem qualquer oposição, apoderando-se do trigo armazenado para Tigrano, pondo os inimigos desprovidos de víveres e provocando-os por todos os meios a entrar em luta; cercou-lhes o campo todo de trincheiras, para deixá-los esfaimados, desbastou e destruiu toda a planície, sob suas vistas. Eles, porém, que já haviam sido derrotados tantas vezes, não se moveram.

LXII. Ele vai sitiar a cidade de Artaxata

LXI. Ante isto, Lúculo levantou acampamento, e foi assentá-lo diante da cidade de Artaxata, capital do reino da Armênia, onde se achavam as esposas legítimas e filhinhos de Tigrano, à espera que este se aventurasse a um combate, a fim de não perder a cidade. Dizem que Aníbal de Cartago, depois da derrota do rei Antíoco pelos romanos foi ter com Artaxes, ao qual induziu e ensinou a fazer muitas coisas úteis e proveitosas ao seu reino, sobressaindo, como das mais belas, mais agradáveis e mais úteis da província, que jazia abandonada, o plano de uma cidade, que ele traçou e decidiu o rei a mandá-la edificar e povoar. O rei não hesitou, e encarregou-o de dirigir o grande empreendimento. Foi como surgiu a bela, grande e triunfante cidade, que foi chamada do nome do rei, Artaxata, e foi transformada em capital do reino da Armênia. Advertido que Lúculo ia assediá-la, Tigrano não se conteve e pôs-se a seguir os romanos, com todo o seu exército, e no quarto dia acampou perto deles, tendo a separá-los o no Arsânias, que os romanos eram obrigados a transpor, para chegar a Artaxata.

LXII. Vitória alcançada por Lúculo

LXII. Depois de haver imolado aos deuses, para garantir a vitória e considerando-a já em seu poder, Lúculo fez o seu exército atravessar em posição de combate, pondo doze coortes à frente e as outras atrás, de receio que os inimigos, tendo à frente grande e séria gendarmería, os envolvesse. Havia ainda diante deles arqueiros a cavalo, mardianos e hibenanos armados de lanças, nos quais Tigrano depositava absoluta confiança, por serem os melhores e mais ardorosos dos combatentes que tinha a seu soldo. Não houve grandes combates, porque, tendo escaramuçado um pouco contra os romanos, eles não ousaram esperar os legionários que vinham atrás, e fugiram acossados pela cavalaria romana. Vendo-a dispersa os guerreiros que rodeavam Tigrano marcharam contra a infantaria. Vendo o avultado número dos que lhe iam ao encontro, bem armados e equipados, Lúculo teve medo, e mandou avisar as cavalarias que perseguiam os fugitivos. Sem perda de tempo, marchou ao encontro dos fidalgos e sátrapas que se achavam diante dele, com os melhores elementos de sua hoste, causando-lhes tal pavor que, antes que os pudesse ter ao alcance da mão, eles se puseram em fuga. Havia três reis em combate, um a seguir a outro; mas o que fugiu mais vergonhosa e covardemente foi Mitrídates, o rei de Ponto, que não teve a coragem de atender aos gritos e clamores dos romanos. A caçada, que foi longa, durou toda a noite, até que os romanos se estafaram de matar, de aprisionar, e de armazenar despojos de toda espécie. Diz Tito Lívio, que no primeiro combate morreram numerosos combatentes, mas neste segundo foram mortos os personagens mais eminentes, sendo aprisionados os principais inimigos.

LXIII. Sedição nas hostes de Lúculo

LXIII. Depois deste combate, cheio de coragem, e nada mais temendo, Lúculo decidiu avançar pelo país, para acabar de arruinar e destruir o bárbaro rei. Achando-se, porém, no equinócio do outono, o tempo tornou-se tão rígido (coisa que nunca lhe passou pelo pensamento) e fez tanto frio que nevou quase todos os dias; se o céu se aclarava, geava e endurecia tão depressa que os cavalos não podiam tomar água nos rios, por ser excessivamente gelada e fria, e ninguém se atrevia a atravessar por cima do gelo, porque este fendia-se e as lascas cortavam-lhe os pés. Além disso, achando-se a região coberta de árvores, de matas e de florestas, e sendo os caminhos estreitos, eles não podiam ir pelos campos, sem serem maltratados pela neve que caía; no alojamento a situação era pior ainda, porque eram obrigados a deitar em lugares fofos e úmidos. Razão por que, os soldados, só muitos dias depois do combate, puderam ir além. Primeiro mandaram seus coronéis e capitães pedir-lhe que se abstivesse de tal empresa; reuniram-se depois em tropas mais audaciosas, e começaram a murmurar e a gritar à noite em suas tendas, o que era sinal de exército amotinado e pronto a rebelar-se contra seu chefe, embora Lúculo tudo fizesse, pedindo encarecidamente que tivessem um pouco de paciência, pelo menos até à tomada da cidade de Cartago, na Armênia, isto é, da cidade de Artaxata, para poderem arruinar a obra e a memória do maior inimigo que os romanos tiveram até então no mundo, referindo-se a Aníbal.

LXIV. Ele entra na Migdônia, e apodera-se de Nísibis

LXIV. Vendo que, apesar disso, eles nada queriam fazer, fê-los recuar, e repassou o monte Taurus, por outros caminhos; desceu depois na província de Migdônia, terra quente e fértil, onde há uma grande cidade, muito povoada, que os habitantes do país chamaram Nísibis, e os gregos Antioquia de Migdônia. A cidade tinha como autoridade suprema Gouras, irmão verdadeiro de Tigrano, mas como comandante, perfeito conhecedor dos engenhos de guerra, o Calímaco que tanto trabalho dera a Lúculo no cerco à cidade de Amiso. Lúculo foi assentar acampamento em frente, e fê-la assaltar por todos os meios empregados para vencer uma cidade; e agiu com tal ímpeto, que em pouco tempo ela foi tomada de assalto. Gouras, que se pôs à mercê de Lúculo, foi muito bem tratado; Calímaco, porém, que não o quis ouvir, embora prometesse revelar os esconderijos de grandes tesouros, somente dele conhecidos, contanto que não o matassem, foi algemado, por haver incendiado a cidade de Amiso, e impedido que Lúculo demonstrasse a sua amizade aos gregos, o seu afeto e liberalidade para com eles.

LXV. Considerações sobre a mudança de sorte que Lúculo sofreu "a partir de então, e as faltas que cometeu

LXV. Até aqui, pode-se dizer que a boa sorte seguiu e favoreceu Lúculo em todos os seus empreendimentos e em todas as suas ações. Mas, a seguir, parece que o bafejo da felicidade começou a diminuir, pois tudo quanto realizou foi feito a muito custo, e tudo lhe saiu contrário aos seus desejos. É verdade que ele sempre demonstrou a virtude, a resignação e a coragem próprias de um bom e valente comandante de exército; mas as suas ações e cometimentos não tiveram a mercê da facilidade, nem o esplendor de glória que seriam de esperar, ficando em risco de perder tudo quanto conquistara no passado, devido às adversidades que o acometeram e às rixas que injustamente manteve com seus homens. O pior é que tudo quanto acontecia era-lhe atribuído, visto não saber ou não querer manter-se nas boas graças dos soldados, preferindo dar valor a qualquer capitão ou graduado, para conquistar-lhes as simpatias, originando, assim, antipatias e desrespeito à sua autoridade. O que mais o fez cair em desagrado foi o fato de não respeitar as pessoas qualificadas, tratando os nobres com desprezo e como inferiores à sua pessoa. Dizem que, apesar das virtudes que o adornavam, ele possuía este vício e imperfeição. Tinha bela aparência e belo porte; era bem falante, sensato e reto nos negócios governamentais, bem como nos afazeres da guerra, tanto na direção dos simples cidadãos, como na dos soldados em campo de batalha.

LXVI. Discursos espalhados em Roma contra Lúculo

LXVI. Escreve Salústio que desde o início desta guerra, os soldados. começaram a descontentar-se dele, porque os fizera passar dois invernos rigorosos no acampamento, um diante da cidade de Cízico, e outro diante da de Amiso. Outros invernos, a seguir, agastaram-nos e irritaram-nos, pois os passaram em terras inimigas ou de aliados e amigos, sobre tendas armadas o no acampamento, sem nunca penetrar em cidade grega ou confederada. Se os soldados estavam tão desavindos com Lúculo, os arengúenos, em Roma, seus inimigos declarados, invejosos dos seus triunfos e de sua glória, viam na desavença a melhor oportunidade para agir contra ele, perante a massa popular, alegando que ele prolongava e perdurava a guerra com o único fim de dominar e de acumular haveres, tendo em mãos quase toda a Cilicia, a Ásia, Bitíma, Paflagônia, Galácia, o reino de Ponto, a Armênia, e todas as províncias existentes até o rio Fasis; afirmando que, não havia muito, saqueara as casas reais de Tigrano, como se só para saquear e despojar houvesse sido mandado, e não para abater e subjugar aqueles reis. Dizem que um dos arengueiros que fez uso de tal linguagem foi Lúcio Quíncio, bem como o que mais induziu o povo a exigir que Lúculo fosse destituído do seu cargo e que o substituíssem no governo das províncias sob o seu poder. Pelo mesmo meio, foram dispensados de suas ocupações muitos dos que se achavam sob suas ordens, com permissão de voltar da guerra quando bem lhes parecesse.

LXVII. Clódio aumenta o exército contra Lúculo

LXVII. Além de todas estas enormes dificuldades, havia peste mais perigosa, que, mais do que todos os males reunidos, estragava os trabalhos de Lúculo: era Públio Clódio, homem insolente, difamador e temível, irmão da mulher de Lúculo, tida como tão desavergonhada e devassa, que mantinha relações carnais com seu próprio irmão. Indo Clódio ao acampamento de Lúculo, não recebeu as homenagens a que se julgava com direito, por haver ali, antes dele, outros considerados superiores, por não serem devassos e gozarem de boa reputação. À vista disso, por vingança, ele começou a subornar e a manejar as tropas fimbrianas, excitando-as contra Lúculo, com agradáveis promessas. Estes soldados, que se haviam habituado a elogios, e faziam questão de ser adulados, eram os mesmos que Fímbria induzira a matar o cônsul Flaco e a elegê-lo seu comandante. Razão por que prestaram-se de boa vontade aos propósitos de Clódio e passaram a chamá-lo de capitão gentil, amante dos seus soldados, ao ouvir-lhe esta fingida arenga: "Nunca vos achais ao fim de tantas fadigas e lutas, e gastais miseravelmente os dias, a guerrear ora uma nação, ora outra, errando por todos os climas, sem a menor recompensa, servindo unicamente de guardas às carroças e camelos de Lúculo, carregados de ouro, de prata e de pedras preciosas. Entretanto, os guerreiros às ordens de Pompeu já se acham descansando em suas casas, ao lado de suas esposas e filhos, sendo possuidores de boas terras, residindo em belas cidades, como grandes e ricos burgueses, sem precisar expulsar Mitrídates e Tigrano de seus reinos para desertos inabitáveis, sem precisar destruir e arrasar as casas dos reis da Ásia, mas com uma simples e pequena guerra na Espanha, contra degredados, e na Itália, contra escravos fugitivos. Devemos nós, perguntava ele, permanecer a vida inteira com os arneses às costas? Não é preferível, já que até agora escapamos da morte, que reservemos nossos corpos e nossas vidas àquele excelente comandante, que, à sua maior glória, prefere enriquecer a quantos se submetem ao seu comando?"

LXVIII. Triário é batido por Mitrídates

LXVIII. Com estas sedições e calúnias, o exército de Lúculo ficou tão corrompido que os soldados não o quiseram mais acompanhar nem contra Tigrano, nem contra Mitrídates, que partiu sem demora para o seu reino de Ponto, e começou a reconquistá-lo, enquanto os soldados romanos, amotinados contra seu chefe, resolveram não agir na província gordiana, alegando o inverno, certos de que Pompeu ou qualquer outro comandante não demoraria a levantar o sítio, em substituição a Lúculo. Ao saberem, porém, que Mitrídates já havia derrotado Fábio, um dos tenentes de Lúculo, e que se dirigia contra Sornácio e contra Triário, envergonharam-se e fizeram-se conduzir por Lúculo. Triário, porém, muito presumido, ao saber que Lúculo se aproximava, quis arrebatar-lhe a vitória, considerando-a como certa; e, antes que ele chegasse, entrou em luta, sendo derrotado. Neste grande encontro morreram mais de sete mil soldados romanos, entre os quais cento e cinquenta centuriões, e vinte e quatro capitães de mil homens. Além disso, Mitrídates tomou-lhes o acampamento.

LXIX. Os soldados de Lúculo recusam-se a segui-lo

LXIX. Dias depois da derrota chegou Lúculo, que precisou esconder Triário, pois os soldados, furiosos, queriam matá-lo. Lúculo experimentou atrair Mitrídates à luta, coisa que este evitou, por achar-se à espera de Tigrano, que descia com poderosa força. À vista disso, Lúculo resolveu ir de novo ao encontro de Tigrano, para atacá-lo antes que ele se unisse às forças de Mitrídates. Mas, nem bem se pôs a caminho, as hostes fimbrianas rebelaram-se de novo, negando-se a segui-lo, alegando que, por decreto do povo, estavam licenciadas e quites com o seu juramento; que, à vista disso, não lhe cabia mais comandá-las, mesmo porque o governo das províncias que ele conquistara já havia sido entregue a outros. Lúculo procurou demovê-las, humilhando-se o mais possível, a ponto de implorá-las, com lágrimas nos olhos, que cumprissem o seu dever. Surdos, porém, a todas as súplicas, os fimbrianos jogaram-lhe aos pés as bolsas vazias, dizendo-lhe atrevidamente que fosse sozinho combater os inimigos, já que o seu cuidado sempre fora enriquecer à custa dos seus despojos. Todavia, graças à intervenção e pedido de outros soldados, os fimbrianos prometeram permanecer a postos durante o verão, sob condição de, não sendo atacados até então, terem liberdade de dirigir-se para onde quisessem.

LXX. Insultos que lhe dirigem

LXX. Colocado no duro dilema de aceitar a condição imposta ou ficar sozinho e entregar o país aos bárbaros, Lúculo reteve-os sem constrangimento e sem levá-los à luta, contentando-se com a sua permanência, embora se visse obrigado a permitir que Tigrano corresse e saqueasse a Capadócia, e que Mitrídates novamente o desafiasse, quando, sobre este, já havia escrito ao Senado que o exterminara por completo e pedido a presença de deputados e comissários de Roma, para cuidarem dos negócios do reino de Ponto, que considerava uma província seguramente conquistada para o império romano. Ao chegarem ao local, os deputados e comissários acharam não estar Lúculo em seu juízo perfeito, pois os próprios soldados zombavam dele por todos os modos, dirigindo-lhe insolências e insultos bastante pesados. Tão atrevidos se mostraram com seu comandante, e tamanho desprezo lhe demonstraram, que, ao chegar o fim do verão tomaram de suas armas, desembainharam escarnecedoramente as espadas e desafiaram os inimigos ao combate, sabendo que eles já haviam levantado acampamento. Depois, emitindo os gritos usados para entrar em luta, agitaram as espadas ao ar, fingindo combater, e retiraram-se do acampamento, alegando que o tempo prometido a Lúculo, de sua permanência ali, havia expirado.

LXXI. Entrevista de Lúculo e Pompeu

LXXI. Pompeu, por sua vez, escreveu aos veteranos que ainda se conservavam no acampamento que fossem ter com ele, pois já havia sido nomeado comandante em lugar de Lúculo, para guerrear Mitrídates e Tigrano, por mercê do povo, e pela indicação e louvores dos arengueiros de Roma. Isto desagradou imenso ao Senado e a todas as pessoas de bem e honestas, por acharem que faziam grande injustiça a Lúculo, mandando-lhe um sucessor, não das fadigas e riscos da guerra, mas sim da honra e da glória do triunfo, e obrigando-o a ceder a outrem, não o posto de comando, e sim o prêmio e as honras que lhe pertenciam, pelos trabalhos realizados. O fato, porém, pareceu ainda mais iníquo e mais indigno aos habitantes das regiões conquistadas, porque, nem bem chegou à Ásia, Pompeu cassou-lhe o direito de castigar ou recompensar quem quer que fosse, por bons ou maus serviços prestados nesta guerra à coisa pública, e proibiu, por meio de avisos fixados em lugares públicos, que se dirigissem a Lúculo e que obedecessem ao que ele e os dez comissários enviados para administrar as províncias conquistadas determinassem ou ordenassem. Pompeu foi por ele temido, por achar-se com um exército maior e mais poderoso que o seu. Todavia, os amigos de ambos resolveram intervir; reuniram-se em um burgo da Galácia, onde acolheram os dois, que se cumprimentaram amavelmente e rememoraram os belos feitos e as gloriosas vitórias por eles alcançadas.

LXXII. Eles separam-se muito mal entendidos

LXXII. Lúculo era mais velho, porém, Pompeu separava-o em importância, por haver sido comandante-geral do povo romano em várias guerras, nas quais triunfara duas vezes. Os feixes de varas que os sargentos carregavam diante deles, achavam-se rodeados de ramos de louro, pelas vitórias que haviam obtido; os dos sargentos de Pompeu achavam-se secos, porém, devido ao longo trajeto realizado por regiões áridas e quentes; os dos de Lúculo apresentavam-se verdes e foram colhidos de fresco, coisa que os amigos de Pompeu consideraram de bom aviso e feliz presságio. E não se enganaram, porque os feitos de Lúculo deram lugar às vantagens conquistadas por Pompeu a seguir. Não obstante tudo isso, o fato de haverem confabulado juntos não os tornou melhores amigos; pelo contrário, separaram-se mais indiferentes que dantes. Pompeu, por um édito, cassou e anulou todas as ordens de Lúculo; e, retirando-lhe todos os guerreiros, deixou-lhe apenas mil e seiscentos homens para acompanhar seu triunfo, coisa que, assim mesmo, fizeram de má vontade. Seja por natureza ou por capricho da sorte, Lúculo era falho no que concerne a um grande comandante, para tornar-se querido dos seus subordinados. Se possuísse esta perfeição, de par com tantas outras excelentes virtudes de que era dotado, como a magnanimidade, a prudência, o bom senso, a diligência e a justiça, o no Eufrates não teria sido o limite derradeiro do império romano do lado da Ásia, e ter-se-ia estendido até ao fim do mundo, embora Tigrano já tivesse vencido as outras nações situadas além, exceto a dos partas, que não era tão poderosa nem tão unida como se mostrara ao tempo de Crasso, e sim fraca e desunida, devido aos dissídios reinantes entre os seus habitantes, às guerras que os seus vizinhos lhe faziam, e à impossibilidade de enfrentar as provocações dos armênios.

LXXIII. Digressões sobre a posterior expedição de Crasso contra os partas

LXXIII. Considerando as coisas como elas se apresentam, parece-me que Lúculo, com as suas conquistas, causou mais prejuízos que lucros ao seu país; porque, os troféus e vitórias que ele alcançara na Armênia, tão perto dos partas, a cidade de Tigranocerta, a de Nísibis, que ele saqueara, fazendo transportar as riquezas para Roma, o diadema de Tigrano, que foi levado em triunfo como prisioneiro, instigaram Crasso a transferir-se para a Ásia, convencido de que os bárbaros não passavam de simples despojos e de presas postas à disposição de quem as quisesse apanhar. Mas, vendo-se, ao chegar, desbaratado pelas flechas dos partas, ele serviu de testemunha e prova que Lúculo não os venceu por falta de senso ou cobardia dos mesmos, e sim por ser corajoso e sensato. É o que se verá depois.

LXXIV. Lúculo obtém a custo a honra do triunfo

LXXIV. De regresso a Roma, Lúculo deu com seu irmão Marcos acusado, por um tal Gaio Mênio, de faltas cometidas como questor, ao tempo de Sila e por ordem deste, e das quais fora plenamente absolvido, por sentença unânime dos juízes. Irritado com isto, Mênio despejou sua cólera contra Lúculo, sublevando o povo, sob a alegação que o grande cabo de guerra havia retido e roubado grandes riquezas que deviam ser entregues ao erário público, e que só para satisfazer às suas necessidades prolongara a guerra. E incitou o povo a recusar-lhe, unanimemente, as honras do triunfo. Lúculo esteve em risco de ser desdenhado. Mas as pessoas honestas da cidade, e de maior autoridade, misturaram-se com a plebe, quando esta teve de opinar, e tanto suplicaram e instaram que, por fim, a custo, o povo permitiu-lhe entrar na cidade triunfalmente.

LXXV. Descrição do seu triunfo

LXXV. A entrada triunfal de Lúculo na cidade não teve o aparato enfadonho, nem a quantidade de pessoas e coisas notadas, até ali, em solenidades tributadas a outros comandantes. O parque das pelejas, que em Roma denominam de Circo Flamínio, ele fizera enfeitar com numerosas armas tomadas aos inimigos, e com máquinas e instrumentos de bateria do rei, muito agradáveis à vista, sob o cuidado de certo número de seus guerreiros, devidamente armados, vendo-se dez carros de guerra, dotados de foices usadas, e sessenta dos principais amigos e comandantes dos dois reis, que foram levados prisioneiros para ali. Notavam-se ainda: cento e dez galeras, tendo na proa grandes esporões de cobre; uma estátua de Mitrídates, toda de ouro, de seis pés de altura, com um rico escudo crivado de pedras preciosas; vinte casinholas cheias de baixelas de prata; trinta e duas casinholas cheias de arneses e vasos de ouro, bem como de moedas de ouro, que alguns homens carregavam seguidos de oito mus conduzindo leitos de ouro; cinquenta e seis outros mus, que carregavam prata fundida em quantidade; além de outros cento e sete destes animais, que levavam moedas de prata num total de dois milhões e setecentas mil dracmas. Havia, além disso, registros discriminados das quantias que ele fornecera a Pompeu para a guerra aos corsários, e aos questores e tesoureiros gerais, para serem depositadas nos cofres do erário público; e, a seguir, em documento separado, a entrega, que ele fizera, de novecentas e cinquenta dracmas a cada gerreiro.

LXXVI. Ele despreza Clódia para casar com Servília, que despreza a seguir

LXXVI. Depois da demonstração deste triunfo, ele realizou uma festa geral, com o concurso de toda a cidade e das aldeias dos arredores, que os romanos denominam Viços. Em seguida ele divorciou-se de sua mulher Clódia por sua desonestidade e mau comportamento, e casou com Servíha, irmã de Catão, com a qual não foi mais feliz; porque, exceção feita de não ser acusada de haver sido poluída e incestada por seus próprios irmãos, ela era tão desonesta, voluptuosa e dissoluta como a primeira. Todavia ele conformou-se em aturá-la durante algum tempo, pela estima que consagrava a seu irmão. Mas, por fim, ele abandonou-a e divorciou-se.

LXXVII. Ele abandona os afazeres, para descansar

LXXVII. Tendo, por fim, inspirado admirável confiança ao Senado, que pensou valer-se dele para enfrentar a tirania de Pompeu e obrigar o povo a respeitar a autoridade e nobreza do Senado, graças à autoridade e grande reputação que conquistara por seus elevados feitos guerreiros, não foi sem profunda admiração que o viram alhear-se por completo dos negócios públicos e recolher-se à vida privada. Houve quem lhe aprovasse a resolução, atendendo ao estado de decadência em que se achava a administração pública, bem como quem a atribuísse ao excesso de honrarias que lhe foram prestadas, e à injustiça da sua substituição, depois de tanto trabalho e sofrimento. Embora não procedesse como Mário, nem lhe seguisse o exemplo, o seu procedimento não deixou de ser considerado justo por muitos. Mário, depois das belas vitórias alcançadas contra os cimbros, e de outros elevados e felizes feitos de armas, não quis recolher-se à vida privada e gozar das honras da glória; ao contrário, sedento de mando, ligou sua velhice à cobiça desenfreada de jovens que o compeliram a praticar violências estranhas e mesmo desumanas. Cícero também teria envelhecido mais feliz, se, depois de haver extinto a conspiração de Catilina, se tivesse recolhido ao descanso; o mesmo aconteceria a Cipião, se o houvesse feito depois de haver acrescentado a tomada da cidade de Numância à de Cartago. Dizem, com razão, que, atingida uma determinada idade, o homem sensato não deve mais imiscuir-se nos negócios públicos, porque passada a flor da idade e o vigor do corpo, ele não está mais apto para as disputas, para a luta e outros afazeres semelhantes.

LXXVIII. Considerações sobre a magnificência e as delícias em que passou o resto de sua vida

LXXVIII. Crasso e Pompeu zombaram de Lúculo, por entregar-se aos prazeres e à volúpia, como se a vida voluptuosa e prazenteira não fosse mais estafante aos de sua idade que o comando de um exército ou a direção dos negócios públicos. Lendo-se a vida de Lúculo, tem-se a impressão de se estar lendo uma comédia antiga, de começo muito laborioso e fim alegre.

Sim, porque, de início são encontrados belos feitos de armas, em guerra, e de governo, em tempo de paz; mas no fim só há festas e banquetes, pouco faltando que não apareçam também macaquices, danças com archotes, e outros folguedos próprios de rapazes. Coloquem-se ainda, na relação das coisas aprazíveis, seus soberbos edifícios, seus belos passadiços para passeios, suas estufas, além de seus quadros e pinturas, suas estátuas, e a grande admiração que ele tinha por tais artes e trabalhos, provindos de toda parte, em profusão e a preços elevados, valendo-se, desmedidamente, da riqueza que conquistara a mancheias em cargos que exercera e guerras que conseguira vencer. Agora, que a abastança cresceu de maneira assombrosa, notam-se também os jardins que Lúculo mandou executar, tão lindos e encantadores como os possuídos pelos imperadores. Ao ver os admiráveis trabalhos que ele mandou executar ao longo da praia, perto de Nápoles, escavando vales e perfurando montanhas, para fazer o mar contornar-lhe as casas e poder criar peixes, e os edifícios que ele mandou alicerçar dentro do próprio mar, o filósofo estoico Túbero denominou-o Xerxem Togatum, como a chamá-lo Xerxes Romano, porque Xerxes fez perfurar o monte de Ato e abrir um canal, para a passagem dos seus navios.

LXXIX. Havia outros lugares aprazíveis em Roma, perto de Túsculo, onde Lúculo possuía grandes aposentos e galerias, de onde se descortinavam todos os panoramas dos arredores da cidade. Tendo ah estado algumas vezes, Pompeu reprovou-lhe o gosto, alegando que tudo aquilo condizia muito bem para o verão, nunca, porém, para o inverno. Lúculo desandou a rir, e respondeu-lhe: ‘Achas, então, que eu tenha menos juízo e inteligência que as cegonhas e os grous, e não saiba, de acordo com as estações, mudar de residência?" Outra ocasião, promovendo ali diversões para entreter o povo, certo pretor romano pediu-lhe que lhe emprestasse mantos de púrpura, para enfeitar os folgazões, e Lúculo respondeu-lhe que ia mandar ver se os possuía. No dia seguinte perguntou-lhe de quantos precisava, recebendo, em resposta, necessitar de algumas centenas. Lúculo, então declarou-lhe que lhe forneceria até cinco mil, se os possuísse. Fazendo o cálculo, o poeta Horácio emite uma bela exclamação contra a superfluidade, declarando que se dá valor à casa pequena e modesta, unicamente dotada dos móveis indispensáveis, onde o dono só sabe o que possui do que lhe está sob os olhos e não do que está escondido.

LXXX. Boas palavras de Lúculo sobre os gastos e a fartura de sua mesa

LXXX. Lúculo também era pródigo nas suas refeições vulgares. A mesa era forrada de ricas Icalhas purpurinas, e ele era servido em baixelas de ouro e de prata, enriquecidas de pedras preciosas, sendo as refeições geralmente alegradas por danças, músicas, comédias e outros passatempos semelhantes. Diariamente serviam-lhe toda espécie de carnes muito bem preparadas, manjares de forno, doces deliciosos e sobremesas, o que o tornavam admirado pelas pessoas de pouca cultura e de baixa condição social. Eis porque Pompeu foi muito louvado pelo que disse ao médico, quando doente, ao ser-lhe ordenado que comesse um tordo ou peixe labróide. Como os criados lhe dissessem que tal peixe só poderia ser obtido com Lúculo, que os criava o ano todo, visto, acharem-se no verão, Pompeu proibiu-os que lho fossem pedir, e falou ao médico: "Como!... Se Lúculo não o tivesse, Pompeu deixaria de viver?" E ordenou que lhe preparassem outra qualquer coisa, das facilmente encontradas.

LXXXI. Ele dá ceia a Cícero e a Pompeu na sala de Apolo

LXXXI. Catão era seu amigo e aliado, mas detestava tanto a sua maneira de viver e os seus gastos comuns, que um dia, tendo um moço proferido uma longa e fastidiosa arenga no Senado, fora de tempo e descabida, a respeito da simplicidade, sobriedade e temperança no modo de vida dos indivíduos, não podendo mais suportá-lo, pôs-se de pé e disse-lhe: "Não acabarás, hoje, de nos censurar tu que és rico como um Crasso, que vives como um Lúculo, e falas como um Catão?" Há os que dizem que isto foi proferido, não, porém, por Catão. O que não deixa dúvidas, porém, atendendo às alegações de Lúculo, é que ele sentia imenso prazer em viver na opulência, e vangloriava-se disso. Contam a tal respeito, que, tendo ele festejado durante vários dias, em sua residência, alguns personagens gregos que foram da Grécia a Roma, eles, habituados à vida simples e sóbria de sua terra, negaram-se a voltar para ah, quando os foram convidar, convencidos de que era em sua homenagem que Lúculo despendia tanto dinheiro nos banquetes. Avisado disso, Lúculo disse: "Não deixeis, senhores, de vir verme, por isso, embora se faça alguma coisa mais que o do costume, em vossa honra. Quero, entretanto, que saibam, que a maior parte dos gastos é feita em atenção a Lúculo". Certa vez, que ele jantou sozinho, os criados não se esmeraram no arranjo da mesa. Ele zangou-se, mandou chamar o criado que assim procedeu, e que lhe disse: "Como o senhor não mandou convidar ninguém, julguei desnecessário grande aparato no jantar". A isto Lúculo observoulhe: "Então não sabias que Lúculo jantaria hoje com Lúculo?"

LXXXII. Biblioteca de Lúculo

LXXXII. A rapidez era coisa tão difícil na cidade de Roma, que causava admiração vê-la existir na casa de Lúculo, em meio a tanta pompa e magnificência, e era assunto forçado em todas as rodas. Querendo tirar a prova do que se dizia, Cícero e Pompeu, vendo-o um dia na praça, a espairecer, foram-lhe ao encontro. Cícero era um dos seus maiores e íntimos amigos, e Pompeu, apesar das divergências que tiveram em assuntos de guerra, não deixava de visitá-lo e de confabular com ele muito amavelmente. Depois dos cumprimentos de praxe, Cícero perguntou-lhe se era do seu agrado que eles o fossem visitar. "Do maior agrado do mundo, respondeu-lhe ele, peço-lhes encarecidamente que o façam". "Nós desejamos então, disse Cícero, Pompeu e eu, jantar hoje contigo, sob condição de nada mandares preparar de extraordinário. Queremos a comida usual". Lúculo respondeu-lhe que iriam passar muito mal, e que melhor seria deixarem a visita para o dia seguinte. Eles não concordaram, e não consentiram que ele falasse com seus criados, para impedir que ordenasse o preparo de mais alguma coisa, embora para seu uso. Todavia, a seu pedido, eles só permitiram que, em sua presença, e em voz alta, ele dissesse a um dos seus criados que jantaria, aquela tarde, na Apolo. Era como se chamava uma das mais suntuosas e magníficas salas do seu domicílio.

Com estas poucas palavras, e sem que eles percebessem, ele enganou-os muito delicadamente, porque cada sala tinha uma dotação determinada e certa da despesa que devia ser realizada, sempre que ah se jantava, seus móveis próprios e toda a ordem do serviço. De modo que, declarada a sala em que ele desejava jantar, os criados sabiam quanto deviam gastar no mesmo, e a ordem que deviam observar. E, como ele costumava despender a quantia de cinquenta mil dracmas, quando dava banquete naquela sala, e o jantar, naquele dia, custou tal importância, Pompeu ficou pasmo de ver como um jantar, de custo tão elevado, tivesse sido tão rapidamente preparado.

LXXXIII. Apego de Lúculo à antiga seita dos acadêmicos

LXXXIII. Se, nisto, Lúculo desperdiçava desordenada e reprovavelmente a sua riqueza, tornando-se um verdadeiro escravo da ostentação, muito honesta e louvável era a despesa que fazia com a aquisição e encadernação de livros, que conseguiu reunir em grande quantidade, e dos melhores escritos, para fim muito elevado e digno dos maiores elogios. Suas bibliotecas estavam sempre abertas a todos os visitantes, sendo permitida a entrada aos gregos, sem exceção, nas galerias, pórticos e outros lugares disputados, onde os homens doutos e estudiosos geralmente se encontravam e passavam o dia a discorrer, como na casa das musas, felizes de poderem se desvencilhar dos seus afazeres para ir para ali. Ele mesmo frequentemente misturava-se com os visitantes nas galerias, sentindo prazer em comunicar-se com eles, e em ajudar aos que tinham ocupações, em tudo quanto lhe pedissem. Sua casa tornou-se logo o retiro e amparo de quantos iam da Grécia a Roma.

Pompeu reúne-se a Crasso e César, para expulsar da praça pública Catão e Lúculo LXXXIV. Ele apreciava todas as espécies de filosofia e não desprezava nenhuma seita. Desde o início, porém, apreciou e dispensou mais consideração à seita acadêmica, não à nova, embora estivesse muito em voga, devido às obras de Carneades, que Filo valorizava, e sim à antiga, que tinha por defensor Antíoco, filósofo natural da cidade de Ascalão, eloquente e de palavra fácil, que Lúculo procurou conquistar e mantê-lo em sua casa, como amigo íntimo. Isto para contrapo-lo aos ouvintes e aderentes de Filo, entre os quais se achava Cícero, que escreveu um belíssimo livro contra a seita dos velhos acadêmicos, no qual figura Lúculo sustentando-lhes a opinião de que todo homem sabe e compreende alguma coisa, que denomina Catalepsin. Cícero sustenta o contrário. O livro intitula-se Lúculo, pois, como já dissemos alhures, eles eram bons e grandes amigos, e tendiam ao mesmo fim, na direção dos negócios públicos. Cedendo lugar a Crasso e a Catão, e retirando-se à vida privada, Lúculo não o fez no firme propósito de nunca mais se envolver em postos de mando e nem querer ouvir falar neles; apenas ambicionou dedicar-se a afazeres de sua exclusiva alçada, isentos de perigos e de grandes indignidades.

LXXXV. Subornam um patife, para declarar que Lúculo havia-o induzido a assassinar Pompeu

LXXXV. Tendo Lúculo recusado este primeiro posto de confiança e de autoridade, o Senado valeu-se de Crasso e de Catão, para deter e moderar o enorme poder de Pompeu, que era tido como suspeito. Lúculo, porém, sempre que solicitado, comparecia às reuniões e julgamentos populares, para satisfazer a seus amigos. Também ia ao Senado, quando se tratava de pulverizar qualquer intriga ou de reprovar qualquer atuação ambiciosa de Pompeu, pois este anulara todos os atos e decretos que ele emitira depois da derrota dos reis Mitrídates e Tigrano, e, auxiliado por Catão, proibiu a divisão e distribuição de dinheiro, que ele havia determinado fosse feita aos seus guerreiros. À vista disso, Pompeu precisou valer-se da amizade, ou melhor, da trama de Crasso e de César, com o auxílio dos quais encheu Roma de armas e de soldados, expulsou dali Lúculo e Catão, por meios violentos, e obrigou o povo a aprovar e validar tudo quanto quis.

LXXXVI. Morte de Lúculo

LXXXVI. Ante a indignação causada às pessoas dignas e honestas, pela expulsão afrontosa daqueles dois personagens, os partidários de Pompeu subornaram um tal Bruciano, declarando havê-lo surpreendido de tocaia, à espera de Pompeu, para matá-lo. Interrogado a respeito no Senado, Bruciano acusou algumas pessoas, e perante o povo apontou Lúculo como mandante do assassínio de Pompeu. Ninguém lhe deu crédito, pois todos perceberam haver sido ele subornado pelos partidários de Pompeu para acusar falsamente Lúculo e outros adversários daquele cabo de guerra. Isto tornou-se mais patente ainda, quando, dias depois, jogaram o cadáver de Bruciano a rua, fora da prisão, alegando que sua morte fora natural, originada por moléstia; mas, os sinais visíveis do seu estrangulamento, e das pancadas que lhe desferiram, não deixaram dúvida de que foram os próprios subornadores que o mataram.

LXXXVII. Isto induziu Lúculo a afastar-se ainda mais dos negócios públicos; e, ao ver exilarem indignamente Cícero, e afastarem Catão do governo, sob o fundamento de ser indispensável numa missão especial na ilha de Chipre, abandonou-os definitivamente. Escrevem alguns que ele assim procedeu porque, pouco antes de sua morte, devido à idade, ele foi perdendo aos poucos o juízo. Diz Cornélio Nepos que não foi por velhice nem por doença que ele se transtornou, mas sim por peçonha que lhe ministrou um dos seus escravos libertos, chamado Calístenes, que o fez não mal intencionado e sim convencido de que tal veneno tivesse o poder de torná-lo mais querido a seu amo. O caso é que Lúculo ficou com o juízo tão perturbado, que seu irmão Marcos, enquanto ele viveu, tornou-se seu curador e administrou-lhe os bens. A sua morte foi muito sentida pelo povo, que acorreu em massa aos funerais, a fim de prestar-lhe as últimas homenagens. O corpo foi levado ao túmulo pelos jovens mais nobres da cidade, exigindo o povo que fosse inumado no campo de Marte, do mesmo modo por que o foi Sila. Como ninguém tivesse pensado nisso, e os preparativos indispensáveis não fossem fáceis, Marcos pediu ao povo que os funerais fossem realizados em terras que possuía perto da cidade de Túscuío, onde sua sepultura havia sido preparada, e que ele mesmo escolhera. Sepultado Lúculo com todas as honras merecidas, seu irmão, que sempre o amara muito, não lhe sobreviveu durante longo tempo.

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